Crise e reforma

por Pedro Salomon Bezerra Mouallem

A verdade é que, em maior ou menor grau, democracias contemporâneas se disciplinaram às chantagens do fundamentalismo de mercado (a expressão se popularizou com o sociólogo americano Fred Block). O senso comum econômico – repetido a cada notícia de jornal, incorporado a cada decisão jurídica, normalizado em cada conversa informal – tem cumprido o papel de estabelecer os vínculos entre reformas e políticas liberais e bom desempenho econômico.

Mesmo após ficar claro que a pandemia do Covid-19 representaria uma catástrofe humanitária global, o ministro da Economia brasileiro seguiu clamando ao Congresso Nacional a necessidade de se “transformar a crise em reformas”. Tomando a calamidade como momentum para alavancar sua agenda, Paulo Guedes insiste na urgência das reformas liberais que, definitivamente, “ajudarão” a enfrentar a situação e colocarão o país nos trilhos do crescimento – reduzir o custo do funcionalismo público, modificar a tributação, privatizar empresas públicas, e assim por diante.

A postura tem criado um mal-estar mesmo entre aliados, sobretudo porque advoga uma solução arranjada antes de o problema surgir. Ainda mais ao ser feita alternadamente às declarações do presidente que relativizam a gravidade da pandemia, o que reforça a impressão de oportunismo. Para além da chantagem implícita no pronunciamento, o incômodo deriva da falta nexo entre o diagnóstico da crise e as reformas propostas.

A verdade é que, em maior ou menor grau, democracias contemporâneas se disciplinaram às chantagens do fundamentalismo de mercado (a expressão se popularizou com o sociólogo americano Fred Block). O senso comum econômico – repetido a cada notícia de jornal, incorporado a cada decisão jurídica, normalizado em cada conversa informal – tem cumprido o papel de estabelecer os vínculos entre reformas e políticas liberais e bom desempenho econômico. Se expectativas de causa e efeito se romperam repetidamente nas últimas décadas, foram de pronto repostas pela ameaça: “se não mantivermos a política econômica, se a próxima reforma não for maior e mais radical, não apenas deixaremos de crescer, mas entraremos em crise”. A catástrofe ingressou, assim, no dia a dia da política como justificativa auto-evidente para a existência de Guedes, Levys e Meirelles em nossas vidas públicas.

A dura lição para democracias capitalistas nos últimos 40 anos foi o lento redesenho dos limites entre Estados e mercados e a severa contenção das expectativas por direitos. Décadas de neoliberalismo ensinaram que, em regra, reformas econômicas voltam-se à audiência dos investidores – ávidos por novas oportunidades de lucro e por garantias de que investimentos já feitos serão aproveitados –, cuja confiança não deve ser ameaçada. E que, de outro lado, cidadãos e cidadãs devem se conformar às limitações de um Estado fiscalmente frágil. No período, crises contribuíram para aprofundar esse movimento e não para alterá-lo.

Soluções de mercado

Algo mudou. Diante da nova pandemia, em poucas semanas, ações e pronunciamentos de governantes, organizações multilaterais, movimentos sociais, intelectuais têm esvaziado a gramática que naturaliza tal forma de gestão da economia. Subitamente, o campo econômico deixou de ser tratado como o reino da deferência às decisões privadas de investidores sem endereço fixo e voltou a ser parte da vida política e da organização diária da  sociedade. As ditas “soluções de mercado” são cada vez mais tratadas como estéreis diante do funcionamento precário da economia que ameaça uma nova recessão global.

Economistas mais realistas alertam que, diferentemente da última crise global, agora a quebra de cadeias de suprimento não se repara com a redução de juros por bancos centrais. Os jogos das sinalizações market-friendly continuam vigentes, mas já não determinam todo o movimento da economia. Se a produção é paralisada por indivíduos em quarentena, o pressuposto de ajuste automático aos incentivos a partir de decisões econômicas racionais vai por água abaixo. Da mesma forma, políticas monetárias já não revertem a decisão de “consumidores” de permanecerem em casa por algumas semanas, se sua preocupação se relaciona à segurança e não ao custo dos produtos. A atuação do Estado ganha nova dimensão. Volta-se, assim, a falar em economia de guerra: tabelamento de preços, racionamento de bens essenciais, manutenção da produção por determinação pública.

Além disso, fica evidente que qualquer solução econômica depende, antes, de uma atuação ativa por parte dos Estados no campo da saúde. Como especialistas de todo o mundo alertam, o importante é frear o ritmo de propagação do vírus para sistemas de saúde sejam capazes de tratar adequadamente os casos graves da doença, à medida que forem surgindo. Para tanto, medidas de isolamento social mostraram-se eficazes em algumas experiências e devem persistir. Aliado a isso, faz-se necessário maior investimento público em pessoal, materiais, equipamentos e leitos para que hospitais, públicos e privados, não colapsem em poucas semanas.

