Educação em tempos de pandemia: o comércio de ilusões e a negação do direito à educação

No fim, uma certeza: o mercado de “soluções educacionais” terá lucrado como nunca

Por Catarina de Almeida Santos*

A pandemia desencadeada pelo novo coronavírus – responsável, até o momento, por mais de 3 milhões de pessoas infectadas e 200 mil mortes no mundo, sendo mais de 70 mil casos confirmados e 5 mil mortes só no Brasil – tem sido utilizada pelos privatistas para lucrar com a tragédia, inclusive na área de educação.

Antes de completar a primeira semana da declaração de calamidade pública, em todos os estados, as propostas para dar continuidade aos calendários escolares e evitar que os estudantes das escolas públicas tivessem o prejuízo de um ano letivo perdido, começaram a brotar, idealizadas pelos mesmos atores de sempre: institutos, fundações e grupos empresariais que fazem lobby na área de educação.

A lista é grande, mas todos têm um objetivo em comum: vender ideias e tecnologias aos sistemas públicos de ensino e aos tomadores de decisão – como secretarias e o Conselho Nacional de Educação – e dizer aos profissionais da educação, especialmente aos professores, como eles devem ensinar e quais ferramentas devem usar para garantir aos milhões de estudantes das escolas públicas aulas durante a pandemia, nos diferentes rincões desse país.

A exceção é feita para os cerca de 6 milhões de estudantes do campo, quilombolas, indígenas, ribeirinhas e povos das águas. Para esses, a recomendação é que o calendário letivo seja retomado quando o isolamento social acabar. É o que define o parecer do Conselho Nacional de Educação, aprovado no dia 28 de abril.

Segundo o parecer, a diversidade e singularidades das populações indígena, quilombola, do campo e dos povos tradicionais, que possuem menores condições de acessibilidade, exigem que as escolas e os sistemas de ensino pensem oferta de acordo com essas peculiaridades. Para esses estudantes, o calendário letivo de 2020 poderá ser retomado após o fim do isolamento social, mediante oferta de partes das atividades escolares em horário de aulas normais e parte por meio de estudos dirigidos e atividades nas comunidades.

Mas como garantir que estudantes e professores, em não estando em sala de aula, coloquem em prática conteúdos tão bem elaborados e planejados – como aqueles indicados pelos “especialistas”, que jamais pisaram em uma escola pública e que certamente sairiam correndo, caso grande parte dos estudantes dessas redes de ensino se aproximasse?

A grande solução apontada por eles é o uso irrestrito da educação a distância (EaD), em todos os níveis, etapas e modalidades de ensino, mesmo que esses atores – incluindo grande parte dos gestores públicos e conselhos nacional, estaduais, distrital e municipais de educação – tenham evitado ou negado que estejam fazendo uso da modalidade.

Termos como “aulas e atividades remotas”, “aulas não presenciais”, “atividade domiciliares”, atividades pedagógicas não presenciais” aparecem com frequência nos discursos desses atores privados, nos pareceres e resoluções dos diferentes conselhos e nas diretrizes e orientações dos sistemas de ensino.

O parecer do CNE define as “atividades pedagógicas não presenciais” como práticas pedagógicas mediadas ou não por tecnologias digitais de informação e comunicação, a serem utilizadas para reorganização dos calendários escolares, durante o período de isolamento social para cumprimento das horas letivas anuais.

A pergunta que fica é: por que aqueles que propõem que o calendário letivo seja reorganizado e as atividades letivas tenham continuidade por meio de atividades pedagógicas não presenciais, negam que o que estão propondo seja EaD?

EaD, de acordo com o arcabouço legal brasileiro, inclusive a resolução nº 1 de 2016, do próprio CNE, se caracteriza como modalidade educacional, em que estudantes e profissionais da educação (professores, tutores e gestores), que desenvolvam atividades educativas em lugares e/ou tempos diversos, mediadas por tecnologias de informação e comunicação.

O decreto que atualmente regulamenta a educação a distância no Brasil é o n° 9.057 de 2017 e, em consonância com as diretrizes do CNE, define no art. 1º a EaD, como a “modalidade educacional na qual a mediação didático-pedagógica nos processos de ensino e aprendizagem ocorra com a utilização de meios e tecnologias de informação e comunicação, com pessoal qualificado, com políticas de acesso, com acompanhamento e avaliação compatíveis, entre outros, e desenvolva atividades educativas por estudantes e profissionais da educação que estejam em lugares e tempos diversos”.

Assim, um primeiro elemento para definir o que é EaD é o fato de estudantes e profissionais da educação estarem desenvolvendo atividades educativas em lugares e tempos diversos.

Se profissionais da educação e estudantes estão desenvolvendo atividade educativas, de forma não presencial, um segundo elemento é que esse processo está sendo mediado por algum meio, inclusive as tecnologias de informação e comunicação. Podendo ser materiais impressos, digitais, televisivo, online, offline, síncrono, assíncrono ou ambos.

Ainda segundo o decreto tanto a educação básica quanto a superior poderão ser ofertadas a distância desde que observadas as condições de acessibilidade que devem ser asseguradas nos espaços e meios utilizados. No âmbito da educação básica, no entanto, não entra a educação infantil e a oferta no ensino fundamental apresenta restrições.

O parágrafo 4º do art. 32 da LDB, define que o ensino fundamental será presencial, sendo o ensino a distância utilizado como complementação da aprendizagem ou em situações emergenciais.

