22: A semana que recriou o Brasil

Nelson Oliveira

Acostumado a circular pelo Rio de Janeiro a pé, em tílburis — veículos compactos de tração animal — ou em bondes, o poeta parnasiano Olavo Bilac (1865-1918) ingressou de vez na modernidade com uma trombada. O fato, noticiado no ritmo dos jornais da época, ocorreu entre 1897 e 1901 (ninguém sabe precisar) e envolveu, além da maior estrela da poesia brasileira de então, o seu amigo José do Patrocínio (1853-1905), jornalista, abolicionista e fundador da Academia Brasileira de Letras. Patrocínio era dono do Serpollet que bateu em uma árvore quando estava sob a condução de Bilac, a 4 quilômetros por hora.

Segundo automóvel a chegar ao Brasil, importado da França, o Serpollet era um pequeno triciclo com motor a vapor, mas tornou-se ingovernável ao transitar por ruas sem calçamento adequado e sob pressão. Além de estimular Bilac a guiar o automóvel, Patrocínio o instou a acelerar o carro, que ficou totalmente destruído e foi parar num ferro-velho.

Antes do lamentável acidente, o primeiro registrado em território nacional, Patrocínio anunciou a compra do veículo numa linguagem que parecia antecipar o Manifesto Futurista do poeta italiano Filippo Tommaso Marinetti, de 1909: “Trago de Paris um carro a vapor… O Veículo do Futuro, meus amigos. Um prodígio! Léguas por hora. (…) É a morte de tudo, dos tílburis, dos carros [puxados por cavalos], do bonde… até da estrada de ferro. Ficamos senhores da viação. É a fortuna.”

“Nós afirmamos que a magnificência do mundo enriqueceu-se de uma beleza nova: a beleza da velocidade. (…) Um automóvel rugidor (…) é mais bonito que a Vitória de Samotrácia”, publicaria Marinetti no jornal francês Le Figaro, buscando chocar os leitores do seu texto de 11 princípios marcado por agressividade, belicismo, industrialismo, machismo e, paradoxalmente, espírito revolucionário.

Olavo Bilac era o esteta de um outro mundo, no qual já se introduzira a palavra modernismo e a máquina (pois os bondes circulavam no Rio desde 1859), mas um mundo ancorado no ideal do belo e da fruição serena da natureza. Nessa esfera, só havia lugar para arte burilada, perfeita como a estatuária clássica, cuja elaboração deveria vedar ao observador os artifícios utilizados em sua estruturação. Quando o poeta morreu, em 1918, a 1ª Guerra Mundial, iniciada em 1914, estava acabando. No ano anterior, em São Paulo, a pintora Anita Malfatti (1889-1964) já havia realizado sua exposição influenciada pelo expressionismo e pelo cubismo. Diante das críticas ácidas do escritor Monteiro Lobato (1882-1948), Anita foi apoiada pela também artista plástica Tarsila do Amaral (1883-1976) e pelos escritores Mário de Andrade (1893-1945), Oswald de Andrade (1890-1954) e Menotti Del Pichia (1892-1988). A aliança entre eles, conhecidos como o Grupo dos Cinco, e outros personagens em discreta ascensão na paisagem semi-industrializada da capital paulista está na gênese do Movimento Modernista brasileiro. Como um bólido futurista, esse aparato viria a colher a delicada carruagem parnasiana de Bilac, não sem consequências e não para sempre.

Patrocínio, Billac, o veículo Serpollet e o Grupo dos Cinco, em desenho de Anita MalfattiAntes, porém, que o modernismo se articulasse nas terras de Piratininga, manifestava-se individualmente, à beira-mar, nos escritos do cronista João do Rio (1881-1921). Ele chegou inclusive a publicar um texto sobre o destino infausto do Serpollet de Patrocínio: “O primeiro [carro], de Patrocínio, foi motivo de escandalosa atenção. Gente de guarda-chuva debaixo do braço parava estarrecida, como se tivesse visto um bicho de Marte ou um aparelho de morte imediata. Oito dias depois, o jornalista e alguns amigos, acreditando voar com três quilômetros por hora, rebentavam a máquina de encontro às árvores da rua da Passagem (Botafogo).”

O modernismo também podia ser flagrado nos artigos da professora e jornalista Josefina Álvares de Azevedo (1851-1913), que em 1891 os reunira no livro A Mulher Moderna. Há ali muito argumento a favor do voto feminino, do divórcio e outras causas feministas. Seria já prenúncio do modernismo a prosa de Lima Barreto (1881-1922). Modernista intuitivo, mas a favor da Monarquia e feroz adversário do futebol — e sua euforia de massas —, Barreto é uma prova das contradições que permeiam os períodos de transição e toda e qualquer ação humana, mas também ajuda a explicar por que é paulistana a identidade do incompleto modernismo à brasileira, ainda que contando com a participação de cariocas como o pintor Di Cavalcanti (1897-1976) e o músico erudito Heitor Villa-Lobos (1887-1959) e do pernambucano radicado no Rio Manuel Bandeira. Este último publicara Carnaval, de 1918, no qual se insere o poema Os Sapos, motivo de escândalo quatro anos depois, no segundo dia de eventos da Semana de Arte Moderna no Teatro Municipal de São Paulo.

Josefina Álvares de Azevedo, a mulher moderna do século 19, e o grupo de artistas mulheres modernistas: Patrícia Galvão, Anita Malfati, Tarsila do Amaral, Elsie Houston e Eugênia Álvaro MoreyraNo tumultuado evento, que está completando 100 anos — desenrolou-se entre 11 e 18 de fevereiro de 1922, com três “festivais” nos dias 11, 15 e 17  —, Bandeira não pôde recitar ele mesmo seu poema por causa de uma crise de tuberculose. A doença tinha sido um mal comum aos poetas românticos do século 19, mas persistia na centúria seguinte, o que atestava as más condições da saúde pública brasileira. Tão ruins quanto as ruas e estradas nas quais trafegava o automóvel de Oswald de Andrade, apinhado de modernistas: “E eram aquelas fugas desabaladas dentro da noite, na cadillac verde de Osvaldo de Andrade, para ir ler as nossas obras-primas em Santos, no Alto da Serra, na Ilha das Palmas”, recordava Mário de Andrade 20 anos depois em seu célebre balanço do movimento, publicado nas páginas do jornal O Estado de S. Paulo.

Por esse tempo, Mário de Andrade andava a pé quando não tinha dinheiro para o bonde. Não era raro que se apertasse financeiramente para investir em livros e obras de arte. E foi durante um desses períodos de enrosco, em 1920, que veio à luz seu poema Pauliceia Desvairada, um dos marcos do modernismo:

Já ganhava para viver folgado, mas o ganho fugia em livros e eu me estrepava em arranjos financeiros temíveis. Estava criando fama de professor bom e fazia esforços para que meus alunos de Conservatório passassem com notas altas. Em casa o clima era torvo. Se mãe e irmãos não me amolavam com as minhas ‘loucuras’, o resto da família me retalhava sem piedade. Tinha discussões brutas em que os desaforos mútuos não raro chegavam àquele ponto de arrebentação que… por que será que a arte os provoca!… A briga era brava e, se não me abatia nada, me deixava em ódio, mesmo ódio. Foi quando Brecheret me concedeu passar em bronze um gesto dele que eu adorava, uma cabeça de Cristo. Mas ‘com que roupa’? Eu devia os olhos da cara! Não hesitei, fiz mais conchavos financeiros e afinal pude desembrulhar em casa a minha Cabeça de Cristo. A notícia correu num átimo, e a parentada que morava pegado invadiu a casa para ver. E brigar. Aquilo até era pecado mortal, onde se viu Cristo de trancinha! Era feio, medonho! Fiquei alucinado, palavra de honra. Minha vontade era matar. Jantei por dentro, num estado inimaginável de estraçalho. Depois subi para o quarto, era noitinha, na intenção de me arranjar, sair, espairecer um bocado, botar uma bomba no centro do mundo, nem sei. Sei que cheguei à sacada, olhando sem ver o meu Largo do Paissandu. Ruídos, luzes, falas abertas subindo dos choferes de aluguel. Estava aparentemente calmo. Não sei o que me deu… Cheguei na secretaria, abri um caderno, escrevi o título em que jamais pensara, Pauliceia Desvairada. O estouro chegara afinal, depois de quase ano de angústias interrogativas. Entre exames, desgostos, dívidas, brigas, em poucos dias estava jogado no papel um discurso bárbaro, duas vezes maior talvez do que isso que o trabalho de arte fez um livro.

