Christian Dunker: O neoliberalismo fez cuidado com a saúde mental ser tão genérico quanto tratar o diabetes

Psicanalista aposta na escuta e autocuidado como formas de lidar com 'capitalismo contemporâneo de plataforma'

Devidamente reconhecida pela medicina mundial desde 1973, a síndrome de burnout começou a ser mencionada popularmente nos últimos anos. Inclusive, agora em 2025 foi quando o Ministério da Saúde incorporou a síndrome ao rol de doenças ocupacionais no Brasil.

Para o psicanalista Christian Dunker , professor titular da Universidade de São Paulo (USP), a pandemia foi um evento importante para tornar o conceito mais conhecido pelas pessoas. No entanto, ele se refere à expansão do diagnóstico a uma trajetória de aproximadamente 50 anos.

Ele usa o ano de 1973 como um marco. É quando o burnout é reconhecido pela medicina e também é o ano em que há uma reforma no manual da Associação Americana de Psiquiatria.

“Essa reforma começou a convidar a gente para olhar para os nossos sintomas no discurso mais popular, no discurso mais amplo, como se a gente teve uma diabetes mental”, explica em entrevista ao Conversa Bem Viver desta terça-feira (18).

O que o professor quer dizer é que “começou a se entender [que] os transtornos mentais são genéricos”, portanto o tratamento também deveria ser.

A relação com o diabetes é pelo fato da doença ser tratada de maneira sistemática: “Ah eu to me sentindo aqui, então em vez de insulina, o que tá me faltando é serotonina, ou então toma dopamina que passa, toma serotonina…diminui o cortisol que passa…”

Com tudo isso, Dunker relata outro evento importante que se instalou a partir de 1973.

“A gente vai lembrar, olha só que curioso, aconteceu uma novidade no mundo da economia política, que foi a primeira vez em que se implantou de maneira ampla, geral e irrestrita o neoliberalismo no Chile de Pinochet, depois veio a Inglaterra de Margaret Thatcher, depois veio a Estados Unidos de Reagan e isso terminou no Consenso de Washington, ou seja, agora é assim que a gente trabalha”.

“Bom, 40, 50 anos depois o que aconteceu quando chegou a covid? As pessoas mudaram o seu cotidiano. E quando a gente muda o seu cotidiano, você olha melhor pra ele.”

“As pessoas perceberam como elas estavam vivendo e elas perceberam como a gente estava em uma relação de aumento do sofrimento para gerar mais desempenho”.

Na entrevista ele detalha o que é burnout, quais são os sintomas em cada fase e explica melhor essa relação do neoliberalismo com o burnout.

Confira a entrevista na íntegra

Afinal o que é burnout?

Burnout é uma síndrome, como são quase todas as afecções dos transtornos mentais. A gente escolhe essa palavra para justamente designar algo que é como uma doença, que nos faz sofrer, que tem sintomas, mas que não é exatamente como uma doença, por isso a gente chama de transtorno.

Burnout foi descrito em 1973 e ele apareceu como uma categoria semioficial até muito recentemente, quando foi incluído na Classificação Internacional das Doenças, a CID.

Durante esse período a gente foi em certa forma desligando os nossos transtornos dos nossos contextos de desencadeamento e causalidade.

Então é como se a nossa forma de vida, nossa forma de trabalhar, nossa forma de estudar, nossa forma de amar, nossa forma de desejar, não tivesse uma relação assim tão clara, tão definida, com nossos sintomas.

O burnout vem então como uma espécie de paradigma para isso, como uma espécie de alerta que diz: “olha gente, tem doenças, tem transtornos que têm que ver com maneira como a gente se comporta, como a gente lida, como a gente enfrenta o trabalho”.

Como ela se desenvolve na pessoa?

Ele tem várias fases, ao final a gente pode caracterizá-lo como um estado de exaustão, um estado de colapso.

Mas ele não começa assim. Ele começa com um aumento do pensamento, da conversa sobre o tema trabalho. Um aumento da ansiedade com a produtividade, com a empregabilidade, com o medo de perder e com o desejo de prosperar e subir no trabalho.

Então ela não brinca mais direito com os filhos, porque ela está sempre cansada. O casamento talvez perca um pouco do elã porque ele tem que pensar no trabalho, com justiça, para manter o casamento, para manter a família.

Os amigos ficam para depois, ou seja, aqueles que não estão no universo do trabalho vão perdendo importância.

