Exclusão social no neoliberalismo abre caminho ao crime organizado e ao extremismo religioso, avalia Marcio Pochmann
O neoliberalismo foi consolidado no Brasil na década de 1990 e alterou profundamente as relações econômicas e de trabalho. O fim de uma era de industrialização deixou boa parte da população fora do sistema, redirecionado ao modelo agroexportador e à prestação de serviços. O que gerou, conforme o economista e presidente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Marcio Pochmann, uma massa sobrante, para quem o capitalismo não tem nada a oferecer. Caminho aberto, segundo ele, para o crime organizado e o extremismo religioso.
Nesta entrevista ao Brasil de Fato RS, Pochmann aborda diversos desafios políticos, econômicos e sociais que surgem com as transformações tecnológicas e políticas nas últimas décadas. Entre elas, estão: o crescimento da extrema direita com seu discurso antissistema, quando talvez seja a própria ordem; os perigos do monopólio da informação concentrado nas big techs para a soberania nacional; as mudanças geopolíticas mundiais que estão alterando o perfil das cidades brasileiras; a crise na economia do Rio Grande do Sul; e questões políticas que barram o desenvolvimento do país.
Brasil de Fato RS – A gente vive uma realidade mundial em que as big techs, as grandes corporações da internet, detêm mais dados dos países do que o próprio país. Como fica a soberania nacional nessa situação, se um país tem suas informações capturadas e conhecidas por empresas estrangeiras?
Marcio Pochmann – O presidente Lula tem falado a respeito disso. Nós estamos, de certa maneira, num conflito que diz respeito à governança de populações.
Vamos voltar no tempo: depois da Guerra dos 30 Anos, de 1618 a 1648, houve o desenlace da Igreja Católica no estabelecimento do que havia de estados, impérios, reconhecimento de territórios. No caso do Brasil, na era do descobrimento, antes disso, o Acordo de Tordesilhas [1494] estabelecia os limites e passava pela Igreja Católica. A Guerra dos 30 Anos, de certa maneira, impõe uma separação, e aí se constituem os chamados estados nacionais, que vão ganhar difusão no século 20, especialmente ao final da Segunda Guerra Mundial [1939-1945].
Esse processo de criação dos estados nacionais pressupôs identificar fronteiras geográficas e, ao mesmo tempo, a governança da população, ou seja, através da dimensão da população, de quantos jovens, quantas crianças havia. Até então, até o século 16, 17, havia contagem de população, mas com vistas à formação de exércitos para a guerra.
Isso muda em 1790, quando os Estados Unidos realizam o primeiro censo demográfico, feito para contar a população para efeito da eleição, para saber quantos eleitores teriam e o número de deputados naquele país. Ali vai se identificando cada vez mais que a governança de populações passa por informações, por dados demográficos, e é o papel do Estado Nacional fazer isso.
A tua pergunta refere-se justamente a uma situação nova, que é o poder crescente de poucas, mas grandes corporações transnacionais, cujo faturamento ultrapassa o PIB [Produto Interno Bruto] de países. Então, há uma disputa de governança.
O IBGE levou 12 anos, desde 2010, o último censo, ao que nós fizemos agora, divulgado em 2022. Exigiu 180 mil recenseadores para visitar 70 milhões de domicílios. Tem um custo, que não é pequeno, para a sociedade brasileira, mas é importante que seja feito. Até foi feito com pouco recurso, e nós estamos levando um, dois anos, talvez três, para divulgar todo o censo.
Na era digital, nós estamos diante de um capitalismo cada vez mais de vigilância. As big techs são grandes empresas de tecnologia que permitem que a gente acesse a internet se conectado em alguma rede, aceitando sua política de privacidade.
Política que diz “você pode entrar aqui na nossa rede, mas fique sabendo, você tem que aceitar que tudo que você postar, que utilizar, não lhe pertence, portanto, as fotos que você posta, os filmes, as músicas, as compras, as mensagens, os pagamentos, os roteiros que você faz de percurso, tudo isso você utiliza, porém, não lhe pertence”.
