Elogio da recusa ao trabalho hiper-precarizado
Cresce a resistência às políticas que incitam desempregados a buscar qualquer ocupação – mesmo desqualificada e inútil. Por trás das pressões, há um projeto do capital e uma ideologia. É preciso compreendê-los, para buscar alternativas
Por Jean-Marie Pillon, em Contretemps | Tradução: Antonio Martins
Nas jornadas de formação e debate do movimento França Insubmissa (Amfis) realizadas no verão de 2024, a socióloga Maud Simonet e seu colega Jean-Marie Pillon ofereceram uma conferência sobre o sentido a ser atribuído à focalização das políticas públicas na valorização do trabalho “valeur travail”. Tratava-se de propor caminhos para compreender os discursos de inserção dos desempregados no trabalho e a promoção quase exclusiva do trabalho “produtivo”.
Jean-Marie Pillon, especialista na gestão do desemprego, convidava a refletir, a partir do tratamento do desemprego e dos desempregados, sobre as críticas possíveis à inserção desses últimos no trabalho. Publicamos aqui uma versão reformulada de sua intervenção.
Antes de mais nada, parece-me importante não jogar fora o bebê da emancipação junto com a água do banho da crítica ao trabalho no regime capitalista. Por mais sedutores que possam parecer, os discursos sobre a recusa ao trabalho e o elogio à preguiça frequentemente se enquadram em um certo dandismo, para não dizer um esteticismo burguês (que muitas vezes esquece que, a partir do momento em que há um lar, como ressalta Maud Simonet, sempre há alguém – e na maioria das vezes uma mulher – que trabalha). Além disso, o objetivo de uma crítica progressista à “valorização do trabalho” não é tanto se opor ao trabalho “produtivo”, mas sim alcançar um debate coletivo sobre quem tem o direito de julgar se um trabalho é produtivo. Quem tem o direito de dizer o que é útil, quando fazemos algo?
Para entender o lugar que a valorização do trabalho ocupa na sociedade atual, parece-me importante relembrar duas rupturas históricas: o século XVI e os anos 1980.
Em primeiro lugar, é importante lembrar que o discurso conservador, segundo o qual um homem verdadeiro é um homem que trabalha, nem sempre foi majoritário. No final do século XVI, o ascetismo produtivo, característico de algumas congregações monásticas, escapou dos muros dos conventos e invadiu as classes dominantes do Ocidente. As causas dessa revolução são alvo de controvérsias entre historiadores, mas as consequências são amplamente aceitas1.
A partir dessa época, consolida-se progressivamente a moral capitalista atual, segundo a qual é preciso ser produtivo neste mundo. Surge a ideia de que “tempo é dinheiro”, ou seja, não produzir é uma perda de tempo e uma falha moral. Essa revolução intelectual opera tanto no nível individual quanto no coletivo. Uma grande nação passa a ser aquela que é próspera e cujos cidadãos são capazes de produzir coisas2.
A revolução industrial só ocorre em um segundo momento, mas ela vem confirmar a pertinência dessa ruptura. Entre as classes dominantes, há a sensação de que essa moral permite a criação de riquezas como nunca antes3. Disso resulta uma grande pressão sobre tudo e todos para gerar algum valor4.
É complicado negar essa moral e esperar, a curto prazo, sua subversão. Certamente, ela constitui uma pedra angular do pensamento conservador, mas está praticamente generalizada nas classes médias e superiores. Nesses meios, dos quais faço parte, temos dificuldade em fazer algo… por nada. Mesmo quando estamos de férias. Descansamos para sermos mais produtivos na volta. Tiramos fotos para impressionar. As noites de slides foram certamente suplantadas pelo Instagram, mas a abordagem é rigorosamente comparável. A leitura de livros ou a visita a museus constituem, ao mesmo tempo, passatempos sinceros e instrumentos de distinção tanto dentro do próprio grupo quanto em relação a outros grupos sociais.