Bandeira, Oswald, Mário de Andrade e “Cabeça de Cristo”, de BrecheretA empresa intelectual de Mário de Andrade e o seu pesado investimento não eram um ponto fora da curva no círculo dos modernistas, formado por integrantes de famílias da aristocracia ou da burguesia paulista, em geral com uma ou mais graduações de nível superior, leituras de filosofia, cursos de belas artes e períodos de estudos formais e informais na Europa e nos Estados Unidos.

Ou seja, mesmo tendo em conta a distância do Brasil em relação aos países europeus, eram pessoas muito bem preparadas e ativas intelectualmente. Daí a fermentação de um movimento consistente, malgrado a inexperiência, precedido de muita pesquisa e debate, e que depois se desdobrou em mais produção, pesquisa, debate e ações concretas em diversos campos. As lacunas naturais dos primeiros anos, reconhecidas por Mário de Andrade, foram posteriormente cobertas. E se ao modernismo brasileiro faltaram todos os ingredientes típicos do seu antecessor europeu, foi mais pelas especificidades do contexto nacional do que pela capacidade dos seus integrantes de pensar e revolucionar.

Num Portugal tomado pelo passado glorioso colonialista, dificuldades econômicas e autoritarismo, Fernando Pessoa e seu grupo lograram um feito coletivo bem mais modesto do que ocorria na vizinha França.

De acordo com descrição do Museu da Imagem e do Som (MIS), a Semana “destaca-se muito mais pela rejeição ao conservadorismo vigente na produção literária, musical e visual, do que pela proposição de novas linguagens. A dinâmica entre o nacional, o nativismo, a busca pela cultura popular brasileira, e o internacional, a atualização cosmopolita, torna-se a questão principal dos seus participantes”.

“Paulo Prado [1869-1943, mecenas da Semana e autor de Retrato do Brasil – Ensaio sobre a tristeza brasileira], ao mesmo tempo que um dos expoentes da aristocracia intelectual paulista, era uma das figuras principais da nossa aristocracia tradicional. E foi por tudo isto que ele pôde medir bem o que havia de aventureiro, de exercício do perigo no movimento, e arriscar a sua responsabilidade intelectual e tradicional na aventura. Uma cousa dessas seria impossível no Rio, onde não existe aristocracia tradicional, mas apenas sita burguesia riquíssima. E esta não podia encampar um movimento que lhe destruía o espírito conservador e conformista”, refletiu Mário de Andrade no mesmo balanço de 1942.

A explicação do escritor poderia ser aplicada a uma onda de questionamentos (a propósito do centenário da Semana) quanto ao excesso de espaço que São Paulo ganhou como locomotiva do modernismo brasileiro — o “paulistocentrismo”. Argumentam esses críticos, e com certa razão, que o modernismo já seria uma realidade em vários nichos culturais antes que os paulistas entrassem em cena fazendo estardalhaço. Nomes como João do Rio e Lima Barreto têm sido citados entre os modernos antes do modernismo, mas o fato é que se trataram de fenômenos individuais de expressão. O modernismo como uma mentalidade de grupo, como um programa e um discurso elaborado, como estratégia midiática e como produção e ação aconteceu mesmo foi em São Paulo.

Razões de ordem econômica e cultural são alinhadas para explicar o lócus paulista e paulistano pela especialista em história da arte moderna e contemporânea Andreia Vigo e pelo professor de literatura brasileira da Universidade Federal Paulista (Unifesp) Pedro Marques Neto, mestre e doutor em teoria e história literária e pós-doutor em culturas e identidades brasileiras. Ele coordena o projeto Literatura Brasileira do Século XXI, e ela é a gestora do projeto Modernismo Hoje, da Secretaria de Cultura e Economia criativa do Estado de São Paulo.

— Essa questão tem uma abrangência social e econômica. São Paulo estava vivendo um processo de industrialização, de urbanização, tinha uma economia muito pujante, a do café. Então teve uma conjunção de fatores que levou [à Semana]: a exposição da Anita Malfatti em 1917, que já trouxe o tema da modernização da arte à tona, com uma série de polêmicas, o grupo de artistas de São Paulo que começou a fomentar esse tema. Mário de Andrade foi um grande articulador, junto com outros. Além disso, as academias de arte estavam no Rio. Então, São Paulo, de certa forma, não tinha essa mediação da academia, da arte acadêmica, que foi o grande contraponto da arte moderna — disse Andreia Vigo ao programa Autores e Livros, da Rádio Senado (veja como acessar no Saiba Mais, abaixo).

Também no Autores e Livros, Pedro Marques aprofunda a comparação com o Rio:

— A gente pode pensar que aconteceu [em São Paulo] algo semelhante ao que aconteceu no Rio no século 19, quando a corte portuguesa vem pro Brasil e encontra uma elite econômica muito endinheirada, inclusive mais endinheirada que a própria rede portuguesa, porém culta. Essa elite carioca, ou brasileira, que se reunia no Rio de Janeiro, vai construir academias, vai chamar missões francesas, tudo com colaboração de D. João, depois com os “Pedros”, e a capital do Império vai precisar se modernizar arquitetonicamente, artisticamente, literariamente, tudo o mais. No começo do século 20, São Paulo era uma cidade muito provincial, comparada com o Rio de Janeiro. Então, essa elite do café, representada fortemente pelo próprio Paulo Prado, não tinha instituições culturais, não tinha uma arte que a representasse em São Paulo. Tanto que o Mário de Andrade vai dizer que o modernismo foi uma arte aristocrática, que foi aristocracia do café que vai tentar ombrear, além de economicamente, culturalmente, literariamente [com o Rio]. São Paulo tinha essa busca, de não se conformar de só ser uma elite econômica e política dentro daquela estratégia do Café com Leite, da alternância dos presidentes. Também queria ombrear com o Rio e aparecer para o Brasil como uma potência cultural também. A Semana de 22 é um evento que marca isso. É um processo que vai ser disparado nos anos 1910, que vai ter alguns pontos culminantes. O da construção do Teatro Municipal é um deles. O principal é a Semana de 22.

O próprio Mário de Andrade fornece leituras desse big bang quando alude ao ambiente paulista mais favorável à infecção modernista: uma sociedade já bafejada pela industrialização, que em 1921 veria se erguer no Bairro do Bom Retiro a primeira fábrica de automóveis propriamente dita do Brasil, com uma linha estruturada para a montagem de 4,7 mil veículos Ford, incluindo o icônico Modelo T, e 360 tratores por ano. Nesse ambiente de aproximadamente 65 mil prédios e 650 mil pessoas, respirava-se um provincianismo receptivo ao novo que era importado da Europa. O escritor entra em uma série de minúcias sociológicas sobre as diferenças entre sua cidade e o Rio, mas o que se depreende do depoimento é que o modernismo, como um reflexo de sociedades que se lançavam numa nova etapa econômica e tecnológica, tinha mais campo em meios urbanos nos quais essas condições estivessem mais avançadas.

Por outro lado, houve uma disciplina e uma sistematização, poder-se-ia dizer, anárquica, na gestação do modernismo, que não começou nem parou na Semana. Os paulistas fizeram daquele projeto o projeto de suas próprias vidas e se lançaram à luta de maneira selvagem, espírito de batalhão que pretende tomar o castelo ao inimigo de qualquer maneira: estudos, pesquisas, poemas, quadros, tudo era compartilhado em saraus (os célebres “salões” periódicos) e reuniões festivas, na cidade e no campo. Houve viagens em grupo, a mais famosa delas às cidades barrocas mineiras, e os “inocentes” bailes no Automóvel Club.

Ônibus-biblioteca, programa idealizado por Mário de Andrade e em operação até na hoje na cidade de São Paulo (foto: Casa da Imagem de São Paulo)A despeito das divergências de origem e de percurso, o espírito de grupo foi determinante para que o movimento ganhasse corpo e repercussão no tempo. Mário de Andrade confessou duas décadas depois que, não fosse o apoio dos companheiros, não teria feito uma conferência nas escadarias do Municipal sob vaias e xingamentos de desconhecidos.

E houve também muita institucionalização, com criação da Sociedade Paulista de Arte Moderna, movimentos subsequentes (Antropofágico, Pau Brasil, Verde-amarelo) e revistas com vida relativamente longa. Posteriormente, numa espécie de conversão da ideologia em ação, alguns modernistas ocuparam cargos públicos, especialmente Mário de Andrade e Villa-Lobos, nos quais buscaram emplacar, na forma de políticas públicas, as teses que discutiam quando da orgíaca e explosiva fetação, tempo no qual cuidavam, na aparência, mais de destruir. Ainda vigora até hoje, por exemplo, o programa do ônibus-biblioteca para atendimento de bairros populares que Mário criou em sua gestão à frente da Secretaria Municipal de Cultura paulistana. Do mesmo modo, o ensino musical público ecoou por muitos anos as estratégias do maestro carioca, que foi arrebanhado para a Semana pela metrópole rival.

