A escola deve ser a última a fechar e a primeira a abrir — desde que com condições para isso
O retorno às atividades presenciais é essencial e urgente, mas não pode passar por cima da garantia de condições para um retorno seguro
Por Andressa Pellanda e Marcele Frossard*
O ano de 2020 entrou para a história como o que parou o mundo. A pandemia de Covid-19 encerrou atividades básicas e colocou pelo menos um terço da população mundial em quarentena, segundo estimativas da Organização Mundial de Saúde (OMS). No Brasil, com as crises econômica e política, o cenário desafiador ganhou proporção ainda maior: desemprego e pobreza andaram lado a lado com má gestão da pandemia e agendas negacionistas e anti-direitos por parte do governo federal. Somos o país que pior geriu a crise no mundo, segundo pesquisa do Instituto Lowy.
A escola foi uma das primeiras instituições a serem fechadas e a maioria delas não retornou até o presente momento.
De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PnadC), em outubro de 2020, o percentual de estudantes de 6 a 17 anos que não frequentavam a escola (ensino presencial e/ou remoto) era de 3,8% (1.380.891) — superior à média nacional de 2019, que foi de 2%, segundo a Pnad Contínua. A esses estudantes que não frequentavam, somam-se outros 4.125.429 que afirmaram frequentar a escola, mas não tiveram acesso a atividades escolares e não estavam de férias (11,2%).
Assim, estima-se que mais de 5,5 milhões de crianças e adolescentes tiveram seu direito à educação negado em 2020.
Ainda segundo os dados apresentados por pesquisa realizada pelo Data Senado, cerca de 20 milhões de estudantes tiveram aulas suspensas em julho de 2020, o que representa 34,78% do total de alunos matriculados na Educação Básica e Superior. Desses, cerca de 18 milhões estão na Educação Básica. Outros 32,4 milhões de alunos que tinham aula presencial passaram a ter aulas remotas, 3,7 milhões da Educação Superior e 28,6 milhões da Educação Básica.
Diversas redes de ensino — dado a falta de acesso de milhões de estudantes e profissionais da educação a condições mínimas em seus domicílios para que os processos de ensino-aprendizagem se efetuassem, como equipamentos e recursos tecnológicos diversos —, optaram por não implementar os calendários letivos de forma remota e passaram a manter, nessa modalidade, atividades essenciais e de vínculos entre família e escola.
Outras redes, sem processos participativos de formulação de políticas, tomaram o caminho de seguir implementando os calendários letivos programados antes da pandemia, em plataformas privadas, excluindo as populações em maior situação de vulnerabilidade e entrando em uma seara também de violação de privacidade de dados. Entre um exemplo e outro, uma gama de diferentes caminhos foram trilhados, para responder à situação emergencial inédita com que as comunidades escolares de todo o país se depararam.
Neste cenário, o acesso à internet se faz indispensável e é condição fundamental. Quando olhamos para o acesso à internet para os alunos do ensino fundamental, por exemplo, os números também mostram que entre 4,3 e 4,4 milhões não dispunham de acesso domiciliar à internet em banda larga ou 3G/4G para atividades remotas de ensino-aprendizagem, das 27,2 milhões de matrículas dessa etapa de ensino.
A situação se agrava quando observamos esses dados através de um recorte de gênero. É sabido que durante momentos de crise econômica, as meninas são responsabilizadas pelo trabalho doméstico não remunerado, o que é uma ameaça real para que elas abandonem a escola. A pesquisa desenvolvida pela Plan International, que também entrevistou meninas no Brasil, concluiu que devido à pandemia 62% das meninas entrevistadas disseram que estavam tendo dificuldades por não poderem ir à escola ou à universidade.
Esse cenário teve dois agravantes fundamentais: a falta de participação e gestão democrática das políticas públicas emergenciais e a falta de financiamento adequado às áreas sociais. Apesar das recomendações e dos esforços de especialistas de todas as áreas, em âmbito nacional e internacional, as políticas de austeridade, sob a Emenda Constitucional 95, do Teto de Gastos, seguiram vigentes e ceifando vidas e direitos de toda a população, impactando especialmente as populações em maior situação de vulnerabilidade.