Esse princípio nunca é tão poderoso quanto na educação burguesa: evitar os prazeres em si, não fazer nada por nada, mas, ao contrário, tornar os prazeres produtivos5. O uso de telas pelas crianças, tão criticado nos discursos institucionais, é, na verdade, canalizado para direcionar os jovens a conteúdos valorizáveis na esfera escolar e, a longo prazo, no mercado de trabalho.
Embora macroscópico e talvez abstrato demais, esse parêntese nos parece crucial, pois pensar em uma alternativa progressista que negue essa componente da moral ocidental dominante pode implicar o risco de se contentar com uma utopia sem meios de propagação. É preciso confrontar esse imperativo: somos incapazes de fazer coisas por nada e, por extensão, é difícil conceber que os outros não façam nada. A existência precisa ser útil.Daí uma proposta à qual retornarei mais adiante: é importante nos reapropriarmos do debate sobre o que é útil e o que não é.
Com o surgimento do capitalismo moderno ao longo do século XVII, é sobretudo em dinheiro vivo que o útil é pensado. Mas a avalanche de riquezas — até então despercebida — gerada pela revolução industrial traz como corolário o surgimento de um pauperismo endêmico – ou seja, o fato de que pessoas trabalham como forçados e ainda assim vivem em dificuldades –, algo que não se esperava ou que não se queria ver.
A história que se segue, o século XIX e o XX, poderia então ser resumida como um braço de ferro entre, de um lado, as pessoas “honestas” – a burguesia – que acusam as classes trabalhadoras de serem pobres porque não trabalham o suficiente e gastam mal seu dinheiro6; esses discursos têm o objetivo de justificar os baixos salários dos operários.
Do outro lado, encontramos trabalhadores e trabalhadoras que se mobilizam para poder viver dignamente de seu trabalho, com uma dignidade tanto material quanto simbólica: a jornada de oito horas, a criação de aposentadorias para idosos e inválidos, a relação de trabalho progressivamente regulamentada e envolta em quadros que acabarão sendo chamados de “emprego”, ou seja, um trabalho dentro de um estatuto que oferece proteção.
Ao longo dessa história, também se passa a chamar de “trabalho” todas as atividades das pessoas que dependem de seus próprios braços para sobreviver, em oposição ao capital — ou seja, às pessoas que podem se sustentar graças à sua renda, graças à propriedade7. No final dessa história, a “valorização do trabalho” adquire dois significados que não são necessariamente opostos, mas que é preciso distinguir bem para não contribuir com discursos moralizantes sobre as pessoas privadas de emprego: a “valorização do trabalho” é ao mesmo tempo uma moral segundo a qual é desejável fazer algo com seu tempo, ser produtivo, gerar valor. Mas também é a dignidade daqueles que só têm seus braços para viver, uma dignidade sempre frágil, nunca garantida, pois, como dizia Ambroise Croizat, o patronato nunca se desarma.
“Melhor um trabalho indigno do que uma assistência digna“
Entender o que se diz hoje ao desempregado pressupõe levar em conta a confusão entre esses dois aspectos da “valorização do trabalho” e a inversão moralizadora daí resultante: já que as classes populares são laboriosas, aqueles que não trabalham não seriam traidores da causa? As políticas públicas têm, desde os anos 1980, a vocação de reintegrar ao trabalho aqueles que são improdutivos. Essa abordagem não é completamente nova. Ao longo da história do capitalismo, encontramos regularmente iniciativas destinadas a forçar os humildes a trabalhar, para seu próprio bem. Desde oficinas de caridade até asilos e conventos-fábricas, as tentativas são comuns. No entanto, tratava-se de iniciativas privadas que pretendiam ser filantrópicas8.
Desde o final dos anos 1970 e a revolução conservadora, houve um retorno progressivo à origem do discurso sobre os pobres e as classes populares: não seria o gosto pela ociosidade que os tornaria pobres? Após uma fase planificada e keynesiana, durante a qual a pobreza era vista como consequência da ocupação de empregos na base da escala salarial, retorna-se progressivamente a um discurso sobre a preguiça dos assistidos. A novidade, nas últimas décadas, consiste em ver o próprio Estado organizar essa inserção dos mais humildes no trabalho.