Aquele que é considerado entre todos o mais modernista, Oswald de Andrade, ainda tentou entrar para a política convencional já ao fim da vida, mas sua tentativa de se eleger deputado falhou. Será lembrado mesmo por seu anarquismo congênito, por sua originalidade, seus modos iconoclastas, sua radicalidade na defesa de uma poesia concisa e torneada para a guerrilha e sua voluptuosidade, que o envolveu em vários relacionamentos. Ironicamente, o número 67 (atual 452) da Rua Líbero Badaró, apartamento onde funcionou a celebre garçonnière de Oswald de Andrade, é ocupado atualmente por uma escola de formação de bombeiros civis, conforme o guia e professor de Turismo Laercio Cardoso de Carvalho. “Ali, em 1917, era o local onde vários modernistas se reuniam. Falavam de tudo, política, arte, projetos literários, isto é, quando Oswald de Andrade, o responsável pelo apartamento, não estava utilizando o local para encontros amorosos”, conta Carvalho em seu site A Vida no Centro.

Ó, criadores das elevações artificiais do destino, eu vos maldigo!
A Felicidade do homem é uma felicidade guerreira, tenho dito!
Viva a Rapaziada! O gênio é uma longa besteira!

Na São Paulo dos anos 1920, a linha de montagem da Ford como atração turística, comércio sofisticado, o grandioso Teatro Municipal e a presença de automóveis: ingredientes socioeconômicos do modernismoA despeito desse comportamento mais solto de Oswald, as diversões do grupo, conforme Mário de Andrade, não tinham a atmosfera dionisíaca das suas manifestações artísticas e dos seus manifestos. Antes, eram bem comportadas e regadas apenas a álcool, o que tornava a fluida sexualidade de Mário uma questão de cunho privado, mas que com o passar do tempo foi marcada pela implicância crescente de seu companheiro de lutas.

No início, contudo, o clima era outro, nas palavras do próprio Mário:

O período ‘heroico’ do movimento que traria tão maior necessidade coletiva às artes nacionais, foi esse iniciado com a exposição expressionista de Anita Malfatti e acabado com a ‘festa’ da Semana de Arte Moderna. Durante essa meia dúzia de anos fomos realmente puros e livres, desinteressados, vivendo numa união iluminada e sentimental das mais sublimes. Isolados do mundo, caçoados, achincalhados, malditos, ninguém pode imaginar o delírio de grandeza e convencimento pessoal com que reagimos. O estado de exaltação gozado em que vivíamos era insopitável. Qualquer página de qualquer um de nós jogava os outros a acomodações prodigiosas, mas aquilo era genial! E eram aquelas fugas desabaladas dentro da noite, na cadillac verde de Osvaldo de Andrade, para ir ler as nossas obras-primas em Santos, no Alto da Serra, na Ilha das Palmas… E os nossos encontros à tardinha na redação de Papel e Tinta… E a falange engrossando com Sérgio Milliet e Rubens Borba de Morais, chegados da Europa… E a adesão, no Rio, de um Manuel Bandeira… E as convulsões de idealismo a que nos levava O Homem e a Morte de Menotti del Picchia… E o descobrimento assombrado de que existiam em São Paulo quadros de Lasar Segall, já muito querido através de revistas de arte alemãs… E Di Cavalcanti, um dos homens mais inteligentes que conheci, com os seus desenhos já então duma acidez destruidora. Tudo gênios, tudo obras-primas geniais… Apenas Sérgio Milliet punha um certo mal-estar no incêndio com a sua serenidade equilibrada… E o filósofo do grupo, Couto de Barros, pingando ilhas de consciência em nós, quando no meio da discussão, perguntava mansinho: — Mas qual é o critério que você tem da palavra “essencial”, ou — Mas qual é o conceito que você faz do ‘belo horrível’… Éramos uns puros. Mesmo cercados de repulsa cotidiana, a saúde mental de quase todos nós nos impedia qualquer cultivo da dor. Nisso talvez as teorias futuristas tivessem uma influência única e benéfica sobre nós. Ninguém pensava em sacrifício, nenhum se imaginava mártir: éramos uma arrancada de heróis convencidos, uns hitlerzinhos agradáveis. E muito saudáveis.

Tanta energia só poderia ter criado uma matriz de copiosos frutos (ver infografia), impensáveis ou não para esses aventureiros de estofo intelectual invejável em qualquer nação. Apesar disso, talvez em função das transformações imediatas que nunca vieram — uma delas foi o fracasso da ansiada “língua brasileira” — ou dos revides que nunca cessaram — Oswald foi chamado insultuosamente de antropófago até o fim —, os dois tiveram um epílogo regado de amarguras. Mário lamentava o estado d’arte do país e não ter incorporado de forma mais incisiva e orgânica à sua obra os grandes dramas humanos. Considerava que seus escritos se deixaram levar demais pelo ativismo do próprio movimento modernista, pelas necessidades coletivas daquelas batalhas, negando espaço ao que era mais profundo dos pontos de vista pessoal e universal. Era um rigor explicável em alguém com a inteligência dele.

O país, no entanto, não tem do que se queixar. Mário de Andrade nos deu literatura e força transformadora incomum para um poeta a princípio parnasiano, que chegou a estranhar a máquina de escrever. E nos deu uma simbolização e uma explicação para a nossa alma (Macunaíma). De quebra, ele, que se dizia “trezentos, trezentos e cinquenta”, nos deu benfeitorias que até hoje não conseguimos pagar, entre as quais as políticas de documentação e preservação de bens culturais e a da biblioteca itinerante, as duas com mais de 80 anos.

Oswald nos deu o chumbo da irreverência para prosseguirmos combatendo a modorra acomodatícia e promovendo novas revoluções estéticas. A “contribuição milionária de todos os erros”. E tudo o mais da Semana e seus seguimentos nos deram chão para pisar e ar para voar nos séculos 20 e 21. Nos deram o que lembrar e o que falar. Nos deram referências. O Abaporu é uma referência e tanto; as mulatas de Di Cavalcanti tingiram nossa teimosia branca. Villa-Lobos é o grande herói da música erudita brasileira, e as mulheres modernistas, Pagu incluída, nos deram, além de arte e cultura, um instrumental transgressor para não sucumbirmos ao machismo.

Mas, muito importante, na figura de Mário ganhamos um pai.

Um pai generoso que não vedava mais o banquete de Natal do seu célebre conto. O pai, a grande ausência sociológica brasileira, herança do colonialismo miscigenador à força ou na base da marotagem. Esse pai ausente que foi fazendo e deixando filhos no caminho. Ou os tinha perto e deles se ausentava; ou, quando era formalmente pai, negava aos filhos o deleite — por mesquinhez ou hipocrisia. Esse pai que não formou e que largou os filhos a se formarem pelos quintais e pelas ruas foi deixando um vazio de educação e proteção, de estímulo ao poder criador e realizador.

A essa missão e a esse sacrifício se colocou Mário de Andrade como um pároco sincrético, a quem cabe uma ninhada de órfãos: dedicou-se como herói de uma luta libertária, estudioso, documentarista (em sentido amplo), teórico, educador e promotor de políticas públicas que alargaram as fronteiras da produção e da divulgação cultural, passando pelo folclore, a expressão artística e linguística infantil e o estímulo ao desenho e fabrico de móveis de qualidade destinados ao povão — este um programa canônico em parceria com o arquiteto Gregori Ilych Warchavchik (1896-1972), responsável pelo projeto e construção da primeira residência moderna do país.

Outro front palmilhado pelo escritor foi o da troca constante de cartas com os mais diversos interlocutores para o debate de ideias, o estímulo a novos talentos e a formulação de estratégias de lutas contra o conservadorismo — malgrado o envolvimento burocrático de boa parte da intelectualidade e de artistas com governos nas três esferas administrativas. No legado epistolar de Mário, há, por exemplo, importante correspondência, já publicada em livros, com os pintores Di Cavalcanti e Tarsila do Amaral, com o poeta Carlos Drummond de Andrade e com o pesquisador e folclorista potiguar Câmara Cascudo.

