Declarações do ministro Ricardo Vélez trazem à tona um velho debate educacional: afinal, quem tem direito de ir para a faculdade?

Em uma entrevista recente, o ministro da Educação Ricardo Vélez Rodrigues, rechaçou a ideia de ‘universidade para todos’ e sugeriu que o ambiente acadêmico fique restrito a uma ‘elite intelectual’.Na visão do ministro, não faz sentido um advogado estudar anos para terminar dirigindo para a Uber. “Nada contra o Uber, mas esse cidadão poderia ter evitado perder seis anos estudando legislação”, disse em entrevista ao Valor.

Essas declarações trazem à tona um velho debate: afinal, quando um jovem deve ‘parar’ de estudar? Direita e esquerda têm visões antagônicas sobre o tema. De um lado, a valorização da aplicação prática e rápida dos saberes. De outro, a busca por acesso universal à alta educação .

Mas, sob a égide de Bolsonaro, essa disputa ganhou contornos ideológicos inéditos.

Em 1997, um decreto do presidente Fernando Henrique Cardoso determinou que os Ensino Técnico e o Ensino Médio tivessem currículo independentes. Lula revogou o decreto em 2004, e determinou que esses cursos favorecessem a ‘continuidade da formação’ sob a supervisão do MEC.

“O governo FHC tinha um discurso gerencialista e neoliberal, de menos investimento do estado em educação. Mas nem de longe havia essa verve anti-intelectualista”, explica a socióloga Ana Paula Corti, professora do Instituto Federal de São Paulo (IFSP) e pesquisadora especializada em ensino médio.

Quando FHC deixou a presidência, em 2002, o número de matrículas em IES de 3,8 milhões. A oferta universitária cresceu pouco, e praticamente só no setor privado. Ao final da era petista, em 2016, o número de matriculados no ensino superior passou de 8 milhões.

“O ministro esquece que propõe essa mudança em um dos países onde o acesso à faculdade já é um dos mais restritos do mundo, e cuja ampliação fica inviável com a PEC”, ressalta Salomão Ximenes, professor do curso de Políticas Públicas da UFABC e especialista em educação.

Embora, pareça que os avanços sociais do lulismo tenham aplainado as desigualdade educacionais, o país tem um longo caminho para alcançar o amplo acesso à educação.  E deve continuar investindo no ensino superior caso queira se desenvolver.

Entenda o porquê:

Poucos jovens tem um diploma

Diferente do que sugerem Bolsonaro e o ministro Vélez, a universalização do acesso à educação superior está muito longe de um esgotamento. É o que mostram os dados da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), que reúne os países mais ricos do globo.

Embora hoje haja muito mais jovens nas universidades – entre 2006 e 2016 e número de matrículas cresceu 62,8%% – , o Brasil ainda está muito longe de se igualar aos países desenvolvidos.

Por aqui, apenas 16,6% dos brasileiros que tem entre 24 e 35 anos frequentaram a faculdade. Essa taxa é quase três vezes menor que a média dos países da OCDE. Perdemos até mesmo para alguns alguns vizinhos latino-americanos, como a Colômbia (28%), Argentina (18%) e o Chile (30%).

O acesso à universidade já é restrito a uma ‘elite’

Dos alunos que se formaram no Ensino Médio pela rede pública em 2017, só 36% chegaram à faculdade. Na rede privada, esse número mais que dobra: 79,2%. Além disso, esse crescimento foi puxado justamente pelos cursos tecnólogos, mais curtos e focados no mercado de trabalho.

Uma das metas do Plano Nacional da Educação é, até 2024, é elevar a taxa bruta de matrículas no ensino superior: 50% da população entre 18 e 24 anos deve em vias de ingressas em uma universidade. Dessas novas matrículas, 40% devem ocorrer em instituições públicas.

“Reduzir essa oferta é reforçar uma estrutura que já favorece as elites econômicas. Sobrarão às massas as profissões não-reguladas. Com base nessa visão elitista e autoritária, o MEC quer decidir quem seguirá estudando ou não”, diz Salomão Ximenes.

O grau de escolaridade reflete no salário

O acesso às profissões mais bem pagas e de carreira estruturada está intimamente ligado ao ensino superior. Das dez profissões com os maiores salário no Brasil, nove exigem formação universitária. A outra é a carreira militar, cujos cursos de formação equivalem ao grau superior.