Essa doutrina vai se formalizar na Inglaterra, na Nova Zelândia e nos Estados Unidos nos anos 1980. No entanto, não se trata de uma moral especificamente anglo-saxônica. Recorrente entre os liberais, essa doutrina se solidifica mais fortemente onde eles retomam o controle sobre o Estado. Nesses países, e depois, em todo o Ocidente, ressurge a ideia de que as políticas de solidariedade impedem a participação dos mais pobres no mercado de trabalho. Elas os impedem de serem produtivos.
Não é uma ideia nova, aliás, é muito próxima do que se ouvia um século antes sobre a ajuda aos mais pobres oferecida por obras de caridade. Mas, nesse ínterim, um amplo Estado social, um Estado “providência”, se desenvolveu.A reconfiguração ideológica leva não só à negação dos mecanismos de solidariedade coletiva para aqueles que não trabalham o suficiente, mas, além disso, esses mesmos mecanismos passam a ser utilizados para colocar no trabalho os mais vulneráveis.
Essa doutrina assume diferentes formas, mas pode ser resumida da seguinte maneira: em termos de solidariedade, o emprego prevalece9 (Employment first). A solidariedade ou as ajudas oferecidas aos desempregados devem servir para ajudá-los a encontrar um emprego e não para subsistirem dignamente.
Encontram-se diferentes indícios do surgimento dessa doutrina, tanto na França quanto em outros lugares. Por exemplo, desde os anos 1980, a ideia de que o seguro-desemprego é uma garantia é negada pelos representantes do patronato que participam das negociações das convenções de seguro-desemprego10. Eles consideram as prestações do seguro-desemprego como caridade. Considerações semelhantes são encontradas no caso do Rendimento Mínimo de Inserção11, criado em 1988. Enquanto alguns de seus idealizadores o viam como uma renda de subsistência, outros atores políticos consideravam desde sua criação que deveria envolver contrapartidas e certos compromissos12.
O emprego prevalece, e a solidariedade torna-se um meio de inserção no emprego. Contudo, ao mesmo tempo, os empregos – e principalmente os empregos dignos – tornam-se cada vez menos numerosos nos anos 1980, 1990 e 2000. Pois, no mesmo movimento de tomada de poder dos liberais sobre o Estado, testemunha-se uma grande ofensiva contra as conquistas dos trabalhadores. As principais proteções relacionadas ao emprego serão colocadas em questão, especialmente para os menos qualificados. Observa-se então uma mudança, bem documentada por Fabrice Colomb: passa-se progressivamente do slogan “o emprego prevalece” para “a atividade prevalece”.13
O que agora parece desejável, moralmente positivo, não é tanto trabalhar em troca de um salário. O simples fato de trabalhar é suficiente para a dignidade. Levantar-se pela manhã, fazer algo com as próprias mãos, com subordinação de alguém para quem essa atividade é útil, constitui em si algo valorizável. Quase independentemente da remuneração. Esse é, por exemplo, um componente crucial no programa chamado “serviço cívico”.14
O fato de eles e elas trabalharem é percebido como algo positivo. O fato de serem pagos abaixo do salário mínimo por hora não é questionado. Um exemplo disso é a transição do programa Pôle Emploi para France Travail: os usuários não são mais incentivados a encontrar um emprego, mas a encontrar um trabalho.
É preciso reconhecer que, formalmente, essa imposição é implementada de maneira que pode parecer pouco autoritária. Não há policiais que forcem os mais humildes a irem para o trabalho. Esses discursos são, em grande parte, apenas palavras. No entanto, essa visão satura os mecanismos de solidariedade. Tornou-se quase impossível acessar qualquer tipo de ajuda sem se comprometer a realizar várias ações destinadas a encontrar trabalho. Na maioria das vezes, as pessoas inscritas nesses programas são obrigadas a assinar um contrato, que pode ser usado contra elas se seu comportamento não for considerado positivo.