A sobriedade, no entanto, o impediu de atrair para o modernismo, tanto quanto para si, as glórias de um desenvolvimento que teria se dado de qualquer modo, pelo mero impulso do processo histórico. Contudo, tinha muito claro a grandeza do que se construíra e do preço que se pagara por ela:

Já escreveu um autor, como conclusão condenatória, que ‘a estética do modernismo ficou indefinível’… Pois essa é a melhor razão de ser do modernismo! Ele não era uma estética, nem na Europa nem aqui. Era um estado de espírito revoltado e revolucionário que, se a nós nos atualizou, sistematizando como constância da Inteligência nacional o direito antiacadêmico da pesquisa estética e preparou o estado revolucionário das outras manifestações sociais do país, também fez isto mesmo no resto do mundo, profetizando esta contemporânea Guerra dos Cem Anos de que uma civilização nova nascerá. E hoje o artista brasileiro tem diante de si uma verdade social, uma liberdade (infelizmente só estética), uma independência, um direito a suas inquietações e pesquisas que, não tendo passado pelo que passaram os modernistas da semana, ele não pode imaginar que conquista enorme representa. Quem se revolta mais, quem briga mais contra o politonalismo de um Lourenço Fernandez, contra a arquitetura do Ministério da Educação, contra os versos ‘incompreensíveis’ de um Murilo Mendes, contra o expressionismo de um Guignard?…Tudo isto são manifestações normais, discutíveis sempre, mas que não causam o menor escândalo público. Pelo contrário, são as próprias forças governamentais que aceitam a realidade de um Portinari, de um Villa-Lobos, de um Lins do Rego, de um Almir de Andrade, pondo-os em cheque e no perigo constante das predestinações. Mas um Flavio de Carvalho, mesmo com as suas experiências numeradas, e muito menos um Clovis Graciano, mas um Camargo Guarnieri mesmo com as incompreensões que o perseguem, um Otávio de Faria com a crueza dos casos que expõe, um Santa Rosa, jamais não poderão suspeita[r] [ao] que nos sujeitamos, para que eles pudessem hoje viver abertamente o drama que os persegue. A vaia acesa, a carta anônima, o insulto público, a perseguição financeira…

Trata-se de um depoimento esclarecedor e emocionante. E nos dá a exata medida da conquista. Eis o legado da Semana de 22. Quem quiser, e puder, que faça outra.

A amplitude do labor artístico e literário do modernismo

Produção inclui pinturas, trabalhos gráficos e até a correspondência entre os ativistas do movimento

A Semana de Arte Moderna de 1922 (em tópicos)

O que foi: A pretexto de comemorar os 100 anos da Independência do Brasil, um grupo de literatos, artistas plásticos, músicos, intelectuais e arquitetos apresentaram para o público paulistano uma miscelânea de obras dentro de um contexto de manifesto em prol da quebra de padrões conservadores e do estabelecimento de novas possibilidades de expressão cultural. O objetivo de chocar, principalmente a burguesia, foi muito além do esperado. As propostas de ruptura com o passado e renovação da linguagem, simbolizadas, por exemplo, no poema Os Sapos, de Manuel Bandeira, provocaram vaias e outras manifestação de desapreço aos modernistas capitaneados pelos escritores Mário e Oswald de Andrade.

Quando: de 11 a 18 de fevereiro de 1922

Local: São Paulo (SP), Teatro Municipal

A gênese (“os anos heroicos”) — Para Mário de Andrade, a Semana marcou “uma data que envaidece”, mas a explosão do modernismo começou a ser gestada seis anos antes, durante encontros entre literatos, artistas e intelectuais que intuitivamente ousaram buscar algo novo. Eles tiveram em 1917, ainda durante a 1ª Guerra Mundial, um momento de culminância, com a badalada exposição de Anita Malfatti. Até mesmo a reação enfurecida de Monteiro Lobato contra a obra da artista colaborou para trazer dinamismo ao debate e aos insights e reflexões. Relatou Mário de Andrade em 1942: “Educados na plástica ‘histórica’, sabendo quando muito da existência dos primeiros impressionistas, ignorando Cézanne, o que nos levou a aderir incondicionalmente à exposição de Anita Malfatti, em plena guerra europeia, mostrando quadros expressionistas e cubistas? Parece absurdo, mas aqueles quadros foram para mim a revelação. (…) Pouco depois, Menotti del Picchia e Osvaldo de Andrade descobriram Brecheret no seu exílio do Palácio das Indústrias. E fazíamos verdadeiras ‘rêveries’ simbolistizantes em frente da simbólica exasperada e das estilizações decorativas do ‘gênio’. Porque Brecheret era para nós no mínimo um gênio”. De acordo com o escritor, o “grupinho” contava com Sérgio Milliet e Rubens Borba de Morais, “chegados da Europa”, e o filósofo Couto de Barros. E se beneficiou tanto da incipiente industrialização paulista quanto das origens rurais ainda presentes na cidade, o que trouxe a um ambiente acanhado a possibilidade de acolhimento ao novo, o que seria impossível no Rio de Janeiro, cidade em contato com o exterior pelo mar, mas, até, por isso, menos sujeita à sedução. De lá vieram os reforços de Manuel Bandeira, cujo livro Carnaval pode até ser considerado precursor do modernismo, na visão de Mário. O litoral mais à mão para aquela trupe era Santos, para onde ela descia no Cadillac verde de Oswald de Andrade. Contudo, o útero barulhento onde cresceu o embrião do modernismo em dimensão coletiva foi mesmo a Pauliceia Desvairada, título do poema escrito pelo futuro autor de Macunaíma ainda em 1920. Quanto a quem deu a ideia de realizar a semana, Mário diz que não se lembra. Conforme o escritor, se a autoria tiver de ser atribuída a alguém, que seja ao cafeicultor e mecenas Paulo Prado. Ele bancou o movimento, não só financeiramente, mas também colocou seu prestígio de aristocrata e intelectual a favor daquela causa disruptiva.

Principais participantes

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Obs: Na ocasião da Semana de Arte Moderna, Tarsila do Amaral, considerada um dos pilares do modernismo brasileiro, estava em Paris e não participou.

Fonte: Enciclopédia Itaú Cultural/Wikipedia

Princípios fundamentais*:

  • O direito à pesquisa estética
  • A atualização da inteligência artística brasileira
  • A estabilização de uma consciência criadora nacional

* definição de Mário de Andrade

Quem patrocinou: O cafeicultor, intelectual e mecenas Paulo Prado, que junto com outros integrantes da aristocracia paulista subsidiaram o aluguel do teatro.

Quem deu a ideia do local: Marinette da Silva Prado (ou Marie Lebrun), esposa de Paulo Prado. O grupo dos modernistas pretendia realizar os eventos em uma livraria, mas Marinette lembrou-se de um festival artístico a que comparecera na França e propôs algo em grande estilo. Prado então sugeriu que fosse utilizado o Municipal.

Como foi a relação com o Estado: O governador do estado de São Paulo à época, Washington Luís, apoiou o movimento. René Thiollier solicitou patrocínio oficial para levar do Rio de Janeiro Plínio Salgado e Menotti Del Picchia, membros do Partido Republicano Paulista, a agremiação política de Washington Luís.

A programação

(resumida)

1º DIA
13/FEV, SEGUNDA-FEIRA

Abertura oficial

Teatro Municipal de São Paulo lotado. Pinturas e esculturas estão expostas no saguão do teatro e provocam reações de espanto e até repúdio. Longa e abafada por ruídos, é proferida na primeira parte a conferência do escritor Graça Aranha intitulada A Emoção Estética da Arte Moderna, ilustrada com música de câmara de Villa-Lobos e poesia por Guilherme de Almeida e Ronald de Carvalho.  Na segunda parte, a conferência de Ronald de Carvalho intitulada A Pintura e a Escultura Moderna no Brasil, também seguida de apresentações musicais. As composições de Villa-Lobos foram interpretadas por Ernani Braga, Lucilia Villa-Lobos e Frutuoso de Lima Vianna (piano); Paulina d’Ambrosio e George Marinuzzi (violinos); Orlando Frederico (alto); Alfredo Gomes (violoncelo); Alfredo Carazza (basso); Pedro Vieira (flauta); Antão Soares (clarino).

