Direito à vida e liberdade religiosa: os argumentos dos ministros do STF na sessão que vetou cultos na pandemia
Cultos presenciais durante pandemia se tornaram alvo de discussão no STF
O STF (Supremo Tribunal Federal) formou maioria para decidir, nesta quinta (08/4), que governadores e prefeitos podem proibir a realização de cultos religiosos com objetivo de conter o contágio da covid-19.
A maioria da Corte considerou que restrição não fere a liberdade religiosa, pois é temporária e necessária para garantir o direito à vida em meio a uma pandemia que já matou mais de 345 mil pessoas no Brasil e o número de óbitos vem crescendo nas últimas semanas.
Os ministros Alexandre de Moraes, Cármen Lúcia, Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Ricardo Lewandowski, Marco Aurélio, Luiz Fux e Rosa Weber votaram a favor da possibilidade de restrição dos cultos religiosos. O relator do caso, Gilmar Mendes, já havia votado também nesse sentido na quarta.
Já o ministro Kassio Nunes Marques foi contra a possibilidade de governadores e prefeitos proibirem a realização de cultos religiosos, acompanhado por Dias Toffoli.
Nunes Marques já havia liberado no sábado a realização de celebrações religiosas em todo o país em uma decisão liminar (provisória). Sua decisão atendeu a um pedido da Anajure (Associação Nacional dos Juristas Evangélicos). Seu voto foi acompanhado pelo ministro Dias Toffoli, que não leu as justificativas de seu voto em voz alta.
Ainda faltam votos de outros ministros, mas com placar de 6×2, já há maioria para a decisão.
A decisão do STF, no entanto, é que Estados e municípios podem estabelecer a restrição temporária de cultos religiosos. A proibição ou liberação de fato dos cultos vai depender da decisão das autoridades locais.
Com a formação da maioria, houve uma pacificação no STF quanto ao assunto, já que até então havia duas decisões individuais conflitantes.
Além da decisão de Kassio Nunes proibindo estados e prefeituras de decretar a proibição de cultos, havia também uma decisão liminar concedida por Gilmar Mendes na segunda (5/4), autorizando o Estado de São Paulo a proibir cultos religiosos na pandemia.
Essa ação sobre São Paulo foi analisada na quinta pelo plenário, mas o resultado terá repercussão sobre outros casos, incluindo o julgado por Nunes Marques a pedido da Anajure.
‘Não sou negacionista’, diz Nunes Marques
No julgamento de quinta, Nunes Marques afirmou que a proibição de cultos e cerimônias religiosas é uma violação da liberdade religiosa e reclamou de ter sido “tachado de negacionista” por sua posição.
“Há atmosfera de intolerância, em que falar de direitos das pessoas é taxado de negacionismo”, disse Nunes Marques. “Tenho ouvido que vivemos a pior crise sanitária dos últimos 100 anos. É verdade. Mas também vivemos uma das maiores crises de direitos individuais e coletivos dos últimos 100 anos.”
Nunes Marques afirmou que a proibição de cultos na pandemia poderia fazer com que prefeitos e governadores “acabassem com grupos religiosos”.
Disse também, sem citar nenhuma evidência, que não está havendo transmissão nas igrejas. “Sabemos onde essa doença está sendo transmitida: festas, baladas e bares estão lotados, sem distanciamento nem máscara. Não são nos cultos e nas missas que a pandemia está ganhando força”.
Afirmou ainda que as condições que sugeriu para a abertura das igrejas — distanciamento entre os fiéis, máscaras obrigatórias, janelas abertas e limitação do público a 25% da capacidade — são “mais restritivas” que muitos protocolos locais.
Nunes Marques fez diversas críticas à imprensa durante seu voto, dizendo que foi chamado de negacionista e genocida e que 85% dos estados e 75% das capitais já autorizavam cultos presenciais antes de sua decisão, “estatística ignorada pela mídia”.
‘Estado não se mete na fé, fé não se mete no Estado’, diz Alexandre de Moraes
O segundo a votar foi o ministro Alexandre de Moraes, que começou criticando os argumentos dos advogados que pedem pela abertura dos templos.
“Vendo as sustentações orais de ontem, fui checar o que estamos julgando: se era algum decreto proibindo alguma religião. Algumas coisas que ouvi eram inacreditáveis”, afirmou Moraes.
“Há templos onde cabem 100 mil pessoas. Com 25%, é uma aglomeração de 25 mil pessoas”, afirmou Moraes. De acordo com a Constituição, a restrição de aglomeração com base na defesa da vida não é um atentado à liberdade religiosa, disse o ministro.