Diversos exemplos permitem sustentar essa argumentação:
– O RSA15 é uma renda de subsistência, mas, em troca, implica a realização de operações específicas, em uma certa ordem, com o objetivo final de retorno a um trabalho remunerado.
– O seguro-desemprego não é um direito adquirido pelas contribuições. Ele constitui uma ferramenta para incentivar os trabalhadores a retornarem ao trabalho. No contexto das reformas do seguro-desemprego implementadas desde 2018, as prestações não são mais estabelecidas com base nas contribuições passadas. Elas são configuradas para incentivar o retorno ao trabalho, independentemente da qualidade desse trabalho16.
– Os programas destinados aos mais jovens ou às pessoas com deficiência também são concebidos dentro do mesmo quadro doutrinário: é verdade que o acesso ao mercado de trabalho é visto como mais restrito, mas o objetivo é justamente “remover os obstáculos” ao retorno ao emprego17.
– Os dias de carência no seguro de saúde contribuem para incentivar os trabalhadores a continuarem a trabalhar, mesmo quando estão doentes.
– A pensão de aposentadoria torna-se cada vez mais difícil de obter antes que a pessoa tenha dificuldades físicas para trabalhar.
Uma das versões mais recentes dessa doutrina encontra-se na lei do pleno emprego, votada no outono de 2023, que determina que os solicitantes de emprego – especialmente os beneficiários do RSA – podem ser obrigados a cumprir 15 horas de atividade semanal. Nesse contexto, beneficiar-se da solidariedade nacional não pode ser gratuito. Não pode ser em vão. Em troca, espera-se que os beneficiários sirvam para algo, que sejam úteis a um empregador.Se o mercado de trabalho tradicional não é capaz de oferecer emprego, ainda assim é desejável participar – mesmo gratuitamente – da produção de um serviço associativo ou público.
Retomar o poder sobre a definição do que é útil
Podemos então oferecer elementos de resposta à questão que nos colocamos no contexto desta reflexão: por que uma focalização tão intensa dos programas de solidariedade no trabalho produtivo? Pode-se argumentar que as pessoas na origem desses programas consideram que é ilegítimo não fazer nada por outrem. É ilegítimo escolher por si mesmo o que se pode fazer com seu tempo. Dessa forma, espera-se que o mercado de trabalho determine quais atividades é moral realizar.
Nesse discurso, a atividade vale por si mesma. Mas, na prática, ela só tem valor desde que seja útil à economia. Nesse contexto, obter um emprego seria quase um privilégio concedido pelos empregadores criadores de emprego a candidatos que buscam sair da exclusão. O fato de que trabalhadores produzem valor com seu trabalho e de que o empregador obtém lucro disso desaparece da reflexão.
O caráter ideológico, moral ou doutrinário dessa concepção de “valorização do trabalho ” — a valorização da dignidade associada à atividade de trabalho — surgiu de forma crua no período pós-Covid. Entre 2021 e 2023, observou-se uma queda significativa no desemprego. Nos setores onde as condições de trabalho são mais difíceis, os empregadores queixaram-se das dificuldades em encontrar pessoal mantendo as mesmas condições de trabalho. O funcionamento dos mecanismos de mercado e a atração por empregos melhor remunerados e mais protegidos, tornaram-se, de fato, um problema para esses empregadores. Eles então se mobilizaram para limitar as possibilidades de escolha dos trabalhadores.
Foi assim que o programa Pôle Emploi, seguido pelo France Travail, implementou ferramentas de coerção – por meio do seguro-desemprego e do controle da busca por emprego – para candidatos capazes de exercer ocupações chamadas de “em tensão”.18 Agora, pessoas que trabalham na construção civil, na assistência ou na logística não são mais consideradas legítimas para receber seguro-desemprego, independentemente de sua condição física ou psicológica, sua situação familiar ou seus desejos de conciliar vida profissional e pessoal. O valor atribuído à dignidade do trabalho, que se vê favorecida em períodos de tensão, pois os mecanismos de mercado deveriam facilitar a migração para melhores empregos, se dissipa na vontade de preencher empregos de pior qualidade. A “valorização do trabalho” aparece, nesse contexto, em seu caráter ideológico e disciplinar.