2º DIA
15/FEV, QUARTA-FEIRA

Palestras de Menotti del Picchia sobre a arte e estética e de Renato Almeida (Perennis poesia). Apresentações musicais, com destaque para a pianista Guiomar Novaes, usual intérprete do romântico Chopin, mas que naquela noite apresenta peças de Debussy, o inconformista a quem se credita a gênese da música moderna. Alguns números são acompanhados pela bailarina Yvonne Daumerie. Ao elenco musical da primeira noite, somam-se os cantores Frederico Nascimento Filho e Mário Emma. Menotti apresenta os novos escritores, recebidos com aplausos, vaias, miados, latidos, grunhidos, relinchos. O poeta Agenor Fernandes Barbosa é o único aplaudido. Também são recitadas poesias e trechos de prosa por Oswald de Andrade, Luís Aranha, Sérgio Milliet, Tácito de Almeida, Ribeiro Couto, Mário de Andrade e Plínio Salgado. O evento termina em gritaria quando Ronald de Carvalho declama o poema Os Sapos, de Manuel Bandeira, e parcela do público entoa um coro para atrapalhar. O poema faz justamente uma crítica ao parnasianismo, estilo visto pelos modernistas como ultrapassado por causa do rigor com métrica e rimas. Depois de quase não ser ouvido ao recitar poemas no palco, Mário de Andrade pronuncia “hórrida conferência” na escadaria do teatro, na qual defende o abrasileiramento da língua portuguesa, enquanto “anônimos” o “caçoavam e ofendiam a valer”.

3º DIA
17/FEV, SEXTA-FEIRA

Público reduzido e clima de mais tranquilidade. A noite tem apresentação de Villa-Lobos, vindo do Rio de Janeiro, e o elenco de músicos presentes nas noites anteriores, além das Historietas de Ronald de Carvalho. Calçando sapato em um pé e chinelo no outro, por causa de um calo inflamado, o futuro compositor das Bachianas é vaiado pelo público, que viu na assimetria de calçados um comportamento rebelde e transgressor.

As gerações subsequentes

Geração de 30 — A segunda fase do modernismo brasileiro compreende o período de 1930-1945, contexto histórico de grandes conflitos sociais e políticos, entre os quais a Revolução de 1930, a Revolução Constitucionalista de 1932 e a 2ª Guerra Mundial. Os escritores apontados como pertencentes a essa fase marcaram suas obras por conflitos espirituais, pela reflexão sobre o tempo de então e uma postura realista em relação ao quadro político e social. Na poesia, os principais nomes foram Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles, Vinicius de Moraes, Murilo Mendes e Jorge de Lima, que exercitaram a liberdade formal inaugurada pelos modernistas da primeira geração. No campo da prosa, romancistas como Graciliano Ramos, Jorge Amado, José Lins do Rego, Erico Verissimo e Rachel de Queiroz se caracterizaram por engajamento político e a abordagem de temas sociais de cunho regionalista.

Geração de 45 — Conhecida como a terceira geração modernista, a Geração de 1945 desenvolveu-se em um contexto histórico de maior otimismo, o que possibilitou experiências literárias com maior ênfase na estética, ainda que temas sociais, políticos e regionais aparecessem também nas obras desse período. A pesquisa estética, especialmente acerca da própria linguagem literária, e a experimentação resultaram em conteúdos e formas inovadoras. Destacam-se os seguintes nomes: João Cabral de Melo Neto e Mario Quintana na poesia; Ariano Suassuna, no teatro; e Guimarães Rosa, Clarice Lispector e Lygia Fagundes Telles, na prosa.

Concretismo e neoconcretismo — O desenvolvimentismo dos anos 50, com a construção de Brasília, a abertura de estradas e a criação de indústrias criou um momento de grande otimismo e inovação, durante o qual foi engendrada uma poesia que buscava dar ao poema um caráter de objeto, para superar a “tirania do verso” e suas fórmulas desgastadas, em crise. Segundo a Enciclopédia Itaú Cultural, “o poema-objeto se estruturava em elementos como a disposição não linear dos vocábulos na página (ou em outros suportes), o uso do espaço em branco como produtor de sentidos e a utilização de elementos visuais e sonoros”. Seus expoentes foram Augusto de Campos (1931), Haroldo de Campos (1929-2003) e Décio Pignatari (1927-2012), que em seu primeiro manifesto mencionaram como precursores e influenciadores Oswald de Andrade e João Cabral de Melo Neto (1920-1999), poeta da Geração de 45, mas responsável por uma “arquitetura funcional do verso”. O concretismo alcançou dois dos três princípios que guiaram a Semana de 1922: o direito à pesquisa estética e a atualização da inteligência artística brasileira. A poesia concreta estabeleceu igualmente relações com as matrizes urbanísticas e arquitetônicas presentes na concepção de Brasília. A princípio também se filiaria ao Concretismo o poeta Ferreira Gullar, que depois equilibrou a abordagem racionalista com imersão em questões sociais e políticas (“vida real”), movimento que denominou de neoconcretismo.

Poesia Pau-Brasil — Primeiro desdobramento da Semana de 22 empreendido por Oswald de Andrade, o movimento da Poesia Pau-Brasil propôs, do mesmo modo que o seguinte, a Antropofagia, um processo de libertação cultural que tivesse como consequência uma nova poética. Livre dos ranços de modelos estrangeiros conservadores e de suas congêneres nacionais, o poema deveria assumir sua brasilidade por meio de uma abordagem ao mesmo tempo primitivista, ingênua, mas se beneficiando da rebelião modernista europeia. Só por esse caminho, o país chegaria a uma cultura de exportação, que Oswald batizou com o nome do nosso primeiro produto de exportação, a árvore pau-brasil, mas dentro de uma ótica libertária e independentista, já que a exploração de madeira no período colonial foi, na verdade, danosa aos interesses do Brasil. Embora repudiando o rebuscamento dos “doutores” e aconselhando o uso da linguagem espontânea do povo e a expressão da realidade concreta das ruas, o escritor delineia o que entende ser fundamental para se chegar ao novo produto em seu manifesto de 1924, publicado no jornal Correio da Manhã. Um desses elementos seria a concisão, característica que veio a marcar a poesia de futuros herdeiros do legado da semana, como Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, os concretistas e Manoel de Barros. Outros desses elementos seriam a invenção, por meio dos neologismos, e a surpresa.

Antropofagia — O movimento nasceu como o segundo desdobramentos da Semana de 22 liderado por Oswald de Andrade, que redigiu e divulgou o Manifesto Antropófago (ou Manifesto Antropofágico). Lido em 1928 para seus amigos na casa de Mário de Andrade, foi publicado na Revista de Antropofagia, fundada por Oswald com Raul Bopp e Antônio de Alcântara Machado e datada do “ano 374 da deglutição do Bispo Sardinha”. Como atualização do primitivismo da geração de 22, Oswald afirma: “Só a ANTROPOFAGIA nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz. Tupy or not tupy, that is the question”. Ele propõe deglutir o legado cultural europeu e digeri-lo sob a forma de uma arte tipicamente brasileira. O manifesto configurou uma das reações formais por parte de intelectuais brasileiros em prol de uma produção artística autenticamente nacional, mas continha o paradoxo da absorção, de uma maneira subversiva e revolucionária, do que fora imposto pelo colonizador.

Movimento Verde-Amarelo — O Movimento Verde-Amarelo (ou Verde-amarelismo) foi uma empresa literária modernista capitaneada a partir de 1926 por Cassiano Ricardo, Menotti Del Picchia, Plínio Salgado e Alfredo Élis. Propunha um nacionalismo puro: sem interferência de características europeias, com tendências nativistas. Seu lema era “Originalidade ou Morte!”.  Veio à luz por meio da conferência A Anta e o Curupira, proferida por Plínio Salgado em resposta ao Manifesto da Poesia Pau-Brasil (1924) — que, na visão “verde-amarelos”, estava prenhe de um “nacionalismo afrancesado”, expresso principalmente por Oswald de Andrade. O grupo dos verde-amarelos, por sua vez, via no retorno ao passado o manancial das nossas verdadeiras tradições e no povo, de índole pacífica, a alma da nacionalidade, a ser guiada por elites político-intelectuais. Segundo informa o Centro de Pesquisa e Documentação da Fundação Getulio Vargas (CPDOC/FGV), o grupo formou “a vertente conservadora do movimento modernista”.  Plínio Salgado fundaria em 1932 a Ação Integralista Brasileira, de inspiração fascista, e Cassiano Ricardo, o bandeirismo. O movimento propunha o fortalecimento do Estado, o que resultou em apoio à ditadura Vargas, posicionando-se contra o comunismo e o fascismo, e a defesa das fronteiras geográficas e culturais do país, para evitar a penetração de ideologias consideradas “alienígenas”.