“Como se restrição a escola fosse contra educação, restrição a comício fosse contra liberdade política. O que está em jogo é a defesa da vida! 4 mil mortes por dia. Onde está a empatia?”
“Continuo defendendo a liberdade de culto e de associação religiosa”, afirmou Alexandre de Morais. “E o Estado laico. Porque a liberdade religiosa vai para os dois lados. O Estado não pode se meter na minha fé, mas as religiões também não podem impor seus dogmas ao Estado.”
Proibição é essencial em contexto de falta de vacinas, diz Gilmar Mendes
O ministro Gilmar Mendes, relator do caso, já havia votado na quarta e também teve posicionamento a favor da possibilidade de Estados e municípios proibirem cultos e assembleias religiosas.
Embora o direito à liberdade religiosa esteja garantido na Constituição brasileira, o ministro considera que ele pode ser restringido, tendo em vista a necessidade de medidas que reduzam o contágio da doença.
“A Constituição Federal de 1988 não parece tutelar um direito fundamental à morte”, afirmou Mendes em seu voto.
Mendes ressaltou ainda que o STF já reconheceu no ano passado o poder de prefeitos e governadores de adotar medidas sanitárias para conter a pandemia.
“Assim o fez o Supremo Tribunal Federal levando em consideração pretensões do governo federal de obstar os Estados e municípios de adotar uma das poucas medidas que, por comprovação científica, revela-se capaz de promover o achatamento da curva de contágio de coronavírus, qual seja, o lockdown. Talvez a única disponível em um contexto de falta de vacinas”, reforçou.
O ministro citou também, em seu voto, exemplos de outros países que adotaram restrições a atividades religiosas, como decisão da Suprema Corte alemã de abril de 2020 que recusou pedido para liberar cultos nas vésperas da Páscoa do ano passado.
‘Restrições não são exclusivas para religiosos’, diz Fachin
Para Fachin, que também votou a favor da restrição, inconstitucional não são os decretos que estabelecem restrições, mas a falta de ação diante da gravidade da pandemia.
“A medida não impede realização de medidas não-presenciais”, lembrou Fachin, e não “é absoluta, nem permanente”.
“E não é exclusiva para religiosos – também estão restritas atividades esportivas, políticas, etc em que haja aglomeração”, afirmou Fachin.
Ciência e não ideologia, diz Barroso
O ministro Luis Roberto Barroso lembrou que há consenso científico de que o isolamento social e a restrição a aglomerações são necessários ao combate à pandemia.
Disse também que as decisões precisam ser tomadas com base na ciência e não na ideologia e que “salvar vidas é nossa prioridade”.
Barroso diz que devemos recorrer à ciência e aos especialistas, seja em que área for: “para calcular probabilidade: estatística. Para calcular curva da doença: médicos. Ainda é tempo, não é tarde demais. Precisamos de orientação para legitimar decisões’, afirmou.
Lembrou também da importância da liberdade religiosa, mas explicou que a liberdade de culto é uma das facetas dessa liberdade. “Enquanto a liberdade religiosa como um tudo não pode ser tolhida, a liberdade de culto admite restrições temporárias”, afirmou.
Quando dois princípios como direito à vida e liberdade religiosa se contrapõem em um caso concreto, disse Barroso, é preciso ponderar se a medida é necessária, é adequada, e é proporcional, ou seja, se o que se ganha com ela é maior do que o que se perde.
Segundo Barroso, a restrição temporária de cultos atende a todos esses critérios.
Negacionismo não faz pandemia desaparecer, diz Rosa Weber
A ministra Rosa Weber, que teve seu voto interrompido por uma queda na internet, defendeu as medidas de isolamento social e afirmou que “a administrador diligente, não só pode como deve tomar mão delas”.
“Negar a pandemia, ou a sua gravidade, não fará com que ela magicamente desapareça”, afirmou a ministra.
‘Aglomeração em templos é uma das formas de transmissão’, diz Carmen Lucia
A ministra Carmen Lucia, que também votou pela possibilidade de restrição dos cultos, citou um caso estudado em Sidney, na Austrália, em que um culto se tornou foco de transmissão, levando a muitos infectados.
Também lembrou que não há discriminação contra as reuniões religiosas e todos os tipos de aglomerações podem ser proibidos.
“Quando se pede e se recomenda que não se faça encontros familiares, ninguém pode imaginar que isso seja porque se é contra a família — muito pelo contrário”, afirmou a ministra Carmen Lucia.
Carmen Lucia lembrou também que a decisão da Corte é vinculantes – portanto não pode ser descumprida nem mesmo por outras instâncias da Justiça.