Observa-se, então, uma confusão entre duas abordagens da “valorização do trabalho”. De um lado, aquela que remete ao desejo de ser remunerado dignamente por sua utilidade; de outro, aquela que designa a superioridade moral de ser ativo. Essa confusão é instrumentalizada para dar forma a um chamado hipócrita à ordem disciplinar, visando incitar os menos qualificados a trabalhar, apesar das condições de trabalho e de remuneração deploráveis.
O que fazer?
Para propor elementos de conclusão mais construtivos, é importante destacar que o campo progressista nem sempre se sente confortável para criticar essas políticas até a raiz. O fato de que o trabalho deve ser útil, de que ser útil é algo bom, são argumentos difíceis de contestar. Quando Fabien Roussel [candidato do Partido Comunista às últimas eleições presidenciais da França] estigmatiza “a esquerda das assistências”, ele é ridicularizado – com razão – sem que, no entanto, a reação seja realmente coerente ou compreensível. Devemos responder-lhe que as assistências constituem um valor positivo em si? Ou retrucar que a esquerda se encarna também, e principalmente, no campo daqueles que trabalham? Consideramos que os cidadãos têm o direito de viver dignamente sem contribuir, ou é necessário que tenham contribuído para poderem beneficiar da solidariedade? Encontram-se em François Ruffin [jornalista, documentarista e deputado francês, eleito pela França Insubmissa mas hoje rompido com ela] tons comparáveis, mantendo uma ambiguidade calculada sobre o fato de que os bairros trabalham e as torres se beneficiam.
É importante ressaltar, antes de tudo, que o discurso sobre o assistencialismo não tem confirmação estatística. Para o bem e para o mal, as classes populares trabalham, e trabalham muito. O desemprego é um problema quando não há atividade econômica, como foi o caso entre 2008 e 2016. Mas, assim que há uma retomada da atividade, todos os que podem trabalham.Não há uma recusa massiva do trabalho. Pelo contrário, há uma vontade de trabalhar ainda mais.
Como explicar isso, apesar das condições de trabalho difíceis e da precarização das situações de emprego? O discurso sobre a “valorização do trabalho” é tão poderoso, tão hegemônico do ponto de vista cultural, que vai muito além das classes médias e privilegiadas. Não é apenas um discurso público. Não procede dos programas sensacionalistas na mídia sobre a “rua das assistências”. Trata-se de uma moral enraizada em nós há vários séculos. O trabalho de campo junto às pessoas que acumulam pequenos empregos corroboram essa ideia: as pessoas querem trabalhar.19
Esse resultado também aparece nas grandes pesquisas estatísticas. Percebe-se, então, que as políticas conservadoras lutam para forçar os usuários da assistência a adotar um comportamento que eles já assumem… Não é necessário desmantelar o seguro-desemprego para que os trabalhadores prefiram trabalhar a não fazer nada. Por boas e más razões, o trabalho é uma componente crucial de nossa identidade e da forma como nos posicionamos na competição social. Essa não é a única arena de competição. Há competição na decoração da sala, no carro que dirigimos (ou não), na escola para onde podemos enviar nossos filhos, na qualidade dos livros que lemos neste verão20, nos vegetais orgânicos que compramos21.
Mas tudo isso está profundamente enraizado nas cartas que cada um pode jogar graças à sua profissão. Devido, claro, à remuneração que ela permite, mas não apenas. Há também mais ou menos prestígio em jogo, dependendo dos empregos22. Os trabalhadores raramente aderem aos discursos sobre o fim do trabalho. Certamente, são muito críticos em relação às suas condições de trabalho e de remuneração. Não são ingênuos quanto às estratégias de seus empregadores. Mas o acesso a um trabalho estrutura sua possibilidade de viver dignamente entre os seus. A boêmia, a divagação, são vistos como um luxo pequeno-burguês. Muito concretamente, todos desejam evitar serem chamados de “inúteis”.23 Trata-se de um poderoso elemento de rejeição.
