Cuba hoje: uma complexa e singular experiência
“Ser cultos é o único modo de sermos livres”
José Martí.
A frase acima citada por esta grande figura da história de Cuba – talvez, o maior inspirador de sua história revolucionária – revela muito bem a estreita correlação entre a educação e o processo revolucionário que teve, em José Marti, seu mais consistente e genuíno referencial.
O presente artigo é fruto de minha participação no curso de Pós-Graduação em Pedagogia Participativa Cubana, realizado na Escuela Superior Ñico Lopes em Havana, de 1 a 10 de julho de 2015. Oportunizado pelo CES (Centro Nacional de Estudos Sindicais e do Trabalho), o curso contou com o apoio das centrais sindicais dos dois países: a CTC (Central dos Trabalhadores de Cuba) e a CTB (Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil).
A pedagogia participativa cubana é reconhecida mundialmente como uma experiência exitosa, tanto no que diz respeito à formação escolar e técnica de seus jovens, quanto à formação integral de seus cidadãos e qualitativa de seus quadros sindicais e políticos. Tal experiência não se explica nem se entende senão no contexto do processo revolucionário cubano, cujo sistema político e seus resultados se construíram na coerência dos ideais buscados e na integração entre escolas e as diversas organizações sindicais, populares e políticas.
O objetivo deste, pois, é compartilhar a impressão que tive do curso e da viagem, a qual durou 16 dias, assim como alguns dos aprendizados e das reflexões suscitadas pela experiência, já que visitar Cuba, nesse momento social e político tão complexo, é uma oportunidade única. Interessa-me, nesse momento, trazer à luz alguns elementos que possam nos ajudar a entender o que é Cuba, sem a pretensão de perseguir qualquer visão totalizadora e definitiva sobre o assunto. Considero, ainda, os artigos já disponibilizados na internet sobre a mesma viagem de nossos companheiros Liliana Aparecida de Lima, psicóloga e professora da PUC-Campinas, e Augusto César Petta, coordenador do grupo que viajou a Cuba pelo CES.
Não conhecia a ilha. De sua história, apenas algo muito genérico por poucas leituras e o desconhecimento construído pela campanha midiática e mundial anti-cubana que reduz a realidade dos cubanos a casas e carros velhos pelas ruas, salários baixos, pobreza material e ditadura comunista. O que dizem, certamente, é para deixar qualquer um com medo. Mas também sabemos que, para lá, são levados grupos de turistas (com guias patrocinados pelos opositores do regime atual) a fim de convencê-los de que os cubanos vivem na miséria, que o comunismo é sinônimo de pobreza e que Fidel é o quarto homem mais rico do planeta; e coisas do estilo…
Embora eu soubesse das distorções da campanha midiática, que sempre foi voz das classes dominantes e da direita no Brasil, e no mundo (satanizar Cuba é um dos meios que a direita utiliza para fazer oposição a qualquer projeto político que seja popular – mesmo que não seja socialista), não tinha os argumentos e os elementos de contexto necessários para entender tal realidade de forma mais adequada, seja no seu plano sócio-político ou ideológico. Daí que chegar a Cuba pela primeira vez significou uma grande expectativa. Nesse sentido, posso dizer, sim, que tanto o curso como os passeios pelos museus, lugares típicos de Havana e Villa Clara, conversar com pessoas nas ruas, nos hotéis, nas casas… foi de fundamental importância. A viagem, em si, foi uma verdadeira escola! Só estando lá, com a mente aberta, para entender como Cuba foi e é capaz de influenciar tanta gente.
Com uma perspectiva de abertura e de receptividade diante do povo cubano e de sua trajetória, o que se pode perceber, de forma geral, é que Cuba não é um país que “teve” uma revolução, mas um país que “está” em revolução. Tal singularidade só pode ser percebida desde o interior de sua realidade. A combinação desse sentimento entre os mais de dez professores/as que nos ministraram as aulas, profundas e altamente qualificadas, e a maioria dos cidadãos comuns com os quais conversávamos nas ruas, nas filas, no ônibus…, foi se definindo à medida em que fazíamos perguntas sem preconceitos. Há muitas pessoas descontentes, sim, pois sofrem carências. E é importante entender esse sentimento. Mas há também o orgulho pela sua história e pela revolução. Apesar de serem reticentes frente aos acordos Cuba-EUA no que se refere a uma abertura do país e fim do bloqueio, há memória, esperança e resistência no meio do povo.
Além das paradisíacas praias caribenhas, o que se encontra em Cuba hoje não é um mar de miséria, embora ainda haja a carência de muitos bens materiais que, segundo o padrão de qualquer sociedade capitalista, significa uma grande pobreza. Para entender o que lá se vive, é preciso visitar a sua história, pelo menos dos últimos 70 anos e, sobretudo, o período especial que significou o sangramento da nação.