No entender dos verde-amarelos, o ingresso do Brasil na modernidade implicava o rompimento radical com toda herança cultural europeia, mas a contrapartida política era o autoritarismo, “condição imprescindível para a independência cultural e política do país”. Os verde-amarelos defendiam suas ideias por meio de artigos publicados no do jornal Correio Paulistano. Em 1927, esses artigos foram reunidos em uma coletânea com o título O Curupira e o Carão. Em maio de 1929, o grupo publicou o manifesto Nhengaçu Verde Amarelo, em que defendia a integração étnico-cultural sob o domínio da colonização portuguesa, o nacionalismo sentimental e o predomínio das instituições conservadoras. Marcando uma diferença com as demais vertentes modernistas, os verde-amarelos situavam o ano de 1921 como o ponto de partida de uma luta contra “a velha retórica verbal”, mas sem submissão a “um nova retórica” com “três ou quatro regras, de pensar e de sentir”. E concluíam: “Queremos ser o que somos: brasileiros. Barbaramente, com arestas sem autoexperiências, sem psicanálises e nem teoremas”, numa alusão às referências freudianas de Oswald. Este escreveu um artigo intitulado Antologia no Jornal do Comércio, no qual respondeu ao verde-amarelismo com sátiras, usando palavras que começavam ou terminavam com “anta”.

Principais publicações próprias

Revista Klaxon — Publicação mensal de arte moderna que circulou em São Paulo de maio de 1922 a janeiro de 1923, cujo nome é derivado do termo usado para designar a buzina externa dos automóveis. O principal propósito da revista foi servir de divulgação para o movimento modernista. Nela colaboraram nomes como Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Oswald de Andrade, Menotti del Picchia, Di Cavalcanti, Anita Malfatti, Sérgio Buarque de Holanda, Tarsila do Amaral e Graça Aranha, entre outros artistas e escritores. A Klaxon buscava o atual e cultuava o progresso, além de conceber um tipo de arte não fosse mera cópia da realidade. Aproveitava-se assim das lições da emergente arte do cinema.

Revista de Antropofagia — Publicação criada como consequência do Manifesto Antropófago. Teve duas fases, ou “dentições”, na terminologia de seus participantes. A primeira, sob a direção de Alcântara Machado e Raul Bopp, constou de dez números publicados, que circularam de maio de 1928 a fevereiro de 1929, tendo como colaboradores muitos dos participantes da Semana, sem distinção de programa estético ou político, e novos modernistas: Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Menotti del Picchia, Plínio Salgado, Jorge de Lima, Carlos Drummond de Andrade, Oswaldo Costa, Murilo Mendes, Augusto Meyer, Pedro Nava. “A Revista de Antropofagia não tem orientação ou pensamento de espécie alguma: só tem estômago”, era o lema dessa primeira fase. A segunda “dentição”, sob liderança de Geraldo Ferraz, teve 15 números publicados no jornal Diário de São Paulo entre março e agosto de 1929. Apresentava uma linha ideológica mais definida e foi caracterizada por críticas agressivas a literatos e artistas modernistas. O lema era: “Não fazemos crítica literária. Intriga, sim!”. A agressividade de Oswald de Andrade terminou por causar uma ruptura e o afastamento de colaboradores da Revista, como Mário de Andrade e Drummond. Além de Oswald, mantiveram-se na revista os “antropófagos” Raul Bopp, Geraldo Ferraz, Tarsila do Amaral e Patrícia Galvão (Pagu).

Ações

Viagens de pesquisas — Em busca de conhecer o Brasil “por dentro”, Mário de Andrade viajou ao Nordeste e ao Norte em 1927, de maneira descompromissada. Em 1928 e 1929, retornaria ao Nordeste para fazer um trabalho de pesquisa de contornos mais formais. Essas viagens foram batizadas pelo próprio Mário de “etnográficas”. Em 1938, quando ocupava o cargo de secretário de Cultura do município de São Paulo, transformaria essas pesquisas etnográficas numa política pública ao enviar ao Nordeste e ao Norte uma equipe para registrar, em vários meios, inclusive audiovisuais, diversas manifestações culturais populares, como o cabocolinho, o catimbó e o bumba-meu-boi. Mário de Andrade também colheu pessoalmente registros quando de suas primeiras viagens: fotografou, fez gravações e anotou cantos populares em partituras, já que tinha formação musical erudita. Do ponto de vista da criação, os conhecimentos que obteve nessas viagens o inspiraram e municiaram para escrever poemas, prosa e canções. O romance-lenda Macunaíma é um dos frutos das expedições etnográficas. A modinha Viola Quebrada é outro. Segundo o historiador e pesquisador José Bento de Oliveira Camassa, “a viagem pela Amazônia alimentou profundamente os projetos estéticos e políticos de Mário de Andrade, especialmente no que tange à concepção da brasilidade como fenômeno cultural sincrético e atinente à experiência popular cotidiana”.

Alguns conceitos

Língua brasileira — A ideia dos modernistas de fomentarem a larga aceitação de uma língua tipicamente brasileira, livre de regras rígidas de gramática e sintaxe, principalmente, e liberta de todo e qualquer arcaísmo herdado do português de Portugal já estava presente na Semana de 22 e prosseguiu em diversos projetos literários, culturais e intelectuais posteriores, como nos manifestos de Oswald de Andrade. A incorporação do vocabulário popular, recheado de termos e expressões com origem nas culturas indígena e africana, era um cavalo de batalha para os modernistas, mas eles queriam ir além: erguiam-se pela circulação, sem censura acadêmica ou educacional, dos modos de organização da língua falada e escrita pelo povo. “O problema verdadeiro não é vocabular, é sintáxico”, afirmou Mário de Andrade em artigo de 1942 publicado no jornal O Estado de S. Paulo. Um exemplo muito discutido da pretendida sintaxe é o uso do pronome oblíquo átono ‘me’ antes do verbo. A regra culta dá como correto o uso do pronome depois do verbo quando este inicia a frase, mas popularmente é comum iniciar-se a oração com um “me diga aí como vai a família…”.  Contrações de termos como a preposição ‘para’ (pra) e o verbo ‘está’ (tá) eram muito malvistas à época da Semana e ainda hoje não são recomendadas pelos gramáticos — especialmente no caso da língua escrita. Segundo Mário de Andrade, a “língua brasileira não vingou” por falta de trabalhos científicos que a amparassem, gerando um novo código com a sanção dos estudiosos e eruditos. “O espírito modernista reconheceu que se vivíamos já de nossa realidade brasileira, carecia reverificar nosso instrumento de trabalho para que nos expressássemos com identidade. Inventou-se, do dia pra noite, a fabulosíssima “língua brasileira”. Mas ainda era cedo, e a força de elementos contrários, principalmente a ausência de órgãos científicos adequados, reduziu tudo a boataria. E hoje, como normalidade de língua culta e escrita, estamos em situação inferior à de cem anos atrás”. No artigo ele criticou o recuo de modernistas que voltaram a usar “lusitanismos ridículos”.

O Biscoito fino — Trata-se de mais uma das inventivas expressões criadas por Oswald de Andrade. Ao argumentar que o povo tinha potencial para compreender e consumir conteúdos culturais bem elaborados, e não apenas o que lhe reservava uma descuidada máquina de vendas, o escritor classificou sua própria produção literária de “biscoito fino”. Conforme artigo Do brado ao canto (sem autoria), publicado no site do Museu Lasar Segall, a frase várias vezes modificada em citações é a seguinte: “A massa, meu caro, há de chegar ao biscoito fino que eu fabrico. […] Descrer da capacidade de compreensão da massa é descrer do próprio progresso revolucionário”. O trecho é da “Carta a Afrânio Zuccolotto”, publicada na revista Ritmo, número único, de novembro de 1935.

Poema-piada — Também chamado de poesia-piada, designa um tipo de poesia curta e, sob diversos aspectos, cômica, mas de uma comicidade irônica, zombeteira ou ácida, criado nos primórdios do modernismo e que teve como dois de seus maiores expoentes Oswald de Andrade e Carlos Drummond de Andrade. Manuel Bandeira também a exercitou, tendo provocado o primeiro escândalo com seu poema Os Sapos, ainda que este seja um pouco mais longo do que os poemas-piada típicos. Em tempos mais recentes, Paulo Leminski (1944-1989) e Nicolas Behr (1958) publicaram poemas nessa linha. O termo teria sido cunhado por Sérgio Milliet e procura abarcar as manifestações de irreverência e desprezo dos modernistas em relação ao parnasianismo e suas formas excessivamente rígidas, mas também ao conservadorismo em geral. Cota Zero, de Drummond, tem sido mencionado como um  exemplo de poema-piada:

Stop.
A vida parou
ou foi o automóvel?

Compare um poema parnasiano com um moderno

A um Poeta
Olavo Bilac

Longe do estéril turbilhão da rua,
Beneditino escreve! No aconchego
Do claustro, na paciência e no sossego,
Trabalha e teima, e lima, e sofre, e sua!

Mas que na forma se disfarce o emprego
Do esforço: e trama viva se construa
De tal modo, que a imagem fique nua
Rica mas sóbria, como um templo grego

Não se mostre na fábrica o suplício
Do mestre. E natural, o efeito agrade
Sem lembrar os andaimes do edifício:

Porque a Beleza, gêmea da Verdade
Arte pura, inimiga do artifício,
É a força e a graça na simplicidade

Análise

Um dos sonetos mais famosos de Olavo Bilac, este parece ser um recado a um poeta, no qual o sujeito transmite a sua visão e os seus conselhos acerca do ofício da escrita. Ele apresenta o processo da criação poética como um trabalho duro, complicado, sofrido até. No entanto, deixa claro que, na sua opinião, esse esforço não deve ficar evidente no produto final. Apesar de todos os modelos que a poesia impunha naquela época, o eu-lírico defende que o “suplício do mestre” não deve ser visível para o leitor. Ele acredita que a obra terminada deve parecer fruto de um processo natural e harmonioso. Isto porque, na sua perspectiva, a beleza estaria na ausência dos artifícios, naquilo que é aparentemente simples, mesmo que o processo que esteve na sua origem tenha sido extremamente complexo.

Fonte: Carolina Marcello, Mestre em Estudos Literários, Culturais e Interartes, em Cultura Genial

Os Sapos
Manuel Bandeira

Enfunando os papos,
Saem da penumbra,
Aos pulos, os sapos.
A luz os deslumbra.

Em ronco que aterra,
Berra o sapo-boi:
— “Meu pai foi à guerra!”
— “Não foi!” — “Foi!” — “Não foi!”.

O sapo-tanoeiro,
Parnasiano aguado,
Diz: — “Meu cancioneiro
É bem martelado.

Vede como primo
Em comer os hiatos!
Que arte! E nunca rimo
Os termos cognatos.

O meu verso é bom
Frumento sem joio.
Faço rimas com
Consoantes de apoio.

Vai por cinquenta anos
Que lhes dei a norma:
Reduzi sem danos
A fôrmas a forma.

Clame a saparia
Em críticas céticas:
Não há mais poesia,
Mas há artes poéticas…”

Urra o sapo-boi:
— “Meu pai foi rei!” — “Foi!”
— “Não foi!” – “Foi!” — “Não foi!”.

Brada em um assomo
O sapo-tanoeiro:
— A grande arte é como
Lavor de joalheiro.

Ou bem de estatuário.
Tudo quanto é belo,
Tudo quanto é vário,
Canta no martelo”.

Outros, sapos-pipas
(Um mal em si cabe),
Falam pelas tripas,
— “Sei!” — “Não sabe!” — “Sabe!”.

Longe dessa grita,
Lá onde mais densa
A noite infinita
Veste a sombra imensa;

Lá, fugido ao mundo,
Sem glória, sem fé,
No perau profundo
E solitário, é

Que soluças tu,
Transido de frio,
Sapo-cururu
Da beira do rio…

Análise

Os versos fazem uma sátira ao movimento parnasiano, que precedeu o modernismo. Bandeira consegue reproduzir as características essenciais defendidas pelos parnasianos, mantendo a métrica regular e preocupação com a sonoridade, imitações que neste caso estão a serviço da rejeição à poesia parnasiana. Os versos trabalham com a ironia e com a paródia a fim de despertar o público para a necessidade de ruptura e transformação da poesia. O poema é metalinguístico porque fala da própria poesia, ou melhor, daquilo que a poesia não deveria ser. Os sapos, que refletem sobre o que supostamente é a arte e o bom poema, são metáforas dos diferentes tipos de poetas. O sapo-tanoeiro é um típico exemplar do poeta parnasiano, que destila as regras de composição: para ele, a grande poesia é como o ofício de um joalheiro, há que se lapidar com precisão e paciência. O sapo-cururu, por sua vez, é uma representação do poeta modernista que aspira por liberdade e reivindica a simplicidade e o uso de uma linguagem cotidiana.

Bandeira, através da paródia, critica a preocupação excessiva dos parnasianos com o aspecto formal da linguagem, estilo que para ele deveria ser ultrapassado. Outra característica importante do poema é o humor. A própria circunstância — sapos refletindo sobre os estilos de poesia — já é por si só hilariante. A criação foi tão essencial para os modernistas que Sérgio Buarque de Holanda chegou a definir o poema como hino nacional do modernismo. Nas estrofes, contudo, vemos aquilo que o poema não deve ser, embora os novos rumos ainda não estejam propriamente sugeridos nos versos.

Fonte: Rebeca Fuks, doutora em estudos da cultura, em Cultura Genial

Cantiga do Sapo — Jackson do Pandeiro

A aventura

Além do desafio de se colocarem diante de plateias estupefatas, ou mesmo hostis, os modernistas viveram seu grande momento em ritmo frenético e com sabor de descoberta, como mostra depoimento de Mário de Andrade, em artigo de avaliação publicado em 1942: “A bem dizer, todo esse período destruidor do movimento modernista foi uma fase ininterrupta de festa, de cultivo do prazer. E se tamanha festança diminuiu por certo muito nossa capacidade de produção e serenidade criadora, ninguém pode imaginar como nos divertimos. Salões*, festivais, bailes, Spam**, semana em fazendas, Semanas Santas nas cidades velhas de Minas, viagens pelo Amazonas, pelo Nordeste, chegadas à Bahia, Itu, Sorocaba. Parnaíba. Era, ainda e sempre, o caso do baile sobre os vulcões… Doutrinários na ebriez de mil e uma teorias salvando o Brasil, construindo o mundo, na verdade nos consumíamos no cultivo amargo de uma necessidade quase delirante de prazer”.

* Reuniões periódicas de literatos, artistas, intelectuais e pessoas de projeção social. O primeiro teve lugar na casa do próprio Mário de Andrade, nas terças, à noite, na Rua Lopes Chaves, bairro da Barra Funda. Essa reunião semanal continha exclusivamente artistas e precedeu até a Semana de Arte Moderna. “Sob o ponto de vista intelectual foi o mais necessário dos salões, se é que se podia chamar salão aquilo. Às vezes 12, até 15 artistas se reuniam no estúdio acanhado, onde comíamos doces tradicionais brasileiros e se bebia um alcoolzinho econômico. As discussões chegavam a transes agudos, o calor era tamanho que um ou outro sentava nas janelas (não havia assento para todos!), e assim mais elevado dominava pela altura, já não dominava pela voz nem o argumento”, relatou Mário de Andrade. Também foram realizados salões na residência de Paulo Prado, à Avenida Higienópolis; de Olivia Guedes Penteado, na Rua Duque de Caxias; e de Tarsila do Amaral, na Alameda Barão de Piracicaba.

** A Sociedade Pró-Arte Moderna (Spam) se propunha a promover manifestações artísticas orientadas para o modernismo brasileiro. Foi criada um mês depois de reunião de seus idealizadores na casa do arquiteto Gregori Warchavchik, em novembro de 1932. Juntamente com participantes da Semana, reuniu artistas e personagens influentes da alta sociedade paulistana, como Lasar Segall, Camargo Guarnieri, Tarsila do Amaral, Hugo Adami, Rossi Osir, Vittorio Gobbis, Wasth Rodrigues, Olívia Guedes Penteado e Paulo Mendes de Almeida. As finalidades da Spam eram estreitar as relações entre os artistas e as pessoas que se interessavam pela arte em todas as suas manifestações; promover exposições, concertos, conferências, reuniões literárias e organizar anualmente o mês da arte.

Mário de Andrade na Praia do Chapéu Virado, em Belém (PA). Foto: Mário de Andrade/Acervo IEB-USP)Os frutos

Proteção do patrimônio histórico e artístico — A atenção dos modernistas para as raízes culturais brasileiras mais legítimas está entre os fatores decisivos para a criação de uma consciência acerca do patrimônio histórico e artístico nacional. Essa influência, entretanto, foi além do fomento provocado pelos debates e do ativismo dos modernistas, que antes e depois de empreender o projeto da Semana de 22 fizeram peregrinações a importantes nichos culturais. Uma dessas viagens, em 1924, foi a “expedição cultural” pelas cidades históricas de Minas Gerais (Sabará, Ouro Preto, Congonhas do Campo, São João del-Rei, Tiradentes). Em meio à redescoberta do barroco mineiro, os modernistas despertaram particularmente para as obras do Aleijadinho. O primeiro órgão voltado à preservação do patrimônio no Brasil foi criado em 1933 — mesmo ano em que Ouro Preto, antiga Vila Rica, principal cidade do Ciclo do Ouro nas Minas Gerais, foi decretada “monumento nacional” sob a guarda da Inspetoria de Monumentos Nacionais (IMN). Em 1937, O IPM seria substituído pelo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan), precursor do atual Iphan, criado a partir de discussões promovidas pelo Ministério da Educação, nas quais Mário de Andrade teve papel crucial, juntamente com o advogado Rodrigo Melo Franco de Andrade. Um ambicioso projeto de pesquisas comandado pelos dois impactou os meios político e intelectual, devido à abrangência de estudos que revelaram pela primeira vez, no seu conjunto, a diversidade cultural do país. Em seu número 30 (2002), a Revista do Patrimônio Artístico e Histórico Nacional credita a Mário de Andrade o anteprojeto, de 1936, que norteou a lei de criação do Sphan no ano seguinte.

Ensino da música — Inserido na estrutura administrativa do Estado Novo, Villa-Lobos desenvolveu amplo projeto educacional, no qual se destacou o canto orfeônico. Convidado em 1931 pelo educador Anísio Teixeira, à época superintendente do ensino público do Distrito Federal (o Rio de Janeiro, à época), o maestro ocupou o cargo de diretor do ensino artístico da prefeitura. O ensino da disciplina canto orfeônico foi instituído então como obrigatório, medida depois estendida a todo o território nacional, por meio da Reforma Capanema (Leis Orgânicas do Ensino) quando o músico ocupava Superintendência de Educação Musical e Artística (Sema). A relação de Villa-Lobos com o governo Vargas o levou também a compor peças patrióticas e a comandar eventos celebrativos. O Dia da Independência em 1939 contou com um coral de 30 mil crianças cantando o hino nacional e outras peças trabalhadas pelo compositor.

Bossa Nova — Movimento informal de renovação do samba a partir da Zona Sul do Rio de Janeiro no final da década de 1950, que culminou em um novo estilo de composição e interpretação fundamentado em linhas melódicas e letras despojadas de ornamentos, acompanhamento rítmico sincopado (“batida diferente”), harmonias sofisticadas e influenciadas pelo jazz, também uma das fontes da rítmica bossa-novista. O canto inverteu do mesmo modo a tendência grandiloquente em voga nas décadas anteriores, o que se prova com João Gilberto, o principal intérprete da Bossa Nova e um dos principais expoentes do movimento, ao lado de Tom Jobim, Carlos Lira e Roberto Menescal. Há quem veja na incorporação de elementos jazzísticos ao samba um gesto antropofágico. De todo modo, é inegável uma associação entre as linhas melódicas da Bossa Nova e as da arquitetura moderna.

Tropicalismo — Tropicália, tropicalismo ou movimento tropicalista. Movimento cultural da segunda metade da década de 1960 ancorado principalmente na música, mas que dialogou também com as artes plásticas e gráficas, o cinema, o teatro, a prosa e a poesia. Modernista no ímpeto de renovação das linguagens musical e poética, com aproveitamento da diversidade de gêneros e ritmos da música brasileira, e até estrangeira, a Tropicália pregou o rompimento de padrões comportamentais e políticos e exprimiu a cultura fragmentária de um mundo que mergulhava de vez no internacionalismo e no avanço tecnológico. Ainda que a princípio o movimento tivesse um encaminhamento espontâneo e que seus protagonistas, como Gilberto Gil e Caetano Veloso, não se orientassem em bases conscientemente modernistas, e nem levassem em conta a Semana de 22, as interferências de Augusto de Campos acabaram por acordar os tropicalistas para as conexões entre as duas iniciativas, o que provocou referências explícitas ao modernismo em letras e capas de disco. “A alegria é a prova dos nove”, um dos versos de Geleia Geral (Gil/Torquato Neto), é transposição de um dos bordões do Manifesto Antropófago, de Oswald de Andrade. O tropicalismo ecoou igualmente a Semana em razão da adoção de manifestos para o anúncio de propostas e do estabelecimento de polêmicas com o público, a intelectualidade e a imprensa.

Geleia Geral (Gilberto Gil e Torquato Neto) aproveita verso de Oswald de AndradeGrupo Oficina — Liderado por José Celso Martinez Corrêa, ou simplesmente Zé Celso, diretor, ator, dramaturgo e encenador, o Oficina teve início nos anos 1950 e se firmou na década seguinte como um teatro questionador em termos culturais, comportamentais e políticos, seguindo uma abordagem considerada por muitos como orgiástica e antropofágica. Tornaram-se célebres as encenações de Pequenos Burgueses (1963) e de O Rei da Vela (1967), este um texto de Oswald de Andrade que terminou por se tornar uma espécie de manifesto encampado pelo movimento. Até o presente, Zé Celso e seu grupo mantém fidelidade a uma pegada dionisíaca em suas montagens, como a da tragédia grega As bacantes, de Eurípedes, uma das mais marcantes.

Discos Marcus Pereira — Selo independente de música popular brasileira, estabelecido formalmente em 1973 pelo publicitário e bacharel em direito Marcus Pereira (1930-1981), mas que já operava desde 1967. Deixou 171 discos de registro e resgate de inumeráveis gêneros e ritmos de todas as regiões. É consenso entre colaboradores de Pereira e de estudiosos que para reunir esse patrimônio, o pesquisador seguiu os passos de Mário de Andrade e da Missão de Pesquisa Folclórica realizada por determinação do modernista em 1938, quando era secretário de Cultura do Município de São Paulo. Essa inspiração fica mais clara no caso da coleção de 16 discos long play (LP) que cobriu as cinco regiões do país, inclusive com gravações in loco, à maneira de Mário de Andrade, e retirou do esquecimento canções, grupos e mestres ativos em pequenas comunidades. A prova dos nove dessa filiação é que no primeiro dos LPs da Música Popular do Centro-Oeste/Sudeste, Marcus Pereira escalou Nara Leão para interpretar Viola Quebrada, composição de Mário de Andrade.

Geração Mimeógrafo — Grupo de artistas dos anos 1970 inseridos no contexto da poesia classificada por alguns como “marginal”, por se situar à margem do circuito editorial comercialmente estabelecido. Foi o movimento artístico e cultural com bases na contracultura que sucedeu a Tropicália. Exercia com grande liberdade sua expressão poética e apelava para meios alternativos e mais baratos de impressão e divulgação de trabalhos, como a rodagem de exemplares em mimeógrafos e a declamação em bares. Operou, nesse contexto, como grupo de resistência ao autoritarismo da ditadura militar, iniciada em 1964. O grupo também se expressou através da música, do cinema e da dramaturgia. Destacaram-se no movimento os poetas e compositores Paulo Leminski, Ana Cristina César, Chacal e Cacaso.

Grupo Macunaíma — Liderado por Antunes Filho (1929-2019), que centrou esforços na renovação estética, política e cênica do teatro brasileiro surgido nos anos 1960 e 1970. A montagem que deu nome definitivo ao grupo foi Macunaíma (1978), tida como referência para a geração dos anos 80, e que tornou Antunes “o primeiro diretor a empreender uma obra dramatúrgica e cenicamente autoral”, de acordo com a Enciclopédia Itaú Cultural. O diretor também montou o Centro de Pesquisa Teatral (CPT), hoje abrigado no Sesc Consolação, em São Paulo, responsável por formar diversas gerações de atores com metodologia e técnica próprias.

Lira Paulistana — Com nome emprestado da obra homônima de Mário de Andrade, o teatro Lira Paulistana foi fundado em 25 de outubro de 1979 em um porão com cerca de 150 lugares localizado na Praça Benedito Calixto, bairro de Pinheiros, São Paulo. O Lira foi palco de diversos tipos de manifestações culturais, além do teatro, entre elas a famosa Vanguarda Paulista musical, composta por nomes como Ná Ozzetti, Arrigo Barnabé, Itamar Assumpção, Tetê Espíndola, Cida Moreira e por grupos musicais alternativos como o Língua de Trapo, Rumo e Premeditando o Breque. Fiéis a suas propostas de rompimento com modelos estéticos tradicionais, esses artistas e grupos resistiram a fazer carreiras com apelo mais comercial para guardarem fidelidade a suas propostas.

AntropoJackson: chicletes ele mistura com banana / sambebop / samba-rock, meu irmão! 

Agência Senado

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