Isso é um conjunto de dados que, ao final de cada dia, é possível fazer um censo de um país, do mundo, pelo menos de todos que estão conectados. Dá para saber o que as pessoas fizeram, o que nós fizemos ao longo do dia.
As big techs fazem um censo por dia, ou seja, o que o IBGE faz de 10 em 10 anos, ela faz em um dia…
Exatamente, e mais do que isso, ela tem informação online, atualizada a todo momento. Portanto, essas big techs, que são estrangeiras, têm mais informações que o próprio IBGE, têm mais informações que o presidente da República.
Nós estamos assistindo aí uma disputa de um empresário, de uma grande empresa, Starlink, que entrou na guerra Ucrânia e Rússia. Algo que a gente desconhecia sobre isso, ou seja, desde o início do século 17, da Guerra dos 30 Anos, que não havia o setor privado entrando em guerras, governando populações.
Nós estamos, inclusive, eu mesmo pertenço a uma universidade que praticamente colocou todas as suas informações na mão de uma empresa estrangeira, por quê? Porque o correio eletrônico é feito por essa empresa estrangeira, então todas as informações são de posse dessa empresa.
Alguém vai lembrar aqui do ChatGPT, que é um avanço importante etc. Mas de onde sai o conteúdo para as perguntas que a gente faz sobre o Brasil? Saiu de nós mesmos, que doamos, ao longo da pandemia, várias aulas que foram ministradas, debates.
Essa é uma questão central do ponto de vista do que serão os países, do que será a governança de populações nesse processo de digitalização, em que predomina um outro modo de organização do capitalismo.
O Brasil não é uma sociedade letrada digitalmente. As pessoas até sabem teclar… Eu mesmo me considero um iletrado digital. A União Europeia está preocupada com esse tema e estabeleceu um programa de letramento digital, com a meta de que, até 2030, pelo menos 30% da população europeia esteja letrada digitalmente.
O que é letrada? Saber que, por exemplo, ao fazer uma pergunta em uma rede, que a resposta varia conforme o perfil do usuário. Esse é o grande risco. Por incrível que pareça, na sociedade com tantas informações, o que predomina é a desinformação.
É outro paradoxo. Até esse letramento que tu falas, eu imagino que é uma espécie de realfabetização, só que digital.
Exatamente. Se no passado, na era industrial, se dizia que informação é poder, hoje a gente pode dizer talvez o contrário, desinformação é que é poder. Porque não se acredita mais em nada. Nós estamos tendo uma vulgarização das estatísticas, o IBGE levanta 400 mil preços, vai em nove regiões metropolitanas, nossos pesquisadores que levantam os preços e o IBGE divulga a inflação. Aí alguém vai no supermercado, filma e diz “olha, o preço da batata subiu 20%, a inflação está errada”. Obviamente que não é obrigado saber como se faz a inflação no Brasil, mas é uma vulgarização, uma descrença.
É preocupante porque há o risco de nós entrarmos numa nova era, uma nova Idade Média, como foi aquela que prevaleceu entre o século 5, depois da destruição do Império Romano, até o século 15, com a descoberta de Gutenberg e da imprensa. Durante praticamente 10 séculos, com o fim do Império Romano [ 27 a.C. – 476 d.C.] , a Igreja Católica passou a absorver todas as informações nas suas próprias bibliotecas enquanto predominava um profundo analfabetismo no mundo. Tem um livro fantástico, um filme também muito bom, O Nome da Rosa, que mostra isso.
É o que nós estamos tendo hoje. Ou seja, há uma monopolização das informações e do conhecimento em pouquíssimas corporações estrangeiras. O risco, portanto, é se difundir o analfabetismo digital numa sociedade praticamente descrente de tudo, em que o governo vai ser cada vez mais aquele das grandes corporações.
