CNE pode instituir aprendizagem híbrida que favorece exclusão social
As últimas composições do CNE só têm olhos e sensibilidade para os interesses das instituições privadas de ensino
Por José Geraldo de Santana Oliveira*
Acha-se em discussão no Conselho Nacional de Educação (CNE) projeto de resolução que “ Institui Diretrizes Gerais Nacionais para a Aprendizagem Híbrida”; por meio de “EDITAL DE CHAMAMENTO Consulta Pública acerca de Proposta para Diretrizes Gerais sobre a Aprendizagem Híbrida”. Foi aberto o meteórico prazo de dez dias, de 16 a 26 de novembro, para apresentação de “contribuições” ao referido documento.
I DO SIGNIFICADO E DAS FINALIDADES DA “APRENDIZAGEM HÍBRIDA”
2 O Parecer que fundamenta o citado projeto de resolução, à página 3, assevera que “Ao se discutir a educação inspirada nos flexíveis princípios de hibridismo, configura-se reducionista considerar essa metodologia de aprendizagem como a simples composição de momentos presenciais e virtuais no cotidiano da escola”.
Essa assertiva, de cunho oficial, para além de infirmar o entendimento de que ensino híbrido é o que mescla, simultaneamente, aula presencial, para quem estiver em sala, e remota, para os que a acompanham ao vivo, amplia de forma ilimitada os significados registrados nos dicionários do adjetivo híbrido (composto, heterogêneo, misturado, mesclado etc.); infere-se dela que ensino híbrido comporta tudo, trabalho presencial, remoto ao vivo (síncrono), gravações e vídeos (assíncronos) e qualquer outra atividade distante, no tempo e no espaço, sempre tendo como pedra angular as tecnologias de informação e comunicação (TICs), como anotado à página 11 do documento referência.
II DA REVOGAÇÃO DOS LIMITES DE PERCENTUAL DA CARGA HORÁRIA NA EDUCAÇÃO BÁSICA OFERTADA À DISTÂNCIA E DA CONFUSÃO ENTRE ATIVIDADES PRESENCIAIS, SÍNCRONAS E ASSINCRONAS
Ainda à página 11, o documento referência arremata, de modo a não deixar remanescer qualquer dúvida sobre o que efetivamente se pretende com a chamada aprendizagem híbrida:
“Em síntese, com a flexível metodologia da Aprendizagem Híbrida busca-se ampliar as balizas regulatórias atuais, sem os limites percentuais estabelecidos para as práticas e os aprendizados remotos possíveis para estudantes, seja em cursos presenciais, seja naqueles desenvolvidos no âmbito da EaD”.
Nos termos dessa sentença, parece que não mais haverá parâmetros e limite temporal sobre o quê e o quanto será presencial, em sentido estrito, síncrono e assíncrono; pelo que se colhe do projeto de resolução, isso ficará a critério de cada sistema de ensino e/ou, na falta de regulamentação objetiva por ele baixada, de cada instituição de ensino, podendo, inclusive, estabelecer-se a prevalência de atividades remotas, síncronas e assíncronas, sobre as presenciais, em sentido estrito, com colossais prejuízos para a educação preconizada pelo Art. 205, da Constituição Federal (CF) e para os contratos de trabalho docente, que correrão riscos de redução ao mínimo, de terceirização e de contratação intermitente, transformando-se o/a professor/a de sujeito essencial do ensino, como mediador/a insubstituível, em mero/a coadjuvante, sendo substituído/a pelas TICs.
Apesar de o documento referência afirmar e reafirmar que aprendizagem híbrida não se confunde com educação à distância, e que esta pode servir-se daquela, pelo que se depreende do excerto acima, dele extraído, essa negativa soa como vã tentativa de tapar o sol com a peneira, metaforicamente falando; o que, a rigor, faz esse realçado documento é escancarar fronteiras sem fim para o predomínio de atividades remotas, síncronas e assíncronas, em todas as etapas e modalidades do ensino básico, sem delimitar tempo e momento para cada uma delas.
Esse rompimento total de limites e de momentos pode chegar ao extremo de uma mesma aula, concomitantemente, ser presencial, síncrona e assíncrona. Se isso se concretizar, e nada indica que se dará de forma diversa, perderão o ensino e os professores; em contrapartida, ganharão, e muito, as instituições privadas de ensino.
