Massacre aos trