Big Techs e Educação: o fim do professor?

Corporações prometem customizar ensino e fazer da educação um game. Por trás do marketing, a cartilha neoliberal: privatizar sistemas públicos via plataformas, forjar o aluno-consumidor e reduzir o docente a um mero operador da tecnologia

Por Antonio Lovato Sagrado, Amanda Aliende da Matta e Enric Prats Gil, no Viento Sur | Tradução: Rôney Rodrigues

A erosão da profissão docente é um fenômeno que vem se desenvolvendo há décadas, principalmente com a aceleração do capitalismo, e é um tema que já vem sendo discutido na Academia e na mídia. Diversas transformações nas últimas décadas vêm determinando diretamente mudanças nos papéis dos professores, algumas diretamente educacionais (como a universalização da educação básica e a ampliação da influência de organismos internacionais nas políticas educacionais nacionais) e outras socioeconômicas (como a globalização ou a rápido desenvolvimento das tecnologias digitais e a expansão de seu uso no dia-a-dia).

Atualmente, neste contexto, as fundações filantrópicas com alcance global estão adquirindo um papel especial na formação de docentes e na formação dos papéis dos professores. Tendem a promover um discurso sobre a (in)eficiência da escola e dos professores, o que favorece a sua entrada nas escolas públicas, incorporando no dia-a-dia escolar tecnologias educativas que eles próprios desenvolvem e financiam, como as plataformas digitais na educação.

Este artigo argumenta que as corporações de tecnologia estão moldando um novo docente. Para isso, fazemos uma leitura sobre pedagogia seduzida pelo mercado, apresentamos brevemente duas das grandes plataformas digitais que estão entrando na sala de aula (Byju’s e Khan Academy) e analisamos como esse processo afeta a reconfiguração dos professores.

A pedagogia seduzida pelo mercado

Compreender as incursões no mundo educacional do mercado e da ideologia neoliberal é fundamental para refletir sobre os impactos e as mudanças que são promovidas no campo da pedagogia. Um dos argumentos que sustenta a entrada das plataformas digitais na educação é a suposta necessidade de personalizar as trajetórias de aprendizagem de cada estudante.

A personalização visa oferecer serviços educacionais sob medida para que cada aluno-consumidor possa alcançar uma experiência de aprendizagem adaptativa (adaptative learning). Isso requer o uso de algoritmos, mineração de dados, análise de aprendizado e inteligência artificial (IA). Algumas das ferramentas que foram criadas nesse sentido são: a customização dos módulos de aprendizagem, o alinhamento dos conteúdos que cada aluno deve trabalhar com base em suas necessidades específicas e o uso de chatbots, que incentivam, interagem e fornecem feedbacks imediatos aos estudantes sobre seu desempenho e seu nível de avanços, através de uma comunicação em linguagem natural, mantendo os alunos envolvidos em diferentes níveis.

A personalização pode ser expandida com novas contribuições da IA. Isso permite a extração e processamento de uma quantidade muito elevada de dados, o que possibilita, entre outros aspectos, a tomada de decisões com base em um maior número de elementos. Por meio dos últimos avanços em IA, as plataformas aprenderão, por exemplo, o que cada aluno mais ou menos desenvolveu em seu processo de aprendizagem e, com base nas informações de milhares de outros alunos, saberão prontamente qual conteúdo oferecer. Ainda assim, até o momento, a tecnologia desenvolvida é incipiente. No entanto, todas as decisões baseadas em dados respondem a uma lógica de eficiência escolar que não é necessariamente uma lógica pedagógica.

Junto a isso, a política de marketing das plataformas digitais na educação é bastante agressiva, embora aparentemente amigável. Seu interesse em seduzir a clientela é detectado no uso de imagens de jovens sorridentes de diferentes origens étnicas e culturais, bem como famílias heterossexuais felizes, com textos sempre muito positivos e depoimentos de usuários e especialistas, destacando valores supostamente universalizáveis do mainstream neoliberal, como equidade, inclusão e diversidade. Essas plataformas são populares entre quem estuda em casa e têm grande potencial de mercado na América Latina, refletido em seu uso generalizado em diferentes países do continente, bem como nas estratégias de marketing que oferecem para sua adaptabilidade aos diferentes idiomas.

