Engels, revolucionário e teórico socialista, faz 200 anos
No bicentenário do pensador alemão, professores da USP analisam sua importância teórica para o marxismo
Por Luiz Prado
Revolucionário em busca de uma sociedade sem divisão de classes. Teórico do socialismo científico. Crítico enérgico da religião e da família. Coautor, ao lado do amigo Karl Marx, de um dos textos políticos mais influentes da humanidade, o Manifesto Comunista. Este foi Friedrich Engels, nascido há exatos 200 anos, em 28 de novembro de 1820, em Barmen, no então Reino da Prússia, hoje Alemanha.
Engels foi o primogênito de nove filhos de um industrial ligado ao setor têxtil e cresceu em uma família protestante animada por visões liberais. Abandonou os estudos aos 17 anos, sem nem mesmo terminar o que chamamos de ensino médio, para trabalhar nos negócios do pai. A experiência prática, sobretudo a atuação na fábrica da família em Manchester, na Inglaterra, foi fundamental para sua trajetória política e intelectual.
No cotidiano dos negócios da família Engels conheceu as condições precárias de vida dos trabalhadores industriais. Essa vivência, somada a seu relacionamento com a operária irlandesa e militante política Mary Burnes, deu a Engels acesso aos operários e permitiu que ele reunisse material para escrever A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra (1845).
“O mais relevante em Engels é a intuição, por conta de sua formação prática”, comenta o professor Osvaldo Coggiola, do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, especialista em história contemporânea e autor de Engels, o Segundo Violino (Editora Xamã, 1995). “Ele trabalhou desde a juventude na empresa do pai. Graças a essa experiência, tinha um privilégio nato da intuição. O capitalismo, ele o conhecia por dentro. Marx o conhecia por fora.”
Para Coggiola, esse conhecimento prático foi o que permitiu a Engels redigir os primeiros escritos econômicos da dupla Marx-Engels, em 1843. “A primeira intuição a respeito do papel histórico do proletariado não foi de Marx, foi de Engels”, afirma o professor.
“Ele era um teórico 100%”
A parceria política e intelectual entre Engels e Marx começa no início da década de 1840. Duraria por toda a vida de ambos – Marx morre em 1883, Engels em 1895 – e resultaria na criação do método do materialismo histórico e dialético.
Após uma correspondência inicial por cartas, Engels encontra pessoalmente Marx em 1844, quando este se acha exilado em Paris. Já no mesmo ano, escrevem juntos A Sagrada Família, crítica sardônica ao grupo de intelectuais alemães conhecido como jovens hegelianos, com os quais Marx esteve associado em seus primeiros anos de estudos.
A formação acadêmica de Marx, sua articulação filosófica e a densidade de seus escritos subsidiaram, em parte, o julgamento de Engels como uma figura menor da dupla. Ele seria uma espécie de simples vulgarizador das ideias de Marx – é interessante notar que o próprio Engels se considerava “o segundo violino” do amigo, daí o título do livro de Coggiola. O professor considera importante ultrapassar essa visão e reenquadrar a contribuição de Engels para o marxismo.
“Ele era um teórico 100%, tanto quanto Marx”, aponta Coggiola. “Cada um tinha suas características. Marx tinha formação acadêmica, em filosofia, enquanto Engels não. Mas ele tinha um raciocínio mais prático e mais abrangente.”
De acordo com Coggiola, enquanto Marx se ocupou basicamente de economia e política, Engels enveredou para questões históricas em grande escala, além de examinar as ciências da natureza, como faz em Dialética da Natureza (leia o texto abaixo). Interesse que passou pelo conhecimento direto da vinculação entre ciência e produção, fruto da experiência de Engels na fábrica.
O também professor do Departamento de História da FFLCH Lincoln Secco corrobora a visão de Coggiola. “Engels disse certa vez que ele era apenas o ‘segundo violino’ e que a teoria que desenvolveu com Marx cabia principalmente ao próprio Marx”, destaca Secco. “Mas é preciso lembrar que, antes que Marx se desvencilhasse das disputas filosóficas de sua juventude, Engels já refletia sobre a realidade econômica e política da Grã-Bretanha.”
O professor cita artigos de Engels sobre as crises econômicas e o movimento cartista – movimento de trabalhadores ingleses do século 19 que lutavam por participação política -, além de A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra, que considera até hoje importante. “Em 1843, quando tinha apenas 23 anos, ele escreveu a primeira crítica da economia política, que Marx mais tarde chamou de esboço genial”, acrescenta.
Há ainda outra distinção em relação a Marx que ajuda a tirar Engels das sombras e revela novos aspectos de sua contribuição à parceria. Segundo Coggiola, Engels era mais desenvolto e possuía mais relações do que Marx em mundos como o dos negócios e dos trabalhadores, características que se mostrariam em sua obra.