Prevenção e tratamento

Cabe também ao Estado viabilizar ambas as ações, de prevenção e tratamento, também para as camadas mais pobres da sociedade. Como se realizar isolamento social sem moradia adequada? Como impedir a propagação do vírus em locais sem saneamento básico? Como evitar que haja um colapso social com pessoas à beira da fome, cujos empregos precários desapareceram do dia para a noite? Como tratar a maior parte dos doentes em hospitais públicos, já defasados em situações normais pelo subinvestimento? A tragédia que se avizinha relembra os governantes, mais que o de costume, que para endereçar problemas de toda a sociedade diante do novo vírus não se pode ignorar os mais pobres. Recuos recentes de Bolsonaro em mudanças de leis trabalhistas por medida provisória dão notícia disso.

As respostas nacionais surgem, nesse contexto, de uma mistura de improviso e mimetização. Também por isso são atabalhoadas e muitas vezes contraditórias. Fronteiras nacionais são fechadas, mobilidade individual é restrita, governos decidem cobrir (parcialmente) salários dos afetados pelo vírus e distribuir benefícios aos mais pobres, pacotes de emergência são editados para salvar empresas, novos investimentos em pesquisas ganham espaço, e assim por diante. No Brasil, se a agenda Guedes de limitar direitos não é abandonada, o governo é ao menos forçado a reconhecer a utilidade, por exemplo, de bancos públicos para enfrentar a situação. Liberais de todas as matizes vão se desmentindo, diariamente, em todo o mundo.

Destruir e não construir

Por aqui, a atuação dúbia do Estado inscreve-se nos próprios impasses políticos do país. Com um presidente afeito a destruir e não construir, a reação surge de modo fragmentado. Diante de Bolsonaro, mesmo os insuspeitos de terem boas intenções, como Witzel e Dória, criam ações oportunas e, a um olhar desavisado, mostram-se grandes estadistas. O governo federal, como pode, busca minar iniciativas estaduais para evitar qualquer projeção política para além de sua própria. A tentativa de Bolsonaro de minimizar a questão, baseado em dados falsos e acusações infundadas, em sentido semelhante às falas de grandes empresários brasileiros, transparece desespero diante do impasse em que sua agenda ultraliberal se meteu. A oposição instantânea ao presidente reafirma também que a definição de crise extrapola o círculo do governo.

Em suma, Estados são demandados a cumprir funções que, supunha-se, já se encontravam fora de sua alçada. Ressurge, assim, a consciência de que a política tem ainda um papel crucial na vida em sociedade, o que inclui o campo econômico. Sem projeções baseadas em fatos, argumentos convincentes, diálogo, ações concretas e coordenação política, essa é a conclusão predominante, dificilmente se encontrará um caminho à questão atual. A redescoberta do Estado e da sociedade nasce do pragmatismo e não de ideias bem delineadas sobre como o Estado deva agir. Qualquer semelhança à narrativa de Karl Polanyi sobre as reações aos efeitos destrutivos do liberalismo no início do século XX não é mera coincidência. Inesperadamente, os fatos põem à prova as ideias dominantes sobre economia e política e governantes de todos os espectros políticos são empurrados a usar instrumentos públicos para não ser engolidos pela inação.

Contudo, às vésperas do ápice da propagação do vírus e meses antes de um balanço apropriado sobre seus efeitos, ainda não estão claros quais serão os novos papéis do Estado daqui em diante. Aliás, qual tipo de economia surgirá dessa experiência está, desde já, em disputa. Dos novos fatos, pode despontar uma economia mais solidária e pública, em sentido lato, em que o Estado seja novamente capaz de atender a audiência da cidadania. Por outro lado, pode-se caminhar para a normalização do controle por Estados autoritários, da vigilância centralizada e da repressão. Novos Estados fortes podem aprofundar a dinâmica de opacidade e desigualdade econômica que, vale dizer, ajudaram a criar. Fato é que seja para estabelecer nações mais fechadas ou egoístas, seja para retomar o projeto igualmente destrutivo de globalização, Estados cumprirão um papel central. A relação entre a crise e reformas futuras nascerá da interpretação social desse movimento.

No fundo, com a pandemia, governos e pessoas enfrentam de forma aguda e súbita as dificuldades de cooperar e seguir regras públicas, em domínios reservados à competição e às escolhas privadas. A solidariedade social surge como dever individual, substituindo o há muito pressuposto homo economicus. Não por outra razão, parece absurdo o esvaziamento das prateleiras de remédios e outros bens essenciais nesse momento. A situação explicita o fim da espontaneidade no campo econômico, revivendo um tipo de economia política que se julgava morta. Se a crise atual se alimenta dessas questões, reformas futuras não devem as ignorar.

Enfim, estamos diante de uma oportunidade não para reduzir mas para a capacitar o Estado. Não para a retomar a qualquer custo a confiança privada mas para a reconstruir politicamente a noção de “público”. Como dito, não necessariamente caminharemos nessa direção, mas a possibilidade se tornou menos utópica. Isso não é pouca coisa para um país que, há anos, encontra-se em marcha liberal forçada, como é o caso brasileiro.

*Pedro Salomon Bezerra Mouallem é doutorando em direito pela Universidade de São Paulo e pesquisador na FGV Direito SP.

Le Monde Diplomatique

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