Tem ainda as mudanças climáticas. Aqui no Rio Grande do Sul estamos sentindo profundamente, tivemos as enchentes em maio, junho e, agora, estamos sufocando com as fumaças dos incêndios criminosos. Situações que estão se agravando e que geraram e vão gerar mais desinformação.
Esse tema ganhou dimensão e, obviamente, vai ser dominante, porque a aceleração dos problemas climáticos está só no início. Era importante que a sociedade organizada, que os partidos, que o poder Legislativo, Judiciário, e o Executivo se dessem conta que nós não estamos diante de fenômenos anormais, que acontecem de vez em quando. Isso é um novo normal, nós vamos conviver com problemas crescentes decorrentes do clima. E o Brasil não tem estudos, não se antecipa, ou seja, parece sempre lidar como se tudo fosse emergência.
É óbvio que nós precisamos de pronto-socorro, porque acidentes ocorrem, alguém atropelado sofre algum problema de saúde, ele tem que emergencialmente ser tratado. Mas nós precisamos de uma terapia que nos conduza a reconhecer que tem um problema estrutural.
Por exemplo, nós não sabemos, não há estudos, há especulações de outros países, de qual a dimensão territorial vai ser afetada pela elevação do nível do mar. Porque isso é inexorável, com a temperatura maior e o degelo da calota polar, isso eleva o nível do mar, e, portanto, uma parte das cidades litorâneas vão desaparecer.
Nós estamos diante de questões estruturais. Isso significaria que as diferentes esferas se dessem conta que nós estamos num outro patamar, um novo regime climático chamado antropoceno, que pressupõe, na verdade, olhar a questão ambiental não como se fosse uma política setorial.
A questão é que o efeito climático tem a ver com o Banco Central, tem a ver com o Ministério da Indústria, com os vários segmentos. Importante olhar isso de forma matricial, intersetorializada, e, de certa maneira, estabelecer instituições, preparar o país com a inteligência e com capacidade de enfrentar situações que são apenas o começo, infelizmente.
Você disse esses dias que há um processo gradativo, contínuo, de decadência das regiões litorâneas do Brasil, enquanto o interior do país está se desenvolvendo. Eu gostaria que você comentasse um pouco isso.
A meu juízo, nós estamos numa rota que é o inverso daquela que ocorreu no Brasil, desde o Império [1822-1889]. No período da Colônia [1530-1822], havia o chamado exclusivismo metropolitano, ou seja, as colônias só podem exportar para Portugal. Depois ouve a Liberação dos Portos para as Nações Amigas e, entre 1808 e 1920, o principal parceiro comercial do Brasil foi a Inglaterra.
Nossas instituições naquele momento, a própria República, estão muito contaminadas pelos valores, pela ideologia, pela orientação inglesa. Os investimentos que vieram do exterior, por exemplo, que permitiram a construção das primeiras ferrovias no Brasil, eram aquelas que ligavam o interior aos portos.
Era a ferrovia que desovava a produção de café para o litoral, para o Oceano Atlântico, o que não se alterou drasticamente desde 1920 até 2009, quando os Estados Unidos passaram a ser o principal parceiro comercial do Brasil.
Desde 2009, o principal parceiro comercial do Brasil é a China. Muda, em primeiro lugar, que o Oceano Atlântico já não é o centro do comércio externo brasileiro. O centro do comércio externo é cada vez mais o Pacífico. E, se nós olharmos os investimentos que estão sendo feitos, públicos, privados e internacionais, são investimentos que ligam o Centro-Oeste, o Norte e uma parte do Sul aos países latino-americanos, visando a saída para o Pacífico.
Então, isso que eu quero dizer, há um inverso no século XIX. Os investimentos estão sendo organizados para viabilizar a logística que leva para o Oceano Pacífico, porque se economiza três semanas de transporte, comparado com a saída pelo Atlântico.
Se olharmos o PIB dos municípios, vemos três tipos no Brasil. Cerca de 10% a 15% são municípios fantasmas, onde o PIB não cresce, está paralisado, a população jovem sai, e há um envelhecimento, vivendo praticamente de transferências fiscais.