III DO DIVÓRCIO ENTRE AS DIRETRIZES PARA A “APRENDIZAGEM HÍBRIDA” E A REALIDADE BRASILEIRA
3 O prolixo arrazoado e o projeto de resolução, ao longo de suas 16 páginas, não cuidam de buscar ecos para suas finalidades e propósitos na realidade brasileira, sobretudo àquela que diz respeito à dimensão, à diversidade e ao estágio atual da educação, em especial no nível básico, que se patenteiam no Censo da Educação Básica/2020, publicado em 2021.
Ao que parece, tais documentos foram escritos com finalidade meramente retórica, sem qualquer pretensão de aplicação à dura realidade concreta; ou, o que é gravíssimo, de fazer com que a “aprendizagem híbrida” fique restrita às instituições de ensino que possuam TICs adequadas.
III1 O QUE REVELA O CENSO DA EDUCAÇÃO BÁSICA/2020
4 Segundo o Censo da Educação Básica, no ano de 2020, nos 5.570 municípios brasileiros, os principais indicadores educacionais no nível básico eram os seguintes:
I 47,3 milhões de matrículas, em 179,5 mil escolas; sendo 48,4% nas redes municipais, 32,1% nas estaduais, 18,6% nas instituições privadas e 1%, na federal;
II taxa de distorção idade-série de 22,7%, nos finais do ensino fundamental, e 26,2%, no ensino médio;
III 179.533 estabelecimentos de ensino, dos quais 39 mil privados;
IV 2.189.005 docentes, dos quais mais de 1.700.000 em escolas públicas;
V internet presente em 96,8% das escolas particulares, 66,2% nas redes municipais; internet banda larga em 85% da rede privada e em 52,7% das escolas municipais; internet para uso administrativo disponível em 93,5% da rede particular, em 63,4% das redes municipais;
VI o percentual de internet banda larga, em algumas regiões, apresenta baixa cobertura, destacando-se com menor acesso Acre, Amazonas, Maranhão e Pará; apenas 31,4% das escolas de ensino fundamental da região Norte possuem acesso à internet banda larga; no Nordeste, 54,7%.
III2 O QUE REVELOU PESQUISA DA UNDIME
5 Pesquisa da Undime, em parceria com o Unicef e o Itaú Social, divulgada aos 22 de março de 2021, com base em respostas dadas por redes municipais de 3.772 municípios (66,9%), cobrindo 2/3 dos estudantes matriculados em escolas públicas municipais dos 5.570 municípios brasileiros, desnuda cenário angustiante e desolador, que brada por medidas urgentes.
A pesquisa revela que 91,9% das redes que responderam à pesquisa desenvolveram, no ano de 2021, apenas atividades pedagógicas não presenciais; e, por conseguinte, apenas 8,1% desenvolveram atividades híbridas; 69,8% concluíram o ano letivo de 2020 em dezembro; 22,9% programaram a conclusão para 2021; e 7,2% estavam reorganizando-o.
6 As estratégias de atividades pedagógicas não presenciais utilizadas foram as seguintes: 95,3% das unidades escolares serviram-se de material impresso; 92,9%, orientações por whatsapp; 61,3%, vídeo aulas; 54%, orientações on-line por apps; 22,5%, plataformas educacionais; 21,3%, vídeo aulas ao vivo; 4,1%, aulas pela TV; e 2,6% pelo rádio.
Segundo as respondentes, em 60% delas cerca de 75% dos estudantes participaram das atividades não presenciais – ou seja, nelas, 25% não participaram. Isto sem contar as outras 40% em que o índice de participantes não foi tabulado.
7 Em comunidades sem acesso à internet, de muitos estados, como Goiás, os alunos receberam conteúdo didático e listas de atividades, por meio de material impresso, enviado pelas escolas a farmácias e supermercados, para serem recolhidos pelas famílias dos estudantes; outras escolas deixam materiais didáticos para que os estudantes tirem foto e estudem em casa.