Democratizar o acesso à universidade também é democratizar a disputa pelas vagas historicamente reservadas apenas aos mais ricos. “Além da histórico ‘apartheid social’ nas universidades, o sistema de trabalho brasileiro não se baseia em formação técnica de nível médio”, diz Salomão.

O salário médio do profissional com nível superior no Brasil é de 1.725 reais, conforme dados do IBGE. Além disso, somos ainda é um dos países onde o canudo mais interfere no contracheque: um trabalhador com ensino superior ganha até 2,5 vezes mais que outro que só tenha completado o ensino médio. Entre os países da OCDE, essa média é de 1,6.

Ainda há muito a melhorar na qualidade do ensino

Não há na histórica recente nenhum país desenvolvido cujo crescimento não tenha passado pela escolarização da população.

Um bom exemplo é a Coreia do Sul, onde 69,8% dos jovens entre 24 e 35 anos possuem um diploma de ensino superior. Pobre e devastado pela guerra, o país se tornou uma das potências do século XXI, em grande parte, graças a um investimento massivo em educação básica e superior.

É claro que, pra garantir a entrada e a permanência dos jovens de baixa renda no ensino superior, é essencial o investimento em educação básica. De cada 100 alunos que concluem o ensino médio, só sete aprenderam o que seria esperado em matemática. Em língua portuguesa, esse número é um pouco maior: 28.

Também é preciso revisar, por exemplo, a política do Fies, que fez prosperar um oligopólio de grupos educacionais sem compromisso com a excelência acadêmica. Enquanto a taxa de matrículas ensino presencial caiu a partir de 2016, o ensino à distância (EAD) registrou a maior expansão desde 2008 e hoje representa 21% de todas as matrículas do ensino superior.

Essas questões não parecem preocupar o novo governo, que além de lutar contra espantalhos como‘ideologia de gênero’ e ‘doutrinação marxista’, defende a volta de métodos arcaicos de alfabetização.

“Essa visão reflete um projeto de país cuja inserção externa é de baixo perfil”, opina Ximenes.

A educação técnica não precisa ‘substituir’ a universidade…

Diferente do que sugere o novo chefe do MEC, não é preciso deixar de investir em faculdades para investir na educação técnica. E o ensino profissionalizante nem deve representar um ponto final na vida escolar. Nos governos petistas, universalização do ensino superior acompanhou a expansão dos institutos federais e crescimento dos repasses ao Sistema S.

Em tempos de crise, volta a vigorar a ideia de que a universidade custa caro ‘demais’, e não oferece aos seus egressos um retorno que valha os anos perdidos em salas de aula.

Ana Paula atribuiu a popularidade dessas ideias a um desaparecimento da segurança social, solapada pelo neoliberalismo em vários países do mundo. “Quando você mostra o custo de um aluno de universidade pública para alguém que não tem férias, décimo-terceiro, acesso a saúde, a reação mais previsível é: eu não quero pagar por isso”.

Mas o custo universitário é alto em qualquer país, e por uma razão simples. As universidades federais e estaduais não financiam só a graduação, mas também são os grandes centros de pesquisa e tecnologia do Brasil.

Salomão destaca o alinhamento do novo governo com as ingerências da PEC do Teto que, em sua opinião, por si só inviabiliza o investimento nas universidades. “É uma visão coerente com as consequências da PEC, o governo prepara terreno para a continuidade dessa política”.

…E nem é solução mágica para o desemprego

Outro argumento popular é que, com o diploma técnico, o jovem encontraria emprego mais fácil. Não necessariamente. Uma pesquisa do Dieese mostra que a crise e o desemprego estrutural não poupam os formados em cursos técnicos.

Com base em dados do IBGE o instituto constatou que, entre 2014 e 2016, a taxa de desemprego entre aqueles que fizeram cursos profissionalizantes foi igual à média brasileira. E em alguns casos, até pior.

Nos anos 70, a profissionalização se transformou no principal objetivo Ensino Médio (que naquela época era chamado de 2º grau), graças a um decreto do presidente Ernesto Geisel. A reforma só seria revista em 1982.

“Não deu certo, porque a rede secundarista da época não tinha estrutura para formação profissional. Não dá para mudar o país por decreto”, aponta Ana Paula.

Carta Capital

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