O segundo grupo é formado pelos municípios das regiões litorâneas. Geralmente, com exceções, são as metrópoles que outrora eram a base da indústria e dos melhores empregos, mas, com a desindustrialização, foram definhando. Têm um crescimento econômico médio de 2% ao ano, e suas rendas per capita estão estagnadas.
Agora, se você olha o interior de São Paulo, pegando um pouco de Paraná, Santa Catarina, e alguma coisinha do Rio Grande do Sul, e subindo rumo ao Centro-Oeste e parte do Norte, nós vemos ali municípios que crescem 6%, 7% ao ano, são praticamente municípios com ritmo chinês. É um outro país, é outra configuração.
O que vai acontecer com a população brasileira, 70% dela ainda residente a não mais de 200 quilômetros da região oceânica, do Oceano Atlântico? Porque isso está sendo cada vez mais um espaço conflagrado com a presença predominante do que eu denomino como o novo sistema jagunço, que é a liderança do fanatismo religioso e do banditismo social.
São questões estruturais que não vamos resolver com a eleição, até porque a eleição também já está contaminada com o efeito do novo sistema jagunço. Perpassam justamente por um novo sistema de dados do país e uma reflexão do povo brasileiro a respeito do seu futuro.
Pode explicar melhor esse conceito do sistema jagunço? Acrescentando sobre algo que temos visto, um aumento da penetração do crime organizado em várias instituições públicas ou privadas – e nós temos, toda semana, evidências, digamos assim, daquela zona cinza, que você não sabe se é exatamente legal ou ilegal – como um avanço na conquista do poder para facilitar o negócio do crime organizado.
É uma questão que estudo há algum tempo, com produção sobre o tema. O fanatismo religioso e o banditismo social são consequências diretas da predominância do receituário neoliberal. No início da República, em 1889, houve uma tentativa de industrialização que foi derrotada, e aí acendeu a política do café com leite, a política dos governadores etc. Que assentou o liberalismo. O que era o liberalismo? Era o Estado mínimo, um liberalismo que patrocinava o capitalismo para poucos.
Caio Prado [Júnior, historiador e geógrafo brasileiro] destacava que esse capitalismo gerava uma massa “inorgânica” para o capital, composta pelas pessoas pobres do campo, sem futuro no sistema. Exemplo disso foi a Guerra de Canudos (1896-1897), com 25 mil pessoas vivendo em uma economia solidária, fora do capitalismo. Outro exemplo foi o cangaço de Virgulino Lampião, que reunia essa massa sobrante, praticando o justicialismo ao invadir fazendas.
Isso acaba com a Revolução de 30, que organizou o desenvolvimento capitalista, que abriu espaço para incorporar essa massa sobrante através do emprego assalariado formal, dando às pessoas a oportunidade de ter um direito, o direito de se aposentar, de receber um salário mínimo, de ter férias, descanso semanal, de ter representação, o sindicato. Um sistema que dava identidade e pertencimento.
Com o receituário neoliberal e a entrada do Brasil na globalização a partir de 1990, o capitalismo brasileiro foi definhando. Nos anos 80, cerca de 70% dos ocupados no Brasil estavam em atividades capitalistas, focadas no lucro e crescimento. Hoje, apenas 49% estão vinculados a essas atividades, enquanto 12% estão no setor público, e cerca de 40% se encontram em atividades de subsistência ou economia popular, sem estratégia capitalista clara.
Para essa massa sobrante que nós temos hoje, que eu calculo entre 60 a 70 milhões de brasileiros, o capitalismo não tem nada a oferecer. É uma massa sem destino. E quem oferece destino? Porque o Estado, cada vez mais contido, distante das regiões mais pobres do país, tem a oferecer bolsas que são fundamentais, mas não são suficientes, porque não oferecem um horizonte.
De um lado, você tem aqueles que questionam esse horizonte, e, portanto, buscam as igrejas. E outros que questionam que as igrejas também não oferecem tanto, e, portanto, passa por imediatismo. O imediatismo é a ascensão pelo crime. E isso obviamente está reorganizando o Estado brasileiro em novas bases.