A questão do valor da atividade de trabalho, tal como é instrumentalizada pelos conservadores, é, portanto, um discurso que não está completamente desconectado do mundo social.Parece difícil contestá-lo por meio de decretos. Deve-se então desistir frente a esses mecanismos de distinção interna ao grupo de trabalhadores?
Primeiramente, é necessário voltar-se para as pessoas que não podem trabalhar, temporária ou permanentemente. Nesse ponto, é preciso defender e justificar a utilidade e a moralidade da solidariedade. De maneira um pouco ingênua, é possível, por exemplo, reconhecer a utilidade… de não participar diretamente do processo produtivo capitalista. Desse ponto de vista, os clichês sobre desertores que questionam o sentido de seu trabalho, as fábulas sobre engenheiros que dão as costas às indústrias de combustíveis fósseis – embora não apareçam nas estatísticas – contribuem, intelectualmente e ideologicamente, para legitimar a ideia de que o capitalismo provavelmente não é o melhor juiz da utilidade de nosso trabalho.
E, para contribuir com as estratégias futuras, parece interessante brincar com as palavras, travar uma guerrilha intelectual para fazer entender que ajudar as pessoas a viverem dignamente é, de fato, útil para a coletividade.Um argumento estratégico que me parece bastante eficaz consiste, por exemplo, em destacar que as reformas do seguro-desemprego vão empobrecer os menos qualificados, muitos dos quais têm filhos. E questionar: queremos realmente forçar crianças a crescerem na extrema pobreza?
Por outro lado, é preciso pensar em maneiras de tentar desmonetizar o conceito de útil. Embora muitas pesquisas microeconométricas provem que colocar as crianças na escola é bom para o PIB, isso não é o que justifica o direito à educação. O campo do progresso defende há muito tempo a educação das crianças até a maioridade, por si mesma. Porque julgamos útil não deixar a educação apenas a cargo das famílias. Esse raciocínio deve ser estendido a outras funções, a outras atividades. Se o trabalho designa o que é útil, é preciso defender a possibilidade de decidir coletivamente o que é útil, sem se limitar à taxa de lucro.
É necessário refletir como debater coletivamente as atividades que queremos valorizar. Claro, há o voto, mas expressar-se a cada 4 anos – no regime político atual e sua influência na mecânica interna dos partidos – parece bastante limitado. Aplaudimos muito os profissionais de saúde, sem distinção de cargo ou status, durante a pandemia. Mas qual é o próximo passo? Como fazer para valorizar efetivamente seu trabalho? Devemos deixar para a negociação salarial interna dos hospitais ou para o nível setorial a responsabilidade de determinar o valor de seu trabalho em um contexto de austeridade?
Embora não sejam uma resposta completa a essas questões, o seguro-desemprego e sua gestão coletiva poderiam ser uma ferramenta coletiva para proteger as pessoas das pressões do mercado de trabalho e favorecer a orientação de cada um para atividades que julgue úteis. Em vez disso, ele se transformou em um estímulo ao empobrecimento e ao constrangimento. É preciso reagir
1Marx, Weber, Elias, Thompson e Foucault descrevem, cada um a seu modo, uma racionalização do mundo em sua totalidade e do cotidiano em particular. Karl Marx, O Capital; Max Weber, Economia e sociedade, Julien Freund, Pierre Kamnitzer e Pierre Bertrand (trad.), Paris, Pocket, impr. 1995, 1995; Catherine Colliot-Thélène, Études wébériennes : racionalités, histoires, droits; Michel Foucault, Vigiar e punir: nascimento da prisão; Edward Thompson, Tempo, trabalho e capitalismo industrial.
2François Vatin, Jean-Pascal Simonin e Grupo de Estudo de Análise e Políticas Econômicas, L’œuvre multiple de Jules Dupuit (1804-1866): calcul d’ingénieur, analyse économique et pensée sociale, Angers, Presses universitaires d’Angers, 2002.
3Alexis de Tocqueville, Obras Completas: Viagens à Inglaterra, Irlanda, Suíça e Argélia, 1835.