Isso vai caracterizar uma pessoa que, para alguns, pode ser até muito focada. Numa segunda fase em que uma pessoa já está mais orientada para si, já tem problemas nos seus círculos de relacionamento, inicialmente a aparecerem adoecimentos recorrentes.

Fiquei gripado, depois peguei um tenossinovite que não passa, daí tem dor nas costas, agora tem um problema no estômago e esses pequenos eventos psicossomáticos vão se acumulando.

Juntos, começaram a surgir aqueles estados limítrofes. Qual a diferença entre um humor irritado e uma depressão? Um humor explosivo e uma depressão? Qual a diferença entre uma pessoa que está sempre preocupada e com uma síndrome ansiosa? Qual a diferença entre uma pessoa que é sempre reativa ao ponto de vista dos afetos, e uma pessoa muito sensível?

A terceira fase é quando todo o mundo volta a confirmar que tudo tem um problema. Uma pessoa começa a se comportar de uma maneira egoísta.

Tem um traço muito curioso que é quando ela vai se anestesiando para o sofrimento dos outros. Ela vai entrar em uma espécie de tubo egoísta, em que ela só se preocupa consigo, e aqueles que estão em volta, inclusive dentro do trabalho, começam a ser tratados como peças, como objetos.

Ou então o estado que vai levando uma jornada muito longa de trabalho, às vezes ordinárias pelo empregador, o que é péssimo, que tem que ver com o nosso capitalismo contemporâneo de plataforma, mas às vezes imposto pela própria pessoa.

Ela vai chegar mais cedo, ela vai sair mais tarde, ela vai se irritar com quem tira férias, ela vai puxar mais serviço para si, ela vai centralizar decisões…

E um detalhe: esse ‘a mais’ muitas vezes é premiado. É essa pessoa que vai ser colocada na gestão, essa pessoa que vai ganhar uma promoção, e isso reforça ainda mais esse engajamento alienado, vamos chamar assim, no trabalho, e que termina com uma situação muito difícil.

Quando o burnout se instala, não adianta mais você demorar uma semana, vai descansar uma semana… não vai ser mais uma semana.

Foi um processo clássico e na sua fase final a pessoa já não consegue mais lidar com tanto tempo acelerando a máquina de si, então ela frequentemente começa a usar formulação com a finalidade até terapêutica, mas de dopagem.

E aí a pergunta que não quer calar: a empresa que foi vender isso acontecer, que foi patrocinando isso acontecer, que foi premiando o sujeito para chegar a esse ponto. Qual a responsabilidade?

Na verdade, tem que ser um encargo para que esse funcionário tenha um afastamento muito longo para se recuperar.

Quanto esse aumento de casos de burnout e a popularização do termo tem a ver com a pandemia? ou seria mais importante falar do neoliberalismo e do capitalismo contemporâneo de plataforma?

A gente tem que pensar num caso como esse de forma multidimensional e de forma histórica.

Em 1973, quando o burnout foi descrito pela primeira vez, existe um marco importante. Se a gente olhar para esse mesmo ano, ele tem dois acontecimentos muito significativos.

Uma é uma atualização do nosso manual psiquiátrico, usado amplamente no mundo, inclusive com influência sobre as definições do CID, que é o manual da Associação Americana de Psiquiatria.

Em 1973 fez uma reforma tirando todas as referências a etiologia, ou seja, qual é a causalidade, portanto, desligando sofrimento em forma de vida, desligando sintomas do como é que você ama, como é que você está no mundo, e produzindo diagnósticos, vamos dizer assim, onde a dimensão convencional é muito forte.

Ou seja, reunir regularidades e chamar isso de depressão, depois reunir outras características e definir isso como ansiedade e por aí vai.

Essa reforma começou a convidar a gente para olhar para os nossos sintomas no discurso mais popular, no discurso mais amplo, como se a gente teve uma diabetes mental.

“Ah em vez de insulina, tava me faltando serotonina. Então, toma serotonina. Diminui o cortisol que passa…”

A gente começou a entender que os transtornos mentais são genéticos, então o que eu posso fazer? Eu posso fazer um pouco de exercício, posso me alimentar melhor…

É como se fosse uma externalização da causalidade psicológica dos sintomas, da relação entre os sintomas e a vida daquela pessoa, da relação entre os sintomas e o que aconteceu com ela, em termos de traumas.