Chegamos em 2021 com estudantes de todo o país em uma situação de exclusão escolar e em violação de uma série de direitos que vão além do ensino e aprendizagem, como proteção social e alimentação segura e saudável. Não houve dúvidas em todos os setores sociais acerca da importância da escola como lugar de garantia de direitos e das e dos profissionais da educação como atores primordiais para tanto. Para a Campanha Nacional pelo Direito à Educação, isso sempre foi uma certeza.
Desde quando a pandemia foi decretada, a Campanha Nacional pelo Direito à Educação mobilizou sua rede e esforços para divulgar conhecimento sobre a Covid-19 e seu impacto na educação e em outras áreas relacionadas, assim como para trazer recomendações às gestões e comunidade escolar para o enfrentamento emergencial com base em direitos. Foi assim que, desde março do ano passado, os Guias Covid-19 foram sendo lançados de acordo com a necessidade de pautar e qualificar o debate público e com as demandas que eram apresentadas. No total foram produzidos a muitas mãos, de maneira colaborativa, 9 guias, além de uma série de notas técnicas sobre políticas e proposições legislativas.
Reabertura das escolas e volta às aulas presenciais
Estudo da Universidade de Granada demonstrou que colocar 20 crianças numa sala de aula implica em 808 contatos cruzados em dois dias.
Apesar disso, há muita pressão e expectativa para o retorno às aulas presenciais. Seja do mercado, com o objetivo de liberar os pais, mães e responsáveis para as atividades produtivas; seja das famílias, muitas em situação de vulnerabilidade ou trabalhadoras de serviços que não pararam e que acontecem de forma presencial, que não puderam fazer o isolamento social e não têm com quem deixar os filhos; seja de estudantes e professoras/es, que não aguentam mais ficar nessa situação virtual e precária. Mesmo com o início da vacinação no país, ainda não há um cronograma para imunização da maior parte da população, incluindo os profissionais de educação. Essa é uma de nossas bandeiras, mas ainda não está concretizada.
Para o retorno às aulas em formato presencial, ou híbrido, por meio de revezamentos, por exemplo, se faz primordial dar condições mínimas de infraestrutura nas escolas.
De acordo com o Censo Escolar 2019,
- apenas 41,2% das escolas municipais de educação infantil têm banheiro adequado a essa etapa;
- 4,6% das escolas da rede municipal e 5,2% da rede estadual não possuem banheiros;
- No que se refere à rede pública de abastecimento de água, apenas 88,8% das escolas de ensino médio são cobertas, sendo que o recurso é menos comum no Norte do País, sobretudo nos estados do Acre, Amapá e Amazonas.
Segundo dados do Programa Conjunto de Monitoramento da OMS e do UNICEF para Saneamento e Higiene (JMP),
- 39% das escolas no Brasil não dispõem de estruturas básicas para lavagem das mãos;
- em termos regionais, apenas 19% das escolas públicas do Estado do Amazonas têm acesso ao abastecimento de água, ao passo que a média nacional é de 68%;
- em relação a esgotamento sanitário, a situação é ainda mais crítica, pois em alguns estados do Norte, menos de 10% das escolas têm acesso a serviços públicos de esgotamento.
Em matéria publicada com dados levantados do Censo Escolar de 2019, o jornal O Globo apontou a existência de cerca de 2 milhões de estudantes, matriculados em 10 mil escolas públicas brasileiras que não possuíam água potável.
De acordo com os dados só 65% das escolas municipais e 84% das escolas estaduais possuíam água encanada, 18% e 14% das instituições das redes municipais e estaduais respectivamente usavam poços artesianos, 13% e 5% Cacimba, 6% e 2% rio e 3% e 1% não tinham acesso a água.