Grande parte do crime organizado são empreendimentos, tem bancos. Eles contaminaram o Estado e têm estratégias para financiar o estudo de jovens em faculdades de direito, que se formam e fazem cursinhos para a OAB [Ordem dos Advogados do Brasil] e concursos públicos, ocupando cargos no governo. Essas instituições se organizam também por meio de processos eleitorais, tendo um projeto de futuro.
Enquanto o neoliberalismo continuar predominando, incapaz de absorver a todos, deixará as massas sobrantes cada vez mais vulneráveis ao crime e ao fanatismo religioso.
O que nos leva também para a extrema direita.
A extrema direita é uma demonstração do quanto ela é antissistema. Ela está se colocando contra esse sistema, ainda que possa ser apenas uma retórica. Ao contrário da esquerda, que muitas vezes defende a ordem do jeito que está aí. Essa é uma contradição enorme, porque há uma defesa de uma ordem que está, de certa maneira, com sérios problemas de sustentação, porque também está sendo contaminada pela própria presença do crime e do fanatismo religioso.
A direita tem um discurso antissistema, antiordem, quando talvez ela seja a própria ordem. Mas, do ponto de vista do jogo da retórica, do jogo eleitoral, ela se coloca contra tudo o que está aí, acreditando que a destruição de tudo o que está aí gerará uma espécie de emergência das cinzas. Quando, obviamente, isso aí é algo que depõe contra qualquer mínimo de racionalidade nesse sentido.
Mas não podemos esquecer que também a esquerda. Os progressistas têm uma parte importante no que estão fazendo e no que estão dizendo. Até que ponto a sua retórica, é, de fato, capaz de mudar a realidade?
E até que ponto é capaz?
Trazendo para os dias de hoje, olhando o governo federal, eu não tenho dúvida que o governo do presidente Lula tem clareza dos limites em que ele assumiu o governo. É inegável que a direita não morreu. A direita está viva, vai disputar as eleições. Tentou um golpe de Estado e não está sendo simples comprometê-los.
Portanto, é um governo de transição para uma possibilidade de transformações mais profundas. O que tem sido possível fazer até agora, diante dos limites impostos, é recuperar aquilo que o governo do presidente Lula e da presidente Dilma haviam já estabelecido. Porque nós tivemos um retrocesso inegável de 2016 para cá.
O próprio IBGE sofreu demasiadamente, sem concurso público, redução de salários, problemas seríssimos de realização de pesquisas. Mas isso não é específico do IBGE. Isso é uma coisa geral. A defesa da privatização, a destruição das instituições, ou seja, reestabelecer isso nas condições que o governo do presidente Lula assumiu não é pouca coisa.
Evidentemente que há uma expectativa do que pode ser feito à medida que nós possamos acumular forças. Nesse sentido a questão eleitoral deste ano me parece muito importante para redefinir rumos e, obviamente, garantir que a democracia se sustente no país.
Nessas perspectivas, qual seria o papel dos Brics? Tu és otimista quanto às possibilidades que serão abertas, ou que estão sendo abertas?
Parto da hipótese de que vivemos uma mudança de época com quatro eixos. O primeiro é o deslocamento do centro dinâmico dos Estados Unidos e do Ocidente para a China, abrindo espaço para o Sul Global. O Brasil e a América se desenvolveram sob o eurocentrismo, mas, com o declínio do Ocidente, temos menos a aprender com Europa e EUA. Agora, enfrentamos o apogeu do Oriente, sobre o qual sabemos pouco, e o Brasil, com os Brics, tem a chance de questionar e oferecer uma alternativa à governança ocidental.
O segundo eixo é a era digital, que reconecta a sociedade de novas formas. O terceiro é a mudança no regime climático. O quarto eixo é a mudança demográfica.