O art. 9º define que o ensino fundamental na modalidade a distância, em situações emergenciais, previsto no citado artigo, se refere a pessoas que:

I – estejam impedidas, por motivo de saúde, de acompanhar o ensino presencial;

II – se encontrem no exterior, por qualquer motivo;

III – vivam em localidades que não possuam rede regular de atendimento escolar presencial;

IV – sejam transferidas compulsoriamente para regiões de difícil acesso, incluídas as missões localizadas em regiões de fronteira; ou

V – estejam em situação de privação de liberdade.

Pelo exposto, a resposta à questão feita indica dois problemas legais nesse processo: não há base legal para esse uso irrestrito da EaD, na educação básica – sobretudo na Educação Infantil e Ensino Fundamental – e existem normas, regras e condicionalidades para que a modalidade aconteça.

A justificativa amplamente utilizada para dar continuidade ao calendário letivo usando educação a distância é a emergência causada pela pandemia, o que estaria coberto pela base legal brasileira. Recorrendo a LDB e ao decreto 9.057, o inciso I do art. ao definir o escopo das pessoas que estariam em situações emergenciais, como aquelas “estejam impedidas, por motivo de saúde, de acompanhar o ensino presencial”. Isso aponta para o uso da modalidade como exceção e não regra, ou seja, para alguns estudantes e não para o sistema inteiro.

O país passa por um período de pandemia, com pessoas em situação de isolamento, muitos desempregados ou perdendo emprego, outros trabalhando em casa e tendo salários reduzidos, grande parte vivendo amontoados em espaços minúsculos, com condições inadequadas de higiene e alimentação, com altos índices de violência doméstica. Essa situação requer medidas que visem a proteção à vida, cuidados com a saúde física e mental de crianças, jovens, adolescentes, adultos e idosos.

Por outro lado, qualquer análise séria do sistema de educação, básica e superior, no Brasil, mostra que o país não apresenta as condições mínimas, como meios de acesso e pessoal qualificado para, em curto espaço de tempo, ofertar educação a distância para cerca de 56 milhões de estudantes.

Segundo dados do Censo da Educação Básica de 2019, o país possui no nível básico quase quarenta e oito milhões de estudantes (47.874.246), nas redes pública e privada, com 88,8% matriculados na área urbana e 11,2% na rural.

Os estudantes da educação básica, atendidos pela rede pública, representam 81% desse universo, sendo que na área rural, as escolas públicas são responsáveis por 83% das matrículas ofertadas.

Segundo dados da Pesquisa Anual por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD-Contínua), no Brasil, em 2018, apenas 47,4% das pessoas de 25 anos ou mais haviam completado, pelo menos, a educação básica obrigatória. O que significa que 52,6% não chegaram a concluir o ensino médio, o equivalente a 70,3 milhões de pessoas. Desse total, 34% tinha apenas o ensino fundamental incompleto, somando-se a 7,8% que não possuía nenhum nível de instrução.

O país possuía, no mesmo ano, 11,3 milhões de pessoas analfabetas, sendo 6,8% com idade entre 15 e 24 anos e 7,2% entre 25 e 39 anos. O percentual de crianças de zero a três anos que frequentava creche era de apenas 34% e 7,6% das crianças de 4 e 5 anos de idade estavam fora da escola.

O parecer do CNE indica, sobretudo na educação infantil e ensino fundamental, que as atividades sejam feitas com a orientação de pais, mães ou responsáveis, devendo a escola enviar guias de orientação às famílias orientando o acompanhamento dos estudantes. O país possui, segundo dados do Censo Escolar de 2019, mais de 5 milhões de estudantes entre 4 e 5 anos de idade, cerca de 13.700.00 estudantes entre 5 e 10 anos de idade e mais de 10 milhões na faixa entre 10 e 14 anos de idade.

Em contrapartida, os dados da Pnad de 2017 aponta que para aqueles que vivem com alunos do Ensino Fundamental 21% tem até o ensino fundamental incompleto, 21% o fundamental completo, 37% o ensino médio, 5% superior incompleto e 16% tinham formação em nível superior.

Esses dados são importantes para analisarmos o cenário em que propostas estão sendo feitas por sistemas de ensino, Conselho Nacional de Educação e pelos mercadores de ilusão, aqui traduzido por institutos, fundações e grupos empresariais, que têm oferecidos soluções mágicas e mirabolantes para os problemas da educação brasileira, alguns se aproveitado com esmero para lucrar com a verba pública, nesse momento de pandemia.

Não por acaso, Jorge Paulo Lemann, mandatário da Fundação Lemann, que lidera 30 organizações que estão desenvolvendo apps e outros recursos para 40 milhões de alunos da rede pública, afirmou em um debate virtual: “O que eu gosto mais é que toda crise é cheia de oportunidades” e que “as oportunidades que aproveitamos em momento de crise foram melhores”.

Ao fim e ao cabo, continuar o calendário letivo usando atividades não presenciais trará algumas certezas:

1- Os sistemas de ensino dirão que cumpriram o calendário letivo e farão de conta que ensinaram;

2- Os professores saberão, que apesar de todos os esforços, inclusive do adoecimento, não conseguiram ensinar;

3- Os estudantes terão certeza que não aprenderam;

4- Gestores escolares, pais, mães e responsáveis saberão que, a maioria dos estudantes ficaram para trás, não só os que foram reprovados, mas sobretudo os que evadiram;

5- A sociedade verá que o estado, mais uma vez, negou o direito à educação;

6- E o mercado de “soluções educacionais” terá lucrado como nunca, vendendo ilusões e culpando a escola e seus professores pelo fracasso de seus produtos tabajara.

*Catarina de Almeida Santos é professora adjunta da Faculdade de Educação da UnB, coordenadora do Comitê DF da Campanha Nacional pelo Direito à Educação e pós-doutoranda do Programa de Pós-Graduação da FE/Unicamp.

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