Ciências Sociais fortalecem a democracia

Pesquisas na área de sociais e humanas são atacadas por regimes autoritários porque desnaturalizam suas políticas conservadoras, excludentes e, muitas vezes, genocidas, dizem cientistas. Confira a reportagem na nova edição do Jornal da Ciência
Desde a chegada ao Brasil da pandemia do novo coronavírus em março, virou lugar comum dizer que a covid-19 escancarou as desigualdades sociais, raciais, regionais. Mas se hoje é possível constatar e, mais que isso, quantificar e qualificar as desigualdades, é graças às Ciências Humanas e Sociais.

“As Ciências Sociais têm, ao longo de um século de pesquisas e de reflexão teórica, mostrado esse país profundamente desigual, onde temos um grupo muito pequeno de elites e uma massa de trabalhadores totalmente à margem dos direitos humanos, dos direitos que a nossa Constituição garante a toda população”, afirma a antropóloga Miriam Pillar Grossi, professora do Departamento de Antropologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e presidente da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs).

Uma das grandes contribuições das Ciências Sociais, disse Grossi, é estudar os grupos e as diferentes classes populares, compreender e analisar como se constitui a sociedade, fornecendo subsídios principalmente para a formulação de políticas públicas.

As empresas privadas também se beneficiam dos estudos das humanidades para análises de mercado, de ambiente de negócios, investimentos e tendências de consumo a partir de pesquisas realizadas nos campos da sociologia, antropologia, ciências sociais e políticas.

Não por acaso, um dos países que mais investe nestas áreas são os Estados Unidos, destaca o presidente da Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS), Jacob Carlos Lima. “Nos países avançados, o conhecimento da sociedade é um elemento fundamental, inclusive para manutenção do poder político, e os EUA são mais do que conscientes disso”, disse Lima.

Um dos maiores acervos do mundo em Ciências Humanas e Sociais está na biblioteca do Congresso, em Washington. Além dos investimentos públicos do governo estadunidense, inúmeras instituições privadas aplicam milhões de dólares todo ano em bolsas de estudos, programas e pesquisas sociais tanto para norte-americanos quanto para estrangeiros. Figuram entre elas, a Fundação Rockefeller, a Fundação Ford, a Kellogg’s e outros institutos que gerenciam recursos de fortunas familiares e de empresários ligados a diversos setores.

O motivo desses entes privados investirem pesadamente em Ciências Sociais, na visão do presidente da SBS, é que eles reconhecem a necessidade de entender a sociedade de uma forma geral. “Obviamente, essas fundações não estão necessariamente atendendo interesses do Estado norte-americano, mas o Estado eventualmente tem políticas específicas para conhecer determinados processos”, analisou Lima.

Contribuição

As ciências sociais estão por trás de algumas das políticas públicas mais relevantes para a promoção dos direitos humanos e civis no Brasil. Um exemplo é a Lei Maria da Penha (11.340/2006), que eleva a punição e coíbe atos de violência doméstica contra as mulheres. “Essa lei foi fruto de trinta anos de pesquisas e de lutas feministas sobre a violência”, destaca Miriam Grossi.

“Muitas estudiosas de violência estiveram envolvidas na aplicação e no monitoramento das delegacias de defesa da mulher e na própria formulação da Lei Maria da Penha mais recentemente”, completou Maria Filomena Gregori, antropóloga e presidente da Associação Brasileira de Antropologia (ABA).

Grossi e Gregori viveram e participaram daquela fase do movimento feminista brasileiro como pesquisadoras e ativistas.

Outro exemplo, lembra a presidente da Anpocs, é o Bolsa Família, programa implementado no fim dos anos 1990, reforçado nos governos do Partido dos Trabalhadores e mantido até hoje. “O Bolsa Família é fruto de uma demanda política de muito tempo, de discussões no campo das ciências sociais, sobretudo nessa articulação do campo da economia”, comentou Grossi.

Foi a partir do trabalho de antropólogos, sociólogos, demógrafos, cientistas sociais e economistas que o Bolsa Família passou a ser orientado para a mulher chefe de família. “Nós mostramos inúmeras pesquisas que vinham sendo feitas já há muitos anos apontando que uma parcela muito importante da população brasileira não tinha homem como chefe de família. Eram as mulheres que trabalhavam, que mantinham a casa, que cuidavam de filhos, de pai, de mãe, de avós”, acrescenta a presidente da Anpocs.

Reação e ataques

Apesar de toda a contribuição dada aos direitos civis e, em última instância, à democracia, desde que as ciências sociais foram institucionalizadas como ciência – o que só aconteceu em meados do século passado – volta e meia elas entram na mira de governos autoritários no Brasil. Foi assim na ditadura civil- -militar (1964-1985) e é assim agora, no governo Jair Bolsonaro.

