Educação na pandemia e no pós-pandemia

Por Ana Beatriz Prudente

É preciso, mais que nunca, discutir as políticas de organização da Educação Básica no Brasil e o quanto as atuais demandas e questões relacionadas à pandemia vêm afetando e redefinindo a forma de atuar no âmbito da escola. Hoje, professores e profissionais da educação devem pensar não só nas dinâmicas corriqueiras das relações entre escola, aluno, professor, sociedade, mas também como lidar com este novo cenário.

É um momento surreal para todos nós, que pareceria tirado de um filme, porém esta é a nossa realidade. A pandemia está permitindo que se reinicie o sistema de ensino. Podemos ver esse ponto pela quantidade de textos, lives e projetos de reconstrução educativa, que partem de um consenso de que o modelo anterior não existe mais. Isso é perigoso, pois de uma certa forma pode gerar também o apagamento de lutas históricas que vêm sendo promovidas pelos educadores que visam uma escola mais democrática, mais emancipatória e mais reflexiva sobre a própria sociedade. Inclusive, no ano que vem, O Fórum Econômico Mundial tem como tema central A Grande Redefinição na era pós-Covid-19, ou seja, um grande “reset”. Veja, nossa era já se pulverizou e estamos entrando em um outro tipo de organização da sociedade.

A Educação encabeça os direitos sociais no artigo 6º de nossa Constituição, direitos precedidos pelo título de Direitos Fundamentais, trata-se de direitos indisponíveis. A Constituição traz nesse artigo sexto uma declaração de direitos sociais, que são justamente aqueles direitos que, além de considerar a individualidade e/ou a coletividade a que todos nós estamos integrados, reconhecem-nos como seres concretos — e integrantes também de classes sociais — que necessitam do ensino, da instrumentalização, dos serviços de saúde, de trabalho, segurança, entre outros. Este mesmo artigo diz ainda que são direitos sociais a Educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade, à infância e aos desamparados. Observem que a Educação foi colocada em primeiro lugar, sem dúvida alguma sem informação, sem receber também instruções e orientações, sem usufruir os dados da cultura, o ser humano terá muitas dificuldades.

É a partir do conhecimento que a pessoa pode ser “alimentada” nos termos postos pela ciência, por exemplo. No caso do trabalho, quem teve mais informação e chegou às universidades, enfrentará melhor as disputas no mercado profissional. Já em relação à moradia — nota-se que no país há um grande déficit de moradias — quem não a tem são principalmente os brasileiros que não tiveram acesso à Educação. No quesito segurança, que está listada nos direitos individuais, ao lado da liberdade e da vida, e está também entre os direitos sociais, exige-se muito do Estado e das instituições políticas, mas a própria pessoa vai cuidar melhor de sua segurança se estiver bem informada e formada. Quem recebe melhores aposentadorias no caso da previdência social também é quem tem mais acesso à Educação. Em relação à gravidez precoce é sabido que ela atinge mais adolescentes que não tiveram acesso à uma boa Educação e as crianças são mais bem cuidadas em escolas particulares do que nas públicas, de novo, mostrando uma realidade em que quem tem mais Educação tem melhores condições e mais qualidade de vida.

Quando a Constituição Federal vai disciplinar as intervenções do Estado na sociedade e na economia, visa-se a proporcionar igualdade de acesso aos direitos sociais. No artigo 205, a Constituição cuida do direito à Educação, considerando-a como direito de todos e dever do Estado e da família. Será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando o pleno desenvolvimento da pessoa, a preparação para a cidadania e sua qualificação para o trabalho. Entre esses princípios, que funcionam como diretrizes para o ensino, vamos observar também o cuidado com a qualidade de ensino. No artigo 206, inciso V, está clara a valorização dos profissionais da área com planos de carreira e com ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos. Ainda no inciso VI, fala-se da gestão democrática do ensino público na forma da lei; já no inciso VII destaca-se a garantia de qualidade e padrão da Educação; e, segundo o parágrafo único do artigo 206, a lei disporá sobre as categorias de trabalhadores considerados profissionais na educação básica e sobre a fixação de prazo para a elaboração ou adequação de seus planos de carreiras no âmbito do Distrito Federal, dos Estados e municípios. Então, nos diversos níveis de ensino, o professor é o principal profissional — daí porque as universidades públicas, responsáveis pelo ensino, pesquisa e extensão, devem ofertar aos seus educadores os cursos necessários para a continuidade de sua formação, para melhorar os níveis de educação para crianças e jovens.