As plataformas digitais na educação tendem a ampliar lógicas narrativas que se sustentam na possibilidade de romper com o ensino tradicional e o modelo classes de aulas, incorporando novos valores e ensinando as habilidades necessárias no século XXI. Argumenta-se que isso permitiria, finalmente, aproximar ensino e entretenimento, garantindo melhores resultados educacionais. Há uma década, Gingrich (2014) já encorajava que projetos pioneiros como Khan Academy e Coursera, hoje amplamente difundidos, seriam mais parecidos com a Netflix do que com as antigas lousas.

As empresas digitais globais que atuam nessa área tiveram um crescimento espetacular na última década, oferecendo produtos e serviços de alta qualidade gráfica por meio de plataformas digitais, incluindo conteúdo educativos para educandos, suas famílias, professores, escolas e outras empresas. Seus negócios incluem um longo repertório de fórmulas voltadas para um público amplo e diversificado. Os efeitos pedagógicos desses produtos já estão sendo estudados, e parte do setor educacional parece defender uma incorporação acrítica devido à suposta eficiência das plataformas para oferecer conteúdo.

O que é certo é que esse número crescente de ferramentas está sendo desenvolvido em um contexto de mercado com alto potencial de lucro. O modelo típico é o das EdTechs: empresas de base tecnológica em rápido crescimento (startups) que se desenvolvem no campo das tecnologias educacionais. O capitalismo digital entrou fortemente pela mão das empresas EdTech, que começam a ser difíceis de mapear (Saura, 2021; Williamson & Hogan, 2020).

Big Tech ou gigantes tecnológicos é uma categoria analítica que se refere às corporações mais importantes do mundo, que operam por meio da monopolização de serviços e, portanto, têm avançado na configuração dos futuros digitais dos sistemas educacionais. É importante diferenciar entre os gigantes da tecnologia dos EUA (Alphabet, Amazon, Apple, Meta e Microsoft) e os baseados na China (Alibaba, Baidu, Huawei ou Tencent). É comum que esses atores políticos privados atuem pela lógica da expansão global para moldar visões cada vez mais simplistas e populistas da IA, e o fazem apresentando a IA como um avanço democrático orientado para a justiça social, como exemplificado pela aliança entre Microsoft e Abra AI 1 . (Saura, 2023: 3)

Segundo o Holon IQ, os fundos de investimento investiram US$ 10,6 bilhões em empresas em 2022, 49% a menos que em 2021. Apesar disso, o investimento aumentou 14 vezes em 12 anos e essas empresas têm alta incidência em todas as facetas do processo educacional, desde o desenvolvimento de materiais didáticos para formação de professores e substituição do ensino universitário em formatos digitais.

Empresas como a estadunidense Age of Learning ou a chinesa 17zuoye disputam esse mercado e têm captado investimentos de grande escala. Além da disputa com o mercado editorial tradicional, o campo da personalização na educação faz fronteira com aplicações de mineração de dados e de análise de dados de aprendizagem (learning analytics application), que possuem alto potencial lucrativo:

(…) a adoção contínua de inteligência artificial na educação regular ao longo da década de 2020 lançará a datificação em uma escala sem precedentes. É inegável que todas essas formas díspares de inteligência artificial (do aprendizado profundo à IA generativa) estão famintas por dados. Na vanguarda da extração de dados de ambientes educacionais estarão os provedores de plataformas digitais, para quem os dados do usuário são seu ativo mais valioso (Selwyn et al., 2020: 2, tradução nossa).

Ao lado das grandes empresas, existem também unicórnios tecnológicos educacionais que usam imaginários baseados em uma visão tecnosolucionista que oferece soluções tecnocráticas para problemas sociais e dissemina imagens de progresso e modernidade para justificar suas operações (Saura, 2023). Esses imaginários do futuro estão ligados à abertura de novos mercados financeiros.

Como exemplo, podemos destacar que a EdTech indiana Byju’s foi a patrocinadora oficial da Copa do Mundo FIFA no Catar 2022 2. Empresas como essa não são mais apenas unicórnios, mas “decacornios” (Williamson, 2022), já que estão avaliadas nos mercados financeiros acima de 10 trilhões de dólares. A plataforma Crunchbase (s.f.), especializada em monitorar e fornecer informações sobre o ecossistema de investimentos em empresas globalmente, informa que a Byju’s arrecadou mais de 5,5 bilhões de dólares desde sua fundação em 2015. A empresa desenvolve tecnologia educacional para aprendizagem personalizada para crianças e tem mais de 150 milhões de alunos em mais de 100 países (Byju’s, s.f.). Em seu site 4 eles são apresentados da seguinte forma:

A Byju’s torna o aprendizado envolvente e eficaz, aproveitando a pedagogia e a tecnologia de ponta. Com ofertas que vão desde cursos adaptativos de autoestudo em aplicativos e na web até aulas personalizadas individuais com professores especializados para idades de 4 a 18 anos ou mais, temos programas para todos os alunos.