As ciências sociais são atacadas por meio de tentativas de deslegitimação e o desfinanciamento, o corte orçamentário para bolsas de estudos e pesquisas, com o argumento de que não são prioritários para o País e por isso seriam uma “despesa” elevada e descartável.

Jacob Carlos Lima recorda que em 2016, o então governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), criticou a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado (Fapesp) por financiar pesquisas “sem utilidade prática”. “Gastam dinheiro com pesquisas acadêmicas sem nenhuma utilidade prática para a sociedade. Apoiar a pesquisa para a elaboração da vacina contra a dengue, eles não apoiam. O Butantan está sem dinheiro para nada. E a Fapesp quer apoiar projetos de sociologia ou projetos acadêmicos sem nenhuma relevância”, teria dito o governador segundo relatos colhidos pela imprensa.

Lima lembrou que em seguida a própria Fapesp divulgou dados mostrando que naquele ano o peso das ciências sociais como um todo não chegava a 10% do total dos recursos investidos pela fundação em pesquisas. “E ao mesmo tempo, são as humanidades, de forma geral, algumas das áreas que mais produzem, que são mais significativas concretamente, com muita visibilidade nacional e internacional”, reforçou Lima.

Maria Filomena Gregori reitera que não existe a possibilidade de pensar a sociedade e seus aparatos valorativos sem levar em consideração que as pessoas, ao viverem em sociedade, produzem normas a partir de parâmetros e comportamentos que precisam ser traduzidos constantemente. “Existe uma decifração de natureza psicológica, mas existe uma decifração de natureza antropológica que é absolutamente necessária, sem o que você não entende como as sociedades operam e não consegue influir nessas sociedades a partir de enfoques diversificados”, afirmou Gregori. E completou: “Quem diz que essas ciências são supérfluas, nada mais é que um negacionista da ciência de modo mais amplo.”

A cientista política Flavia Biroli opina que as pesquisas sobre as relações de gênero, por exemplo, são mal vistas pelos governos porque expõem as relações de poder. Professora do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB) e autora de vários livros sobre feminismo e desigualdade de gênero, Biroli acredita que o “x” da questão é o efeito desnaturalizador de atitudes e medidas autoritárias. “Assim como as chamadas ciências da natureza, as ciências sociais desmistificam, desvendam os processos de construção humana, muitas vezes rompendo com crenças populares, mostrando como até costumes arraigados podem conter violência, podem impor limite à cidadania das pessoas, ao respeito.” Para os conservadores e autoritários, disse Biroli, é importante apresentar suas pautas como se fossem naturais.

“Sabe com quem está falando?

” Para a socióloga Maria Francisca Pinheiro Coelho, também da UnB, a desconexão entre democracia e ciência no Brasil está relacionada com a formação cultural, histórica, entre a produção das leis e os costumes. “Não temos uma história muito forte em democracia, tivemos um período colonial muito grande, um império com dois imperadores e a República. Nesse período republicano, a partir de 1889, tivemos várias experiências de períodos autoritários e ditatoriais”, analisou.

Com diversos artigos e pesquisas publicados sobre a esfera política, legislativo federal e reforma política, Pinheiro Coelho aponta para a distância entre o que está na lei e os costumes marcados pela tradição autoritária, terminando por interferir na produção da ciência.

“Como disse o (sociólogo e escritor) Jessé Souza, nós somos filhos da escravidão, tivemos mais de três séculos de escravidão e isso é uma marca muito forte na nossa sociedade.” Para ela, falta compromisso dos brasileiros com o espírito democrático e sobra contradição entre leis e costumes que vão no sentido contrário às leis.

“Falta no Brasil uma relação equilibrada e harmônica entre as leis e os costumes. Nós construímos um pensamento democrático, mas nossos costumes não são democráticos. Você vê todo dia na TV a ‘carteirada’, o ‘sabe com quem está falando?’. Uma mostra dessa incoerência é a priorização da pessoa, da família, do cargo sobre o público”.

Como superar essa cultura autoritária? Para Maria Francisca Pinheiro Coelho, não há uma resposta fácil, mas existem pistas que passam por incentivar a liberdade do espaço público, a liberdade das universidades na produção de conhecimento, liberdade de expressão e opinião sem censura, sem perseguição. “Acho que a superação disso no Brasil é um caminho muito longo, porque aqui se fala em democracia sendo autoritário”, conclui a socióloga.

Janes Rocha – Jornal da Ciência

Matéria publicada originalmente na Edição 790 do Jornal da Ciência. Veja aqui a edição completa.

SBPC

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