Em 1973 aconteceu uma novidade no mundo da economia política, que foi a primeira vez em que se implantou, de maneira ampla, geral e irrestrita o neoliberalismo no Chile de Pinochet, depois veio a Inglaterra de Margaret Thatcher, depois veio os Estados Unidos de Reagan e isso terminou no Consenso de Washington, ou seja, agora é assim que a gente trabalha.

Bom, daqui a 40, 50 anos o que a gente vai dizer sobre quando chegou a covid? As pessoas mudaram o seu cotidiano. E quando a gente muda o cotidiano, você parece melhor pra ele.

As pessoas perceberam como elas estavam vivendo e elas perceberam como a gente estava em uma relação de aumento de sofrimento para gerar mais desempenho.

Então, se hospedar em casa gerou esse distanciamento e foi muito importante. Em segundo lugar o próprio reconhecimento, ele gerou condições, vamos dizer assim, de indução ao patógeno. Então aumentou a depressão para um, aumentou a ansiedade para o outro, aumentou aquilo que uma pessoa já sofria antes, tornou-se uma vulnerabilidade mais expressa, mais visível, mais patente.

Quer dizer, a covid funcionou como uma espécie de curto-circuito para a gente perceber tudo isso junto. Que a nossa maneira de olhar para a saúde mental não estava boa, que a gente estava se dopando para conseguir resistir a esse sistema e a gente estava trabalhando de um jeito que a vida estava ficando muito pequena.

Então, a partir daí, a gente está num momento em que um velho paradigma não dá mais, não funciona mais e a gente não tem o novo.

A gente sabe que nesse novo, provavelmente a atenção e o cuidado ao sofrimento serão muito importantes. Provavelmente a escuta será muito importante, o sentimento de você estar pertencendo a uma comunidade, a um corpo, a um projeto, vai ser muito importante.

Mas como isso tudo se liga? Numa diagnóstica, em novas terapias, ainda não está dada.

Então quais são os caminhos a serem seguidos?

É um caminho ético e político. Ele é ético na medida em que a gente precisa implantar uma cultura do cuidado, uma cultura do cuidado com si.

A maior parte do que a gente chama de autocuidado hoje não é autocuidado. É método de corrida, fazer exercício, etc. Isso é bom, é ótimo, mas isso não é autocuidado. Isso muitas vezes é disciplina, é método, é mais policiamento da pessoa em cima de si, aliás, muitas vezes feito sem cuidados, a base do porrete, a base de me forçar, uma relação de violência comigo.

Então estou falando de desenvolver uma cultura de cuidado, como a gente desenvolveu uma cultura de cuidado com a saúde. Faça exames, faça check-up, não engorde demais, cuide com o álcool. Isso tá posto pra gente, né? Mas a gente não tem um equivalente quando a gente olha pra saúde mental.

Então a gente vê pessoas em organizações em rotas de colisões, de choque, de autodestrutividade e acaba sendo conivente. Ou seja, tem essa dimensão ética do cuidado e tem a dimensão política da organização coletiva, para dizer, “olha, tem certas coisas que a gente tem que evitar”.

Não tem que evitar a gordura trans? Tem [também] que evitar uma coisa chamada microgestão. Empresa que usa microgestão, que fica controlando cada centímetro que aquele funcionário faz ou não faz, é temeroso.

Daqui a dez, vinte anos a gente dizia “olha como as pessoas fizeram, as pessoas planejaram banheiros que uma pessoa não conseguiu ficar mais de três minutos porque era para aumentar a produção”.

Essa dimensão ética de um lado, política de outro, ela convoca algumas diretrizes. Primeiro que a gente tem que fazer algo antes do sintoma. Não adianta. Você só pode se manifestar e dizer “eu preciso de ajuda” se você tiver uma depressão ou ansiedade.

Por que a gente precisa de um diagnóstico para cuidar?

A saúde mental não faz nenhum território. Não adianta me encaixar chamando especialistas, tem que olhar ali naquela casa, naquela escola, aquela empresa. Que recursos que a gente tem aqui? Onde estão os pontos de escuta? onde é que estão os pontos de recomposição? onde é que está a escuta transformadora? quem são essas pessoas?

Nem sempre são os líderes, os gerentes, os donos. Às vezes é aquela pessoa que tem uma posição mais humilde, mas ela é fundamental para a saúde mental desse grupo.

A gente nem olha pra isso, tudo invisível.

Do Brasil de Fato

Artigos relacionados

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Botão Voltar ao topo