As ocasiões fazem as revoluções

José Geraldo de Santana Oliveira*

O profundo e salutar eco social alcançado pela proposta de emenda constitucional (PEC) que visa a reduzir a jornada e a carga horária de trabalho, estabelecidas pelo Art. 7º, XIII, da Constituição Federal (CF), de 44 para 36 horas semanais, de iniciativa da deputada federal Erika Hilton, do PSOL-SP; que se popularizou como PEC 6×1, parece confirmar a metáfora da epígrafe, extraída do romance Esaú e Jacó, de Machado de Assis, publicado em 1904.

Essa assertiva deve-se ao fato de PECs com igual teor tramitarem sem eco e sem desfecho, desde 1995: PEC 231/1995- redução para 40 horas semanais-, de iniciativa do senador Paulo Paim (PT-RS) e do então deputado federal Inácio Arruada (PcdoB-CE); PEC 148/2015, também do Senador Paim; PEC 221/2019, de autoria do deputado federal Reginaldo Lopes (PT-MG).

Importa dizer: a PEC do deputado federal Reginaldo Lopes não obteve eco social. Já a da deputada federal Erika Hilton, sim. Além do que, conta com 234 assinaturas de apoio à sua tramitação. E o que é mais importante: ganhou a atenção, a simpatia e o entusiasmo de milhões de mentes, que andavam arredias ao debate sobre históricas e essenciais bandeiras do mundo do trabalho.

A toda evidência, é alentador e alvissareiro esse eco social, em tempos tão difíceis, como os de agora, em que todos os poderes conspiram, com afinco e crueza, contra os direitos fundamentais sociais elencados no Art. 7º da CF; fazendo-o com tal dimensão que, segundo revela a Pnad contínua do último trimestre de 2024, reportando, dentre outros, os indicadores médios deste ano, revela o exponencialmente progressivo aniquilamento da proteção social; de tal sorte que, dos 103,3 milhões de pessoas ocupadas, apenas 51,11% delas usufruem dos direitos elencados no Art. 7º da CF; sendo 38,7 milhões com CTPS assinada, 12,7 milhões de servidores públicos e 1,4 milhão de domésticos com CTPS assinada.

Essa ocasião não pode ser perdida nem por hipótese, sobretudo por trazer de volta ao cenário dos/as trabalhadores/as a esperança, a chama da vontade e da disposição para retornar ao leito normal de grandes batalhas, que mudam a história de um povo e de uma nação.

Assim como o movimento é o modo de existência da matéria, como ensinam os físicos; a luta representa o meio e o modo de os/as trabalhadores/as fazerem-se respeitar e conquistar condições de trabalho decentes, que buscam desde os primeiros passos da sociedade capitalista.

Breve inventário das centenárias lutas dos/as trabalhadores/as contra a exploração do capital, computando-as a partir de seus primórdios, ainda no século XVIII, atesta que a mais longeva, persistente, renhida e desencadeadora das demais é a que volta ao cenário de agora, com a PEC 6×1. Ou seja, a luta pela redução da jornada de trabalho, que nos primeiros tempos chegava a 18 horas.

Engels, em seu livro “A história da classe trabalhadora na Inglaterra”- tradução livre-, publicado em 1845, registra:

“A elevada mortalidade que se verifica entre os filhos dos operários, e particularmente dos operários de fábrica, é uma prova suficiente da insalubridade à qual estão expostos durante os primeiros anos. Estas causas também atuam sobre as crianças que sobrevivem, mas evidentemente os seus efeitos são um pouco mais atenuados do que naquelas que são suas vítimas. […] O filho de um operário, que cresceu na miséria […], na umidade, no frio e com falta de roupas, aos nove anos está longe de ter a capacidade de trabalho de uma criança criada em boas condições de higiene. Com esta idade é enviado para a fábrica, e aí trabalha diariamente seis horas e meia (anteriormente oito horas, e outrora de doze a catorze horas, e mesmo dezesseis) até a idade de treze anos. A partir deste momento, até os dezoito anos, trabalha doze horas. [..]”