4Edward Thompson, Tempo, trabalho e capitalismo industrial, op. cit.
5Muriel Darmon, La socialisation, Armand Colin, 2016.
6É a razão pela qual não é preciso socorrer os pobres em condições de trabalho. Uma ajuda significativa os empurraria ao ócio e à bebida… Benjamin Jung, « Organiser la charité, rendre le secours efficace », Histoire urbaine, 4 octobre 2018, n° 52, no 2, pp. 69‑89.
7Karl Marx, O Capital, op.cit.
8Deixo em aberto a questão do escravismo, por falta de conhecimento sobre o tema, mas é uma questão de fato central à história. A escravização e oi fato de ter se mantido até uma data muito avançada, na história do capitalismo, demonstra o caráter hipócrita – ou pelo menos marcado socialmente – da moral associada à “valorização do trabalho” Caroline Oudin-Bastide e Philippe Steiner, Calcul et morale : coûts de l’esclavage et valeur de l’émancipation (XVIIIe-XIXe siècle), Paris, France, Albin Michel, 2015.
9Em apoio a esta ideologia, desenvolve-se na mesma época a ideia de que a inserção no trabalho permite lutar contra a exclusão. É desejável reenviar os pobres ao trabalho, para evitar que eles se vejam excluídos. Este discurso permite ocultar as condições de trabalho e de remuneração. O risco a evitar coletivamente passa a ser apenas o da privação de trabalho.
10Christine Daniel et Carole Tuchszirer, L’État face aux chômeurs : l’indemnisation du chômage de 1884 à nos jours, Paris, Flammarion, 1999.
11Espécie de Renda da Cidadania, criada em 1998 e que vigorou até 2009, quando foi substituída pela Renda de Solidariedade Ativa (RSA), que impõe aos beneficiários a obrigação de comprovar que estão em busca ativa de um emprego. [Nota da Tradução]
12Tese de Julie Oudot, a ser publicada. Julie Oudot, En attendant l’emploi : gestion de masse et encadrement individuel des allocataires du RSA, Paris, Institut d’études politiques, 2019.
13Fabrice Colomb, « Le succès des incitations », Gouvernement et action publique, 2012, vol. 3, no 3, pp. 31‑52.
14Florence Ihaddadene, « Le service civique au service de l’« employabilité » des jeunes ? », Salariat, 7 novembre 2022, vol. 1, no 1, pp. 195‑207.
15Renda de Solidariedade Ativa (RSA), que impõe aos beneficiários a obrigação de comprovar que estão em busca ativa de um emprego. [Nota da Tradução]
16Jean-Marie Pillon, Luc Sigalo Santos e Claire Vivès, « Le contrôle des inscrits : un enjeu au cœur de France travail », Droit Social, 2024, no 1, pp. 69‑74.
17ibid
18Claire Vivès e Mathieu Grégoire, « Les salariés en contrats courts : chômeurs optimisateurs ou travailleurs avant tout ? », Connaissance de l’emploi, 2021, no 168.
19Cyrine Gardes, Claire Vivès, Lucas Tranchant, Nicolas Roux e Jean-Marie Pillon, Relatório intermediário do comitê de avaliação da reforma do seguro-desemprego iniciada em 2019 [Relatório], 2024.
20Pierre Bourdieu, A distinção: Crítica social do julgamento, Ed. Zouk, 2011
21Thibaut de Saint Pol, « Les évolutions de l’alimentation et de sa sociologie au regard des inégalités sociales », L’Année sociologique, 2 mai 2017, vol. 67, no 1, pp. 11‑22.
22Everett C. Hughes, Le regard sociologique : Essais choisis, Paris, Editions de l’EHESS, 1997 ; Gaëtan Flocco, Des dominants très dominés : pourquoi les cadres acceptent leur servitude, Paris, France, Raisons d’agir éditions, 2015.
23 Clara Deville, L’État social à distance : dématérialisation et accès aux droits des classes populaires rurales, Vulaines-sur-Seine, France, Editions du Croquant, 2023.