“Marx era um indivíduo de caráter mais solitário, interagia menos com as pessoas. E isso fazia com que Engels tivesse uma sensibilidade maior para questões históricas, por exemplo”, explica o professor. “Perry Anderson, que é um estudioso bastante sério, diz que em matéria de análise histórica Engels é superior a Marx”, acrescenta.
“Alguns juízos históricos de Engels eram superiores aos de Marx e ele foi também um estudioso muito mais profundo do fenômeno das guerras”, concorda Secco. “Ele também procurou dar contribuições próprias àquilo que na época se entendia como história natural, por exemplo, no artigo O Papel do Trabalho na Transformação do Macaco em Homem.”
Exemplo dessa pluralidade dos interesses de Engels é a obra A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado (1884), na qual trata da opressão de gênero, do papel do casamento e do poder masculino na sociedade moderna. “Engels partiu principalmente do antropólogo Henry Morgan e estabeleceu um vínculo entre o patriarcado, a monogamia e a sociedade de classes”, comenta o historiador. “Embora com os estereótipos de seu tempo, ele percebeu que a família individual moderna é fundamentada na escravidão dissimulada da mulher.”
O Manifesto Comunista
O Manifesto Comunista, uma das obras mais conhecidas de Marx e Engels – Foto: Reprodução
Em 1848, mesmo ano em que eclode a Revolução de 1848, Engels é incumbido, com Marx, de redigir o programa da Liga dos Comunistas, a primeira organização comunista internacional do proletariado. O resultado é o Manifesto do Partido Comunista, que viria a ser conhecido simplesmente como Manifesto Comunista.
Nas páginas concisas do manifesto, a dupla apresenta as ideias demolidoras de que a história da humanidade é a história da luta de classes e de que, no capitalismo, a burguesia detém os meios de produção enquanto explora um grupo despropriado, o proletariado, com sua dominação assegurada pelo Estado.
Diante desse quadro, a superação dessa dominação passa pela tomada do Estado, com o proletariado como protagonista de um processo que atravessaria o socialismo e culminaria na sociedade sem classes, o comunismo. Conciliando atividade intelectual e militância, Engels se colocaria à disposição dessas palavras já na Revolução de 1848-1849, inclusive tomando parte em levantes armados na Alemanha.
Engels e Das Kapital
Graças aos negócios da família, Engels pôde ajudar economicamente Marx em diversas ocasiões e seu suporte financeiro foi fundamental para que o amigo pudesse se dedicar aos estudos e escrever sua principal obra, Das Kapital (O Capital). Uma relação que, a princípio, tiraria de Engels méritos intelectuais e reforçaria sua figura eclipsada pelo amigo.
Coggiola, entretanto, indica a necessidade de entender essa relação dentro do projeto intelectual e político mais amplo da dupla. Conscientes das especificidades de trajetória, pensamento e atuação de cada um, Engels e Marx atuaram de maneira coordenada. “Engels ajudou muito Marx para que ele redigisse O Capital, porque sabia que ele não teria dado conta de escrever uma obra com tal abrangência e profundidade teórica”, comenta o professor. “Por isso, O Capital foi obra de Marx e muito dificilmente teria podido ser obra de Engels.”
Com a morte de Marx em 1883, naturalmente coube a Engels organizar o que viriam a ser os volumes 2 e 3 de O Capital. E aqui a história se torna ainda mais delicada.
“Hoje sabemos que ele teve que escolher textos num imenso volume de manuscritos inacabados”, explica Secco. “Obviamente, ele conhecia a intenção do autor melhor do que qualquer outra pessoa, mas ainda assim trata-se de uma intervenção em alguma medida arbitrária.”
A contribuição de Engels para os volumes 2 e 3 de O Capital já rendeu polêmicas, críticas e buscas pela “palavra original” de Marx. Coggiola considera que o mais importante é entender o texto como um trabalho intelectual feito no meio da história e não como escrituras sagradas à espera de revelações.
Secco partilha de visão semelhante e prefere destacar as contribuições que Engels trouxe para a obra. “Ele fez interpolações, notas, correções e até escreveu trechos, como o capítulo sobre a rotação do capital variável. Mas também antecipou problemas importantes. O prefácio de Engels ao livro terceiro se preocupa com o problema da transformação dos valores em preços de produção – o que mais tarde alimentaria uma copiosa literatura econômica até hoje inconclusa.”
A questão da vulgarização
Outro aspecto da biografia de Engels que costuma receber atenção é seu papel na popularização da obra de Marx, através de artigos e livros. É o caso de livros como O Anti-Duhring (1878) e Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico (1880). Por esses textos, Engels muitas vezes foi acusado de simplificar demais o pensamento do amigo.