Até 1800, o mundo tinha cerca de 1 bilhão de habitantes. De 1800 a 2000, a população mundial multiplicou-se por 10. Hoje, vemos uma inflexão, com o Brasil prevendo regressão populacional após 2040 e países como China, Japão e Itália enfrentando quedas significativas em suas populações.
É uma mudança de época sobre a qual o Brasil precisaria também discutir. Nós estamos razoáveis, achamos razoável a população que nós temos hoje? Com 212 milhões num país de dimensão continental, de baixa densidade demográfica, será que nós vamos aceitar mais imigrantes? Por que está havendo a queda na taxa de fecundidade? Por que as mulheres estão tendo menos filhos? A gente sabe que estão tendo, mas por quê? Qual é a razão? Falta política pública?
Perceba que mudança de época é, na verdade, um momento de grande questionamento, de oportunidade de disputar o futuro de forma diferente.
O Brasil está presidindo o G20. Está acontecendo vários encontros, reuniões importantes no Brasil, o que pouco se fala. A população em geral, na verdade, acho que pouco sabe sobre isso. E um dos debates que se faz no G20 é justamente a questão da tributação dos super-ricos, que o ministro da Economia, o Fernando Haddad, defende uma tributação global. Como é que você está vendo esse debate?
Ele não é, de certa maneira, novo. Isso já vem do final dos anos 1960 e 1970, a teorização, propostas. E foi retomado, agora, nesse fórum especial, o que é o G20. É realmente promissor nesse sentido, mas eu imagino que uma decisão mais ampla que comece com os países do G20 precisará ganhar maior dimensão, porque o vazamento de tributação deve ocorrer na medida em que outros estados possam, na verdade, não se engajar nesse sistema de tributação.
Aí vem uma questão adicional, o esvaziamento das Nações Unidas, que é um produto do final da Segunda Grande Guerra Mundial e, hoje, realmente, tem dificuldades de estabelecer, normatizar critérios de dimensão mundial.
Talvez os Brics possam também contribuir nesse sentido, porque, a partir do Sul Global, se olha o mundo noutra perspectiva, e nós não esperamos mais o andar de cima do Norte Global, mas nós mesmos vamos construir os nossos caminhos.
E está aí a África também para ser descoberta. Eu quero te fazer uma pergunta para voltar um pouco para as raízes aqui, que é o seguinte: nas últimas décadas, nos últimos 50 anos ou mais, o Rio Grande do Sul tem paulatinamente perdido protagonismo, tanto político como econômico. Como é que tu vês isso?
Nasci no Rio Grande do Sul, mas não sou um estudioso do estado. Associo a decadência do Rio Grande do Sul às decisões tomadas no contexto neoliberal. Com o neoliberalismo, houve queda nas barreiras de importação, abertura da conta de capitais, alta taxa de juros, valorização cambial, entre outros, comprometendo a estrutura produtiva interna voltada ao mercado interno.
O estado era bem industrializado, mas o neoliberalismo trouxe um modelo econômico pouco favorável, focado em exportações. A Lei Kandir [1996] isentou exportações, deixando o governo estadual sem arrecadação fiscal. Ao mesmo tempo, com a desindustrialização, houve uma expansão de micro e pequenos negócios, que, pela legislação do Simples, têm pouca tributação, o que também retirou a base fiscal do estado.
Com isso, o Rio Grande do Sul não conseguiu se adaptar à nova dinâmica econômica e, em alguns governos, fortaleceu a perspectiva neoliberal, desfazendo patrimônios e cortando possibilidades de arrecadação.
A raiz dos problemas que o estado do Rio Grande do Sul possui está associada ao próprio receituário neoliberal, que não atendeu às necessidades locais e do povo gaúcho.
Interessante que quando o governo federal toma qualquer medida visando o desenvolvimento do país, tem uma afirmação econômica ou tenta fazer uma melhor distribuição de renda, logo se forma um coro de defensores do rigorismo fiscal, da elevação da taxa de juros, do gasto social. A gente ainda vive isso muito fortemente, né?