Como a maioria dos países latino-americanos e caribenhos, Cuba foi um país colonizado – de diversas formas – por espanhóis e ingleses e, por essa razão, contou com uma série de rebeliões desde o início do séc. XIX. Ocupada pelos EUA até início do século XX, Cuba seguira nas primeiras décadas do século passado sob a influência e o poder dos EUA, porém com o acirramento de diversos movimentos de independência. Na década de 1950, um grupo de jovens liderados por Fidel Castro Ruz, ao qual se somou depois o argentino Ernesto Guevara de la Serna, empreende uma revolta camponesa contra o ditador e vassalo dos americanos Fulgencio Batista, chamado até hoje, popularmente, de El Tirano. Nesse período, Cuba era também conhecida como quintal dos Estados Unidos que impunha ao país seus interesses acima dos da população cubana. Esta vivia, em sua maioria, na miséria e no analfabetismo, repressão sangrenta do estado, patrocínio e aumento da prostituição, convertendo Cuba em um verdadeiro bordel do Caribe e, sobretudo, para os EUA.
A revolução guerrilheira e camponesa encabeçada por Fidel e Che Guevara, após anos de tentativas e investidas frustradas, teve seu desfecho em janeiro de 1959, com o aumento e o avanço das forças rebeldes, com a fuga das elites nacionais e estrangeiras e do ditador que, aliás, levou de Cuba todo o tesouro nacional. Embora se reconheça também os erros que podem acompanhar toda revolução armada, o saldo da revolução cubana supera os erros do processo. Este foi e é reconhecido mundialmente por suas conquistas sócio-culturais: extinção do analfabetismo no primeiro ano da revolução, crescimento científico e cultural, modelo de educação participativa, formação de excelência em medicina, educação e saúde públicas gratuitas e de qualidade, estatização do latifúndio (inclusive das terras da família do Fidel e de outros dirigentes), socialização da moradia e criação de cooperativas que deram ao povo uma qualidade de vida e condição econômica invejável para qualquer país caribenho ou latino-americano naquela época. Outros exemplos para nós, latino-americanos: 50% do parlamento cubano é integrado por mulheres, que são também a maioria em importantes setores da sociedade como o jurídico, o educacional e o da saúde; tem uma ínfima taxa de mortalidade infantil; além disso, apesar de seus poucos recursos, Cuba é reconhecida pela erradicação do analfabetismo (99,9% da população está alfabetizada e boa parte dela fala, pelo menos, dois idiomas) e de muitas enfermidades ainda presentes em vários países do mundo.
Mas, com todas essas conquistas… como Cuba, então, teria chegado à carência material que vemos nos últimos tempos? Casas velhas, sem reforma, salários baixos, falta de produtos há muito considerados básicos pelo restante dos países. Temos que nos reportar, novamente, à história da revolução cubana. Uma das consequências internacionais para o processo revolucionário foi o bloqueio naval e embargo econômico imposto a Cuba pelos EUA e aliados, já nos primeiros anos da revolução, o que deve ser considerado um crime contra o povo cubano. De fato, se a revolução desse certo, os interesses do capital teriam muita dificuldade de se imporem como se impuseram em todo o continente. Sem falar no “péssimo” exemplo que seria Cuba para o resto do mundo!
Com o bloqueio econômico, o país perde 85% de seu mercado. Um pouco mais tarde, com a queda do muro de Berlim e o fim do regime comunista russo (antiga União Soviética), que até então amparava e dava suporte financeiro, militar e estrutural a Cuba, o país entra em profunda recessão após os russos se retirarem. Esfolados pelo embargo econômico durante décadas e sem amparo, a partir dos anos 90 o país, que conta com pouca diversidade de recursos naturais (por várias décadas, a ilha teve que importar cerca de 80% dos alimentos que consome!), ficou desabastecido e carente de indústrias e renovação de bens. Durante algum tempo, sequer tinham comida suficiente, sabonete para banhar-se e material de construção para fazer reformas. Desde então, uma cota de bens básicos (alimentos e alguns produtos de higiene) é oferecida gratuitamente e de forma racionada para todo cidadão cubano. Nos períodos mais críticos, a cota teve exclusão de itens. Até os dias de hoje, porém, há uma série de outros produtos subsidiados pelo governo, aos quais os estrangeiros não têm acesso, além do transporte coletivo ser quase gratuito para os cubanos.
Forçadamente isolada, Cuba utilizou de medidas muito duras para manter o regime revolucionário e o povo com o mínimo necessário. Esta fase, também chamada de “período especial”, repercutirá até os dias atuais e só começará a dar sinais de mudança nestes últimos anos. Com tal carência, muita gente fugiu do país, que fica a cerca de 150 quilômetros de Miami. Com o envio de dólares pelos cubanos de Miami a seus familiares, hoje o país conta com essa desigualdade social e com uma faixa de jovens que não quer estudar nem trabalhar e que tem coisas (comidas, celulares, tablets, joias, roupas, etc) que os outros cubanos não podem ter com seu salário. Um sério abacaxi para ser descascado pelo governo! No entanto, em Havana e outras localidades podemos ter um profundo sentido de segurança, embora, também de uma excessiva tutela e controle social em alguns ambientes. Não raro se escuta dizer que lá não tem baleados, nem sequestro ou tráfico de armas… Mas cuidado! Como nos disse um amigo trabalhador do hotel onde ficamos: “aqui não é favela, mas também não é o Vaticano” (mal sabe ele sobre o vaticano!!), querendo alertar-nos para a ocorrência de fraudes e de golpistas que vai aumentando no país.
