“Todos têm o dever de participar da resistência”, diz Arnaldo Antunes
Cantor e compositor lança novo álbum e não se omite: ‘A gente está vendo a todo tempo os nossos governantes invertendo a verdade’
As 10 faixas de O Real Resiste mostram um Arnaldo Antunes mais intimista, com acompanhamento sereno e evidenciando canções. Em seu 18º álbum solo, o primeiro da sua extensa discografia que não será lançado em formato físico, não há ritmo pesado como os anteriores. Vai-se em direção à expressão das letras de som leve e harmonioso. Arnaldo Antunes fez, de novo, um grande trabalho.
“Eu estava me desejando voltar mais para canção, mais próximo de como as canções foram compostas no violão”, diz.
Ele conta que vinha fazendo várias parcerias musicais com o violonista Cézar Mendes, com este, em paralelo, tendo seguidos encontros com o pianista Daniel Jobim.
Assim, Cézar e Daniel, mais os instrumentistas Dadi (guitarra, baixo e ukulele) e Chico Salem (guitarra e violão), formaram o grupo de músicos que gravaram O Real Resiste. No coro, Karine Carvalho, Caru Zilber e Ricardo Prado. Os arranjos desse novo álbum foram feitos coletivamente durante a gravação.
O show do álbum estreia em março em voz e piano (executado por Vitor Araújo). É a primeira vez que Arnaldo realiza um show somente com um instrumentista. Ele fará a apresentação entremeando as canções com performances de poesia.
Homenagem a João Gilberto
O trabalho O Real Resiste abre com uma música em homenagem a João Gilberto, tocada ao estilo Jobiniano por Daniel (neto de Tom Jobim).
“João Gilberto foi uma coisa imensa para cultura brasileira. Começar com essa canção também se deve porque a gente vive um momento hostil à cultura. É para dizer que uma nação se faz através de seus valores culturais.”
Não foi uma homenagem póstuma. João Gilberto estava vivo quando foi composta. Cézar Mendes se encontrou com João várias vezes no final de vida e o apresentou à melodia dele e à letra de Arnaldo.
“João inventou uma linguagem. Tem ali algo novo e renovador. É assim que se funda uma nação”, define Arnaldo, referenciando a canção: “São tantos e tão poucos têm noção de como se inaugura uma nação / Não é bem com monumentos ou com balas de canhão / É quando uma brisa bate na respiração e entra no juízo de um João”.
De Outra Galáxia, parceria de Arnaldo com a mulher Marcia Xavier, fala do amor impossível se tornar possível. “Vai desde a via láctea até a molécula. É a possibilidade de fazer o impossível através do amor”, descreve a canção.
Na Barriga do Vento, que fala do amor paternal, foi feita por Arnaldo no camarim de uma das apresentações do Tribalistas. Assinam também a composição os músicos da banda dos shows do trio Pedro Baby, Pretinho da Serrinha e Marcelo Costa, além de Carlinhos Brown.
“Essa música trata do tempo de aprendizado e do desapego de saber que filho vai caminhar por conta própria”, diz. A música conta na segunda voz com Celeste, filha de Arnaldo que estuda música e pretende gravar seu primeiro trabalho solo.
Outra ótima faixa é o samba Onde É Que Foi Parar Meu Coração? (Cézar Mendes e Arnaldo Antunes), a última do álbum.
O Real Resiste
O clipe da faixa-título do novo álbum saiu em novembro. A música O Real Resiste foi escrita logo depois da eleição, em 2018.
“A composição expressa a perplexidade com o que estava acontecendo. Espanto de terem pessoas defendendo a ditadura, tortura, censura, negando o aquecimento global, ameaçando as comunidades indígenas. Ou seja, tudo que a gente preza e as pessoas afirmando isso com a maior naturalidade. É uma música que diz: não é possível que isso esteja acontecendo.”
Ao mesmo tempo, a letra tenta remeter ao mundo real “das pessoas que prezam a ética, a dignidade, a civilidade, o diálogo com as diferenças, a ausências de preconceitos”.
Tem uma outra leitura que pode ser feita pela faixa-título O Real Resiste, segundo Arnaldo, no sentido de inversão: “A gente está vendo a todo tempo os nossos governantes invertendo a verdade. Dizem que nazismo é de esquerda, que a terra é plana, que não existe aquecimento global, quem pôs fogo na Amazônia foram as ONGs, quem jogou óleo no mar foi o Greenpeace”.
A música foi composta quando Arnaldo estava em turnê com os Tribalistas.
“A grande questão é a união das forças que querem defender a democracia, que não quer deixar normalizar a barbárie, a violência, o racismo, o preconceito. A mídia fala que o País está polarizado como se tivesse uma esquerda e uma direita. Mas a ideia de polarização é outra: é de quem está ameaçando a democracia e de quem está defendendo os valores democráticos. As forças, da esquerda à direita, com espírito civilizatório de não ceder ao fascismo, têm o dever de se juntar para defender o que nos resta de democracia.”
Para Arnaldo, as pessoas não reagem à barbárie pela velocidade com que o cerceamento dos direitos e da liberdade estão ocorrendo.
“Existe um estado de estupefação e as pessoas têm que vencer isso, dialogar e formar uma resistência mais sólida. Todos têm o dever de participar da resistência, de se posicionar”.
Abaixo, a letra da faixa-título do último álbum de Arnaldo Antunes, O Real Resiste:
Autoritarismo não existe
Sectarismo não existe
Xenofobia não existe
Fanatismo não existe
Bruxa fantasma bicho papão
O real resiste
É só pesadelo, depois passa
Na fumaça de um rojão
É só ilusão, não, não
Deve ser ilusão, não não
É só ilusão, não, não
Só pode ser ilusão
Miliciano não existe
Torturador não existe
Fundamentalista não existe
Terraplanista não existe
Monstro vampiro assombração
O real resiste
É só pesadelo, depois passa
Múmia zumbi medo depressão
Não, não, não, não
Não, não, não, não
Não, não, não, não
Trabalho escravo não existe
Desmatamento não existe
Homofobia não existe
Extermínio não existe
Mula sem cabeça demônio dragão
O real resiste
É só pesadelo, depois passa
Como o estrondo de um trovão
É só ilusão, não, não
Deve ser ilusão, não não
É só ilusão, não, não
Só pode ser ilusão
Esquadrão da morte não existe
Ku Klux Klan não existe
Neonazismo não existe
O inferno não existe
Tirania eleita pela multidão
O real resiste
É só pesadelo, depois passa
Lobisomem horror opressão
Não, não, não, não
Não, não, não, não
Não, não, não, não