“Engels continuou a escrever depois da morte de Marx e ajudou a elaborar uma espécie de doutrina marxista para o movimento social-democrata da época, que muitos hoje consideram uma vulgata que sacrificou a dialética em nome da popularização de ideias cristalizadas”, comenta Secco, salientando que não é possível esquecer os méritos próprios da obra de Engels.
Coggiola também vê com cautela esse tipo de crítica e prefere destacar seus pontos positivos. “Em Engels há textos de popularização que não encontramos em Marx. Por quê? Porque alguém tinha de fazer isso.”
Coggiola lembra que Marx não viu o surgimento da Segunda Internacional e a criação dos grandes partidos socialistas, momentos que tornaram a popularização da teoria marxista necessária. “Engels teve que se ocupar disso diretamente. São questões que nascem das circunstâncias históricas. Ele viu surgir os partidos operários de massas. Marx não viu. Ele logicamente sabia que alguns dos argumentos de Marx, se não fossem apresentados de uma maneira mais sintética, não seriam compreensíveis para um vasto número de pessoas. Ele se deu a esse trabalho”, conclui Coggiola.
Nova edição de Dialética da Natureza, de Friedrich Engels, é lançada no Brasil
Entre 1873 e 1886, o pensador alemão Friedrich Engels (1820-1895) redigiu os artigos e anotações que, em 1925, seriam publicados com o título Dialektik der Natur (Dialética da Natureza). Agora, no bicentenário do pensador alemão, a Editora Boitempo lança no Brasil uma nova edição dessa obra, com tradução direta do alemão por Nélio Schneider. Com 400 páginas, Dialética da Natureza é o 28º volume da Coleção Marx-Engels, iniciada pela Boitempo há mais de 20 anos.
A apresentação do livro é assinada pelo professor Ricardo Musse, do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Nela, Musse mostra que, em Dialética da Natureza, Engels reage contra o “método” filosófico da metafísica aplicado às ciências naturais, que o pensador alemão propõe substituir pela dialética.
Para o adepto da metafísica – explica Musse -, as coisas e suas imagens no pensamento, os conceitos, são objetos isolados de investigação, objetos fixos, imóveis, observados um após o outro, cada um em si mesmo, como seres permanentes. Aplicado à pesquisa científica, o método metafísico revela suas limitações. “Unilateral e abstrato, esse procedimento enreda-se, conforme Engels, em contradições insolúveis: atento aos objetos concretos, não consegue enxergar as relações; congelado no momento presente, não concebe a gênese e a caducidade; concentrado na estabilidade das condições, não percebe a dinâmica; ‘obcecado pelas árvores não consegue enxergar o bosque’.”
Capa do livro Dialética da Natureza, publicado pela Editora Boitempo – Foto: Reprodução
Já o método dialético defendido por Engels – que teve início na Grécia antiga e se afirmou somente no século 15, com o nascimento das modernas ciências da natureza – é o oposto, quase ponto a ponto, da concepção metafísica, destaca Musse. De acordo com o professor – sempre seguindo o pensador alemão -, a dialética não delimita de modo isolado os objetos nem os toma como algo fixo e acabado. Ao contrário, investiga os processos, a origem e o desenvolvimento das coisas e as insere em uma trama complexa de concatenações e mútuas influências, na qual nada permanece o que é e tampouco na forma como existia. “Nela, os dois polos de uma antítese, apesar de seu antagonismo, completam-se e articulam-se reciprocamente. A causa e o efeito, vigentes em um caso concreto, particular, diluem-se numa trama universal de ações recíprocas, na qual as causas e os efeitos trocam constantemente de lugar e o que, antes, era causa, adquire, logo depois, o papel de efeito e vice-versa.”
É por isso que Engels afirma, no Curso do Desenvolvimento Teórico desde Hegel, uma das partes que compõem a Dialética da Natureza: “Como quer que se portem, os pesquisadores da natureza são dominados pela filosofia. A única questão é se querem ser dominados por uma filosofia ruim que está na moda ou por uma forma do pensamento teórico que se baseia no conhecimento da história do pensamento e de suas conquistas”. O pensador alemão completa esse pensamento: “Os pesquisadores da natureza ainda prolongam a vida aparente da filosofia recorrendo às sobras da velha metafísica. Só quando a ciência da natureza e a ciência da história tiverem absorvido a dialética, desaparecerá, por ser supérfluo, todo cacareco filosófico na ciência objetiva – com exceção da teoria pura do pensamento”. (Roberto C. G. Castro)
Dialética da Natureza, de Friedrich Engels, tradução de Nélio Schneider, Editora Boitempo, 400 páginas, R$ 83,00.