O contexto, que amadora e brevemente acabamos de descrever, deve ser considerado por todos aqueles que desejam, sinceramente, entender a situação atual de Cuba. O descontentamento de parte da população em relação ao país se deve, em parte, à pobreza imposta pelo embargo e à sedução do capital que já chega e, por outra, à campanha dos cubano-americanos, os “contra” o regime de Fidel, que financiam a oposição política em Cuba pela queda do regime socialista. Quantos atentados a Fidel e tentativas de invasão dos EUA à ilha que a mídia não noticiou!!! Quando escutávamos os relatos do que eles passaram no período especial, eu me perguntava se seria capaz de resistir a essa situação, como a maioria do povo cubano resistiu. Daí, penso, a importância de um processo revolucionário que teve na educação seu principal pilar. Porém, não se trata de qualquer educação.
O que em Cuba se destaca em relação ao seu modelo e processo educativo foi sendo construído ao longo dos anos, das décadas. Embora tenha tido grande influência do método de Paulo Freire nos princípios da revolução, sobretudo no que se refere ao movimento pela alfabetização massiva da população, os cubanos conseguiram criar um construtivismo próprio, com foco no desenvolvimento integral do sujeito social, mas também de sua personalidade. Fidel e Che Guevara foram os principais incentivadores da educação desde o início do processo revolucionário. Nos idos dos anos 50, quando Fidel e seus companheiros estiveram presos, estudavam. No campo ou nas aldeias, nos quartéis, abriam escolas populares, alfabetizavam e ensinavam filosofia e história. Ensinavam a pensar criticamente. Naquele país, ninguém que queira ascender a um cargo o faz sem estudar. Na segunda semana de nosso curso, na Escola Superior Ñico Lopes, havia todo um ministério do governo lá estudando. Como dizia Fidel Castro: “É impossível organizar um povo e um país para os graus mais altos sem educação”.
Tal exemplo é digno de admiração e podemos sintetizar em poucas e significativas palavras as ênfases ou tendências que – segundo o que nos ensinaram e pude perceber – sustentam o projeto educativo cubano nos dias de hoje: profunda consciência de sua condição no mundo e história; estreita relação teoria e prática; enfoque sistêmico; sistematização da experiência e desenvolvimento do pensamento abstrato; lógica, teoria do conhecimento e metodologia geral baseados na concepção dialética materialista; compreender a essência das coisas/realidades pela participação nos processos; regressar à prática para transformá-la; uso racional e equilibrado da tecnologia; formação ideológica e de valores para o exercício da justiça e o projeto social; formação integral e continuada de todos os quadros; busca de excelência no ensino superior, visando tanto o crescimento profissional como humano; capacidade de auto superação e auto avaliação; aperfeiçoamento do sistema nacional de educação ano a ano; constante auto preparação; visão interdisciplinar; processo educativo que dá protagonismo ao estudante e ao docente, onde ambos devem ser sujeitos ativos e críticos no processo; respeito às crenças e diversidade ideológica de cada um. Não se pode negar que foi o processo revolucionário integral que deu ao sistema educacional cubano as condições para ser um dos países mais bem avaliados internacionalmente quanto aos índices de qualidade da educação.
A partir dessas percepções, entendo por que, quando perguntamos às pessoas se tinham esperança no processo de abertura, vários cubanos se expressavam nesses termos: “Sim, queremos muito que isso aconteça, mas não queremos chegar à situação que vocês, no mundo capitalista, chegaram”. Entre os cubanos existe uma consciência muito crítica, tanto em relação a si como ao mundo exterior: sabem o que deve ser mudado em sua realidade, embora ainda não tenham tanta clareza dos caminhos a percorrer; porém, não querem se tornar, novamente, reféns do capital. Como isso será possível, nós não sabemos; mas alguns nos afirmaram, com muita convicção, que não deixariam Cuba perder sua soberania. A história o dirá.
O lado de Cuba que conheci, no entanto, me deu muita esperança de que os cubanos seguirão resistindo e sendo um povo soberano e solidário. O que se construiu humanamente será difícil destruir. E, com certeza, continuarão a inspirar parte dos povos para a busca de um mundo melhor para todos e todas.
Silvana Suaiden
É teóloga e professora da PUC-Campinas, Vice-presidente da Apropucc (Associação dos Professores da PUC-Campinas) e Diretora do Sinpro (Sindicato dos Professores de Campinas e Região)