A média de alunos por turma na educação infantil, de acordo com os dados do Censo Escolar 2020, é 16. Nos anos iniciais do ensino fundamental, a média de alunos por turma é 21 e nos anos finais do ensino fundamental a média de alunos por turma foi 27. No ensino médio, a média é de 30 alunos por turma. O cálculo não é muito difícil, com essa média de alunos por turma, em uma escola que tenha pelo menos uma turma para cada ano, 1 banheiro por escola não é suficiente para que todos os alunos sigam as normas de higiene indicadas nos protocolos de saúde e higiene para conter a pandemia de Covid-19.
Ainda sobre infraestrutura não foram encontrados dados sobre as condições de ventilação das salas de aula. Não é possível saber, por exemplo, se todas as salas de uma determinada escola possuem janelas ou não. Pelo nível de desorganização com que têm sido conduzidas as medidas para reduzir o contágio da doença é possível imaginar que insumos básicos como álcool em gel, máscaras e sabão não chegarão às escolas no tempo e em quantidades suficientes para que os protocolos de segurança sejam seguidos, como já há relatos por todo o país – e estamos colhendo dados e mais informações a respeito.
Ainda, segundo pesquisa “Educação escolar em tempos de pandemia na visão de professoras/es da Educação Básica”, elaborada pela Fundação Carlos Chagas, para 84,6%, a readequação dos modelos de avaliações surge como um ponto sensível. Não se trata, apenas, de transpor práticas que antes eram feitas presencialmente para contextos virtuais.
O cancelamento do ano letivo estaria no horizonte de somente 11,2% (em maio de 2020). Há clareza de que, no pós-pandemia, o cotidiano escolar não será o mesmo: para 65,6% das professoras, o rodízio de alunos para evitar aglomeração e, para 55,9%, a continuidade do ensino on-line junto com o presencial são prenúncio de mudanças possíveis.
Pouco mais de um terço dos respondentes, 34,5%, defende a necessidade de reposição das aulas e um em cada quatro (25,4%), a prorrogação do ano letivo de 2020 até 2021. Portanto, o debate sobre a reabertura é também sobre a fixação de um calendário que seja construído em diálogo com a comunidade escolar.
Guia para educação e proteção
Hoje a Campanha lança o Guia dos Guias Covid-19, com 70 recomendações sobre educação e proteção para o enfrentamento à pandemia em 2021. Ele é uma síntese de informações desenvolvida a partir de todo esse acúmulo ao longo de 2020 e trazendo atualizações de contexto neste novo ano, assim como recomendações para uma tomada de decisão para que as políticas emergenciais a serem desenvolvidas em 2021 sejam baseadas em direitos. É um instrumento também essencial para as comunidades escolares, famílias e profissionais da educação e proteção se informarem, participarem da formulação das políticas, monitorarem e demandarem respostas que garantam seus direitos à saúde, educação, e proteção.
Os direitos humanos são complementares e não devem competir entre si. Isso significa que o Estado não deve relegar à população a decisão entre o direito à educação ou à saúde, por exemplo. No debate sobre reabertura das escolas, esse elemento é central: é urgente a volta às aulas presenciais para a garantia da educação, da proteção, da saúde mental, mas em um cenário de falta de segurança sanitária e sem condições de infraestrutura nas escolas, o direito global à saúde de toda a comunidade escolar — especialmente das e dos profissionais da educação e também das famílias e, por consequência, de toda a sociedade — fica comprometido.
Dessa forma, a posição da Campanha Nacional pelo Direito à Educação sempre foi a mesma: o retorno às atividades presenciais é essencial e urgente, mas não pode passar por cima da garantia de condições para um retorno seguro. Essa garantia passa pelo controle da pandemia, pela elaboração participativa e democrática de diagnósticos e de protocolos de retorno, pelo financiamento e investimento em infraestrutura que assegure condições materiais de segurança nas escolas, e pela transparência nas políticas e na disponibilização de dados não só para a construção da reabertura, como também no monitoramento do andamento dos trabalhos e dos casos de contaminação. E esses elementos são só o início da conversa.
*Marcele Frossard é assessora de políticas sociais da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, é graduada, mestre e doutora em Ciências Sociais (UERJ).
*Andressa Pellanda é coordenadora-geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, cientista política, jornalista, educadora popular, e doutoranda em ciências, com foco em relações internacionais (USP).