Precisamos compreender que o neoliberalismo se mantém porque tem apoio social. Parte da sociedade é beneficiária e, por isso, controla os meios de comunicação e a base parlamentar. Essa parte utiliza sabiamente as oportunidades para manter o modelo praticamente intacto.
O Brasil não tem dívida externa significativa, a dívida pública é em moeda nacional, sob controle do Estado. Portanto, não há justificativa técnica para a alta taxa de juros que prevalece, que está acima da inflação e dificulta os negócios e as atividades produtivas.
Isso desestruturou a classe dominante do país. Como falávamos anteriormente, se tinha uma burguesia industrial, tinha Antônio Ermírio de Moraes [presidente do Grupo Votorantim de 1973 a 2001], para citar um, que era, na verdade, uma âncora da produção, uma disputa com o próprio capitalismo estrangeiro nesse sentido, porque guardava o interesse da produção nacional.
Na medida em que você teve a dominância do receituário neoliberal, ou seja, você tem taxas de juros muito elevadas, fica mais fácil você vender o seu negócio, converter o seu negócio em dinheiro e aplicar no seu financeiro. Não tem risco algum e tem um ganho espetacular.
Então houve uma conversão de uma parte importante da burguesia industrial em rentistas, que anteriormente eram contra a taxa de juros, porque atrapalhavam os seus negócios e agora são defensores da taxa de juros, porque ali é o ganho, é o chamado rentismo, vive de rendas, rendas que não produz.
Por outro lado, aquele segmento da burguesia industrial que conseguiu manter seu negócio e sua fábrica acaba se tornando uma espécie de comerciante. Ele manteve a sua fábrica, porém, só monta, ele compra lá fora os componentes e monta aqui no Brasil. Então esse é amante da taxa de câmbio valorizada, porque quanto mais valorizada a nossa moeda, é mais barato comprar lá fora e vender aqui dentro.
A defesa sempre da valorização cambial no nosso país. Com isso, se compra barato lá fora, vende caro aqui. Esse giro não gera emprego decente, não gera recurso fiscal suficiente e mantém a armadilha do Estado, que tem que pagar a taxa de juros elevadas, que tem que manter a taxa de câmbio elevada, porque assim é mais fácil comprar lá fora do que produzir internamente. É um círculo vicioso, que nos está asfixiando já há muito tempo.
Ou seja, é uma elite que não está preocupada com o desenvolvimento do país.
Exatamente. Até o desenvolvimento pode ocorrer, sendo que esses ricos de hoje continuassem sendo beneficiados, mas não pelo rentismo. A meu ver, isso é uma questão política. O Brasil tem uma poupança de recursos aplicados em títulos públicos acima de 70% do PIB, ou seja, o dinheiro está aqui, não precisa tomar dinheiro no exterior.
O Brasil é um país em construção, falta de tudo, falta casa, falta hospital, falta estrada, falta estrutura. Ou seja, tem espaço para o investimento privado e, obviamente, público. Assim, esse dinheiro poderia ser investido nesses setores demandantes. É claro que o retorno não será tão vantajoso quanto a taxa de juros, a taxa de juros tem que ser muito menor.
Você tem tecnologia, porque o que precisa ser feito no Brasil não precisa de tecnologia estrangeira. Temos mão de obra qualificada, preparada para isso. Os fundamentos econômicos estão dados, não precisamos de ninguém. Mas por que, se os fundamentos estão adequados, o desenvolvimento não ocorre? Ocorre por uma questão política, que impede o desenlace nesse sentido.
Se colocarmos o recurso no sistema produtivo, garantimos que não haverá recessão e que não aumentará o preço da energia. Quem tem dinheiro fica em dúvida: se retirar do banco para abrir uma fábrica, levará um ano para produzir e, quando isso acontecer, o país pode estar em recessão. É um grande risco, e o papel do Estado é garantir que, nesse período, haverá crescimento econômico, dando segurança ao investimento.
(*) Versão resumida de entrevista ao podcast De Fato. Assista abaixo à edição completa