Leo Huberman, no atemporal livro “A história da riqueza do homem”, publicado em 1936, anota:

“Precisam-se Trabalhadores — Crianças de Dois Anos Podem Candidatar-se- título do capítulo;

Chocante, não é? Pensar em crianças de dois e três anos trabalhando! Será isso um relatório sobre o sistema doméstico entre os séculos XVI e XVIII? Na verdade, não. Qual a época e o local das condições acima descritas?

Época: Agosto de 1934.

Local: Connecticut, Estados Unidos.

[..]

Temos uma ideia de como era desesperada a sua situação pelo testemunho de um deles, Thomas Heath, tecelão manual:

―Pergunta: Tem filhos?

―Resposta: Não. Tinha dois, mas estão mortos, graças a Deus!

―Pergunta: Expressa satisfação pela morte de seus filhos?

―Resposta: Sim. Agradeço a Deus por isso. Estou livre do

peso de sustentá-los, e eles, pobres criaturas, estão livres dos

problemas desta vida mortal.‖ , ano 1840.

O leitor há de concordar que, para falar desse modo, o homem devia realmente estar deprimido e na miséria.

O que acontecia aos homens que, reduzidos ao estado de fome absoluta, já não podiam lutar contra a máquina, e finalmente iam buscar emprego na fábrica? Quais eram as condições de trabalho nessas primeiras fábricas?

As máquinas, que podiam ter tornado mais leve o trabalho na realidade o fizeram pior. Eram tão eficientes que tinham de fazer sua mágica durante o maior tempo possível. Para seus donos, representavam tamanho capital que não podiam parar —tinham de trabalhar, trabalhar sempre. Além disso, o proprietário inteligente sabia que arrancar tudo da máquina, o mais depressa possível, era essencial porque, com as novas invenções, elas podiam tornar-se logo obsoletas. Por isso os dias de trabalho eram longos, de 16 horas. Quando conquistaram o direito de trabalhar em dois turnos de 12 horas, os trabalhadores consideraram tal modificação como uma bênção”.

Sem dúvidas, a batalha mais sangrenta contra os trabalhadores, pela redução da jornada de trabalho para 8 horas foi a de Chicago, em 1886, ao 1º de maio, que deu origem à data símbolo como dia do trabalho.

No México, em 1917, a Constituição de Querétaro consagrou a jornada de 8 horas; na Alemanha, a Constituição de Weimar, de 1919, o fez. A Convenção N.01 da OIT, de 1919, igualmente.

No Brasil, a greve de 1917, proporcionalmente a maior de todos os tempos, tinha como primeira reivindicação a jornada de 8 horas. Sua implantação na legislação brasileira deu-se em 1932, com o Decreto N. 21186; e, constitucionalmente, em 1934, com a CF com menor período de duração, pois que foi revogada pelo golpe do estado novo em 1937.

A CF de 1934 estabelecia, em seu Art. 121:

“Art 121 – A lei promoverá o amparo da produção e estabelecerá as condições do trabalho, na cidade e nos campos, tendo em vista a proteção social do trabalhador e os interesses econômicos do País.

  • 1º – A legislação do trabalho observará os seguintes preceitos, além de outros que colimem melhorar as condições do trabalhador:

[..]

  1. c) trabalho diário não excedente de oito horas, reduzíveis, mas só prorrogáveis nos casos previstos em lei;
  2. d) proibição de trabalho a menores de 14 anos; de trabalho noturno a menores de 16 e em indústrias insalubres, a menores de 18 anos e a mulheres;
  3. e) repouso hebdomadário, de preferência aos domingos;

A jornada de 8 horas, com 48 semanais, foi mantida pelas CFs de 1937, 1946, 1967 e 1969; tendo a CF de 1988,- a Constituição cidadã, nas felizes palavras do presidente da Assembleia Nacional Constituinte, Ulisses Guimarães, a quem o Brasil ainda não fez justiça-, manteve a jornada de 8 horas, reduzindo a carga horária semanal para 44.

A agência Senado, de forma surpreendentemente e positiva, em 25/2/2014 2014, publicou breve histórico da evolução da jornada de trabalho, desde o século 18, registrando:

“A história mostra que, no final do século 18, com a duração frequente de 18 horas diárias, eram comuns mutilações e mortes de operários que desmaiavam ou dormiam sobre as máquinas. É difícil imaginar que na Inglaterra medieval o tempo de trabalho fosse menor do que nos primórdios do capitalismo.

[..]

A pressão dos movimentos de trabalhadores ingleses por melhores condições de vida resultou em cinco leis após 1802. Mas só a Lei Fabril de 1833 vingou. Definiu jornada normal de trabalho entre 5h30 e 20h30, com intervalos.

Trajetória francesa

Uma das experiências mais estudadas pelos acadêmicos brasileiros é a da França, que adotou em 2000 a chamada Lei das 35 Horas. Ela substituiu a exigência legal de 39 horas semanais.

Um texto legal de importância na França data de 1841 e só era aplicado a fábricas com mais de 20 trabalhadores. Voltado a reduzir a concorrência predatória entre indústrias têxteis, não obteve êxito. Os meios para fiscalizar o cumprimento das leis trabalhistas só começaram a ser constituídos a partir de 1874.

É bom lembrar que a referência até o século 19 era a jornada diária. A trajetória nesse período não foi regular, com avanços e retrocessos. Porém, foi muito melhor do que o ocorrido na época da Revolução Francesa, quando os empregadores ganharam plenos poderes para determinar a duração do tempo de trabalho, em 1791, com a Lei Le Chapelier.

Só no início do século 20 os trabalhadores franceses conquistaram a redução para 10 horas diárias, e mesmo assim pequenas empresas e trabalhos em domicílio ultrapassavam as 12 horas. Em 1919, a jornada máxima foi fixada em 8 horas diárias e 48 horas semanais.

Em 1936, com o objetivo de abrir novos postos de trabalho, o governo de coalizão de partidos de esquerda baixou a jornada para 40 horas semanais e instituiu duas semanas de férias pagas por ano. Foi a primeira vez que se reconheceu o direito ao lazer para o trabalhador. Nessa época, os franceses já podiam se aposentar aos 65 anos, benefício instituído em 1910. As férias de quatro semanas foram estabelecidas em 1969.

Mais tarde, os benefícios foram ampliados no governo Miterrand, em 1982, com férias de cinco semanas, aposentadoria aos 60 anos e jornada reduzida para 39 horas semanais. [..]”

A referenciada Agência Senado, 19/01/2024, publicou nova síntese histórica sobre esse tema, com o título “Redução da jornada de trabalho deve voltar à pauta do Senado em 2024”; valendo a pena reproduzir, aqui, seus principais excertos, por sua relevância para o debate:

Propostas visam reduzir a jornada de trabalho de 44 horas semanais para até 30 horas

PL 1105/2023

Trabalhar quatro dias da semana e, consequentemente, conseguir ter mais tempo para o descanso, para o lazer, ou até mesmo para buscar mais conhecimento está entre os desejos de grande parte dos trabalhadores brasileiros. Aliar essa demanda ao cenário dinâmico e desafiador do mundo profissional, sem redução salarial, deve ser uma das discussões a ser retomada pelo Senado em 2024.

O assunto tem sido tendência no mundo todo, com alguns países já colocando em prática legislações ou projetos pilotos que incentivem as empresas a adotarem modelos de jornadas reduzidas, promovendo bem-estar, produtividade e qualidade de vida aos seus funcionários.

Apesar de o Congresso Nacional já discutir projetos de redução da carga horária trabalhada desde 1995, quando o senador Paulo Paim (PT-RS) e o então deputado federal e posteriormente senador, Inácio Arruda, apresentaram sua primeira proposta sobre o tema (PEC 231/1995), somente em 2023 o assunto passou a ser visto como uma aprovação possível no Legislativo.

[..]

PEC

Em outra frente, Paim também apresentou um texto para fazer alterações constitucionais. A proposta de emenda à Constituição (PEC 148/2015) estabelece que a duração de trabalho normal não será superior a 8 horas diárias e a 36 horas semanais. A matéria está na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ), onde aguarda designação de relator.

De acordo com a iniciativa, a jornada de trabalho não poderá ser superior a 40 horas semanais, diminuindo gradativa e anualmente em uma hora por ano até o limite de 36 horas. Até a implantação da emenda, caso seja promulgada, a jornada de trabalho normal não poderá ser superior a 44 horas semanais. Ele explicou como seria essa aplicação em pronunciamento no Plenário, em junho de 2023.

— Hoje, a jornada de trabalho no Brasil é 44 horas semanais, oito horas diárias. A jornada de trabalho para 40 horas semanais é possível. Para, em seguida, gradativamente decrescermos até o limite de 36 horas semanais, com turnos de seis horas para todos. Importante destacar: sem prejuízo nenhum para sequer o empregador e muito menos para o empregado.

Apesar de o tema ainda estar distante de um consenso no Brasil, Paim acredita que é possível avançar em busca de um entendimento entre os atores envolvidos e, para isso, ele considera fundamental a participação do Legislativo e do Executivo federal nas discussões.

— É preciso que todos entendam que a redução de jornada só representará uma vitória se for fruto de um grande entendimento não só no Congresso e no Executivo, mas também entre empregados e empregadores. Esse entendimento é que aponta caminhos, pois o país que queremos está baseado na humanização da relação de trabalho — afirmou o senador na mesma ocasião.

Outros países

No Reino Unido, um estudo realizado entre junho e dezembro de 2022 pela parceria entre a The 4-Day Week Global, um grupo que faz campanha por uma semana de trabalho mais curta, juntamente com o instituto de pesquisa Autonomy e pesquisadores das universidades de Cambridge e Oxford, buscou reduzir a jornada de trabalho para uma semana de quatro dias trabalhados para funcionários de 61 empresas de diversos setores que concordaram em participar do teste.

No fim do estudo, após a experiência de oferecer um dia a mais de folga na semana, foi revelado que 92% das empresas participantes decidiram manter a jornada de trabalho reduzida. Além de fazer sucesso entre patrões e funcionários, o teste mostrou que a redução da jornada de trabalho não diminuiu a produtividade e que o número de saídas de funcionários caiu 57% durante o período experimental.

Além de Brasil e Reino Unido, países como Espanha, França, Portugal e Japão já debatem o tema. Na Espanha, por exemplo, há uma proposta para reformular a dinâmica de trabalho tradicional e adotar uma semana de quatro dias trabalhados. Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), países como Holanda, Bélgica, Dinamarca e Alemanha já começaram a ter experiências com a aplicação de uma jornada de trabalho reduzida, chegando a cerca de 32 horas semanais em alguns dessas nações.

América Latina 

No ano passado, o Congresso do Chile aprovou uma lei que reduz a semana de trabalho de 45 para 40 horas. Um ano após a sua aplicação, a jornada de trabalho será reduzida das atuais 45 horas para 44 horas. Após três anos o limite será de 42 horas e após cinco anos chegará a 40 horas.

[..]

Saúde e qualidade de vida

Muitas das discussões que já vêem ocorrendo no âmbito do Senado, entre a sociedade civil e dentro das empresas buscam responder a uma pergunta específica: a redução da jornada de trabalho virá como resposta para conciliar o crescimento econômico com a preservação da saúde mental e física dos trabalhadores?

Um relatório publicado em 2021 pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) revela que as longas jornadas de trabalho levaram a 745 mil mortes por acidente vascular cerebral e doença isquêmica do coração em 2016. Isso representa um acréscimo de 29% desses casos desde 2000, segundo as instituições.

Diante dos números, as duas agências têm recomendado que governos, empregadores e trabalhadores comecem a pensar e implementar medidas que possam proteger a saúde e bem-estar da classe trabalhadora”.

É hora de os sindicatos, federações, confederação e centrais sindicais laborais, de todas as categorias, abraçarem essa bandeira e a oportunidade que ela representa e projeta, formando comitês em prol de sua aprovação, debatendo com suas bases e com entidades patronais, entes públicos, Justiça do Trabalho e STF, com igrejas e demais representações da sociedade civil. A entidade que a não abraçar perderá o trem da história.

À luta e ao debate!

José Geraldo de Santana Oliveira é consultor jurídico da Contee

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