Fenômeno que se repetiu em centenas de outros municípios. Ao tempo em que tais iniciativas revelam compromisso e esforço de professores e de gestores públicos para salvar o ensino, ao menos em seu aspecto formal, atesta a incapacidade dos municípios no enfrentamento dos nefastos efeitos da pandemia.
Que dizer da “aprendizagem híbrida”, que tem como pedra angular as tecnologias de informação e comunicação, segundo o citado documento do CNE?
III3 O QUE REVELOU RELATÓRIO DO UNICEF
8 O Unicef, com base em dados do IBGE, divulgou, em janeiro de 2021, relatório que atesta que 5,5 milhões de estudantes de 6 a 17 anos não tiveram atividades pedagógicas em 2020; e mais: 4,8 milhões de crianças não têm acesso à internet.
Como se não bastasse tudo isso, ainda segundo o relatório do Unicef, em 2019 cerca de 6 milhões de estudantes encontravam-se na chamada distorção idade-série, ou seja, atrasados em relação ao ano escolar próprio para sua idade; e, naquele ano, 2,1 milhões de estudantes ficaram retidos no ano escolar, isto é, foram reprovados.
III4 O QUE REVELA O CENSO DA EDUCAÇÃO SUPERIOR/2019
9 No que diz respeito ao ensino superior, em 2019, havia 8.604.526 – 17,9% dos jovens de 18 a 24, bem longe de 33%, previsto pelo PNE – matrículas nesse nível, das quais 6.524.108, equivalentes a 75,8%, em escolas privadas; sendo 4.231.071 presenciais e 2.292.607 à distância.
Em 2011, havia 4.151.371 matrículas presenciais em IES privadas, e 815.003 à distância. Importa dizer: em 9 anos as matrículas presenciais cresceram 1,93%; enquanto isso, as matrículas à distância cresceram 182%.
O crescimento do ensino superior privado chegou ao extremo de, em São Paulo, haver mais de quatro alunos na rede privada para cada aluno na rede pública; e em dez outras unidades da Federação esse número é superior a dois.
Apenas nos estados da Paraíba, do Rio Grande do Norte e de Roraima há mais alunos na rede pública do que na rede privada.
Enquanto as IES públicas ofereceram 103.584 vagas à distância, as privadas ofereceram 10.292 milhões.
Do total de 2.608 instituições de ensino superior, 2.306 são privadas e 302, públicas, assim distribuídas: 108 universidades públicas e 90, privadas; 11 centros universitários públicos e 283, privados; e 143 faculdades públicas e 1.933, privadas.
Do total de 40.427 cursos superiores ofertados, 29.713 o são pelas IES privadas.
No que pertine ao quadro docente, havia 386.073 em exercício na educação superior no Brasil. Deste total, 54,3% tinham vínculo com IES privada e 45,7%, com IES pública.
IV DA IMINENTE PERSPECTIVA DE A CHAMADA “APRENDIZAGEM HÍBRIDA” CONSTITUIR-SE EM FORTE INSTRUMENTO DE EXCLUSÃO SOCIAL
10 O cotejo dos números estampados pelo Censo da Educação Básica e da Superior com a pedra angular da “aprendizagem híbrida”, representada pelas tecnologias de informação e comunicação, ausentes de considerável percentual das escolas públicas – itens 4 a 8 –, revela que a adoção dessa metodologia, no contexto atual, para além de privilegiar as instituições de ensino privado e quem nelas pode estudar, representará, ao fim e ao cabo, forte instrumento de exclusão social, ao consagrar a elitização do ensino, combatida e totalmente desautorizada pela Constituição Federal, como se colhe de seus Arts. 6º, 205, 206, 208, 212 e 214.
O repisado documento de referência do CNE assevera que “aprendizagem híbrida” não pode, em nenhuma hipótese, ser confundida com EaD; no entanto, sem o dizer, aprova diretrizes que tornarão a educação distante na esmagadora maioria dos 5.570 municípios, para quem estuda em escolas públicas.
Com todo respeito à relevância do CNE para a educação brasileira, patenteia-se que suas últimas composições só têm olhos e sensibilidade para os interesses das instituições privadas de ensino, em flagrante dano e irreversível prejuízo para suas funções precípuas, consubstanciadas nas diretrizes gerais para a educação nacional.
*José Geraldo de Santana Oliveira é consultor jurídico da Contee