No campo da Educação tudo será ressignificado, há uma retórica de reinício. E nesse contexto também há um risco grande: de apagamento completo dos professores e profissionais da educação na tomada de decisões sobre um retorno presencial. Quando vemos na imprensa a discussão sobre retorno das aulas há depoimentos de políticos, famílias, médicos, entre outros; no entanto, os professores raramente são entrevistados sobre o que pensam sobre a volta às salas de aula. Pela forma como a sociedade debate essa questão no Brasil visivelmente há um desrespeito pelos professores, que pouco são ouvidos. Os profissionais de educação que compõem o universo escolar correm o risco de uma grande mudança na natureza de seu trabalho. É um ponto que devemos debater bastante e admitir que não vivemos mais um mundo como antes; todavia, a Educação continua sendo fundamental para o desenvolvimento da sociedade. Infelizmente, a forma como se faz a gestão da Educação hoje é mediada pelo interesse do mercado e de grandes empresas. Cria-se um ambiente onde você vê as pessoas como um aglomerado de indivíduos, que se relacionam a partir da competição. E, claro, isso afeta o sentido da educação na sociedade brasileira.

Ao falarmos das previsões ou pensarmos no que será daqui para a frente, cabe destacarmos a questão do ensino híbrido, que vem sendo colocada como uma regra. No entanto, precisamos olhar para seu contexto e devemos nos perguntar: que tipo de ensino e aprendizagem se quer ao usar esse termo? Na gestão pedagógica, por exemplo, há muito que se repensar e analisar os meios para se aferir uma boa aprendizagem, será que as avaliações devem ser provas em largas escalas nas quais se propõem comparar realidades totalmente distintas? Há que se refletir muito sobre isso. Estamos num mundo em transição que será ressignificado.

O Estado foi cooptado de forma que as políticas educacionais estão atendendo aos interesses do mercado. A corrosão é tão grande que a questão pedagógica atualmente atende às necessidades das instituições de ensino para terem cada vez mais lucros. O debate se torna ainda mais profundo, pois ela serve agora também para formatar um tipo de pensamento e consciência social de um modelo de capital que serve às grandes empresas. Hoje, um professor ministra aulas para três mil alunos e aplica modelos pré-formatados e padronizados, que são mais fáceis para as avaliações de resultados.

Qual tipo de cidadão seria esperado nesse caso? O texto de Carolina Catini, “O trabalho de educar numa sociedade sem futuro”, mostra de que forma o envolvimento social e empresarial acaba realizando um esvaziamento político das práticas educacionais e de formação. E segundo, Teresa Adrião, as PPPs (Parcerias Público-Privadas) em vez de serem positivas, acabam criando uma precarização do ensino, tirando a responsabilidade do Estado de valorização dos profissionais de educação. Fica então a pergunta: que educação teremos para o tipo de sociedade que vamos construir daqui para a frente?

Há conflito grande entre o que se espera e o que se quer fazer dentro das escolas hoje, uma guerra contra a natureza do educar. Como já citado acima, há um risco de tornar irrelevantes os profissionais da Educação. Por isso, precisamos refletir sobre que espécie de pessoa sai desse ambiente, com distanciamento físico e aprendizagem completamente individual.

Ana Beatriz Prudente é membro do Comitê de Combate à Covid-19 da Faculdade de Educação da USP, membro do Grupo de estudos de Teoria do Estado Brasileiro da Faculdade de Direito da USP (GETEB – FDUSP), desenvolvedora de projetos de Economia Criativa e educadora de Agrossustentabilidade.

Revista Consultor Jurídico

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