Outra empresa que movimenta quantidades significativas de recursos é a Khan Academy. A lista de doadores e aliados da empresa é poderosa: alguns deles aparecem na lista da Forbes, como Carlos Slim, Bill Gates, Scott Cook, Jorge Lemann e Susan McCaw. Além disso, conta com conselheiros e assessores, gurus e policymakers ligados ao campo educacional e promotores de visões e estratégias de larga escala.

A Khan Academy se apresenta como uma empresa sem fins lucrativos 5 e opera na modalidade B2C (sigla em inglês para Business to Consumer ou de empresa a cliente). O que em seus primórdios, em 2006, eram videotutoriais de algumas disciplinas, elaborados e realizados por seu próprio fundador, Salman Khan 6/, hoje é uma complexa plataforma de aprendizagem personalizada que opera com poderosas ferramentas de IA. É focada nas disciplinas básicas obrigatórias e não obrigatórias, e também se concentra no ensino superior: matemática, ciências, programação de computadores, línguas e leitura, artes e humanidades, economia e até habilidades para a vida, como segurança na internet, financiamento ou apoio ao ingresso em universidades e, mais recentemente, a saúde e medicina. Propõe realizar um desafio de grande escala: oferecer uma educação gratuita e global.

Com o discurso sedutor e eficiente de for every student, every classroom. Real results, a plataforma propõe acompanhar o aluno na resolução dos seus problemas acadêmicos com uma metodologia própria que se apresenta como muito eficaz e efetiva. A Khan Academy argumenta que funciona porque incentiva o domínio do conteúdo: os alunos aprendem em seu próprio ritmo, primeiro identificando seus déficits e depois acelerando o processo.

A plataforma também oferece treinamento de professores na metodologia “aprendizado para o domínio”, que escalona o processo em quatro níveis (tentativa, familiar, competente e dominado): o papel do professor é selecionar o assunto e verificar o alcance dos marcos de aprendizagem . Além disso, a conexão com o Google Classroom permite a comunicação direta com alunos e famílias, e a plataforma alerta sobre riscos jurídicos para menores. A Khan Academy defende consistentemente o ensino à distância, e isso a sintoniza com as famílias que ensinam em casa, tornando essas famílias alguns de seus principais usuários.

Os últimos avanços da Khan Academy incluem a incorporação do ChatGPT-4 da OpenAI, que criou a figura do Khanmigo: um tutor de IA que conversa com os alunos em linguagem natural, recriando a experiência de um professor humano. A tecnologia também trabalha com os professores, gerenciando e preparando cronogramas de ensino e corrigindo as respostas dos alunos.

A plataforma oferece a cada aluno a experiência de um tutor humano, concentra conteúdos educacionais supostamente de alta qualidade, media o processo de aprendizagem e personaliza a trajetória de cada aluno de forma gamificada e viciante. Não há como competir com a capacidade de processamento de dados da plataforma, então entende-se que a Khan Academy conhecerá o processo de desenvolvimento de conteúdo de cada aluno muito melhor do que um professor.

A reconfiguração docente

No contexto da incorporação de plataformas como a Khan Academy às instituições de ensino, a função docente é fortemente afetada. Um professor que atue mais como auxiliar das plataformas do que como personagem central no acompanhamento do desenvolvimento do aluno parece ser o objetivo final dessas plataformas. Nesse contexto, o que se busca é que o estável e o imutável seja o serviço oferecido pelas plataformas; o professor seria cada vez mais secundário e facilmente substituível.

Os imaginários históricos sobre a função docente deixam de fazer sentido neste novo cenário. O professor não é mais a fonte de informação, conteúdo e conhecimento; não é quem desenvolve ou seleciona os materiais didáticos; nem é quem expõe o conteúdo, oferece exemplos e tira dúvidas do dia a dia. O currículo passou a ser desenhado por plataformas com alcance global, e não é mais uma pessoa que conhece os alunos e seu contexto o suficiente para tomar decisões sobre como avançar em sala de aula para reduzir as desigualdades.

No entanto, a introdução das tecnologias digitais na educação intensificou a carga de trabalho docente e fortaleceu os mecanismos de controle externo e de autocontrole interno. “(…) Por meio de todas essas mudanças, está sendo gerada a expressão máxima da subjetividade neoliberal digitalizada. O professor, que se acredita livre, se autoexplora e se autocontrola sem as limitações do plano analógico.” (Saura, Cancela e Parcerisa, 2023: 28). A gestão de todos esses dados gera um novo controle da função docente. “O papel tinha um limite. Os dígitos, no entanto, são infinitos.” (Saura, Cancela e Parcerisa, 2023: 28).

A privatização educacional digital por meio de plataformas hegemônicas como Google e Microsoft cria um solucionismo tecnológico que os professores devem atender. Essas corporações também oferecem formação, certificados e prêmios para os docentes inovadores, o que faz com que os professores que se adaptam ao seu discurso criem “inovações” e valorizem sua nova personalidade digital certificada. Desta forma, contribuem para a tecnocratização da educação e a desprofissionalização dos docentes (Saura, Cancela e Parcerisa 2023: 28).

As consequências das tecnologias digitais são imprevisíveis e dificultam o mapeamento dos atores da educação global. Isso causa uma pressão adicional sobre a função docente, que se desgasta devido à deterioração das três funções básicas (qualificação, socialização e subjetivação) propostas por Gert Biesta (2015). A abordagem de Biesta destaca que a nota não é apenas atribuir um número, mas que os alunos entendam o significado do conhecimento que é transmitido. A socialização implica a capacidade de encontrar um significado local e particular na aprendizagem, que pode ser afetado pelas barreiras impostas pelo campo digital. Por fim, a subjetivação implica que os jovens se considerem como indivíduos particulares, algo que a abordagem globalista e digital não atende. Esta deterioração tem um acentuado sotaque cultural e anula o filtro necessário do professor nas três áreas referidas, tendo efeitos perversos nos educandos.

A erosão digital na educação implica que o professor perca ou desvalorize alguns dos seus papéis e tarefas. A sua participação no planeamento, implementação e avaliação da aprendizagem é diminuída, a sua decisão sobre o currículo é anulada e a realidade das condições em que o ensino decorre é omitida. Além disso, sua figura de pesquisador desaparece e a essência da escola é subsumida pelo aprender por aprender, sem a necessidade de recorrer ao significado dessa aprendizagem.

Considerações finais

Esse processo de incorporação das EdTechs nas instituições de ensino e a configuração de uma nova função docente vem ocorrendo há anos. Na América Latina, por exemplo, existe um conglomerado de empresas que está atuando para se inserir nas escolas públicas e assumindo todos os riscos: a Samsung financia salas de aula tecnológicas 6 que poderão receber produtos educacionais da Khan Academy e de outras empresas. Mas em decorrência da pandemia de covid-19, a presença de agentes comerciais privados na educação ampliou-se ainda mais e eles defenderam a necessidade da manutenção de um mínimo de cotidiano escolar (sem que se considere, neste discurso, o gap tecnológico).

Este movimento tem causado tensões que afetam os objetivos, conteúdos e habilidades da educação. Isso corrói o controle democrático delegado ao docente, deteriora sua figura e reduz seu papel como ator social, o que acarreta uma perda da “comunidade simbólica idealizada” (Sennett, 2000).

Nesse sentido, é importante destacar que a figura do docente é fundamental para garantir o acesso a uma educação de qualidade e equitativa para todos os alunos. Por isso é fundamental proteger o trabalho do professor como agente público e como mediador entre os alunos e o conhecimento. Num contexto em que a educação é cada vez mais influenciada por agentes comerciais privados, o papel do professor torna-se ainda mais importante enquanto defensor dos valores democráticos e da justiça social. Portanto, é fundamental que mais atenção seja dada à proteção do controle democrático da educação e do trabalho do docente nela, para garantir uma educação de qualidade e equitativa para todos os estudantes.

Antonio Lovato Sagrado: Doutorando e professor da Universidade de Barcelona.

Amanda Aliende da Matta: Doutoranda e pesquisadora de pré-doutorado na Universidade de Barcelona.

Enric Prats Gil: Professor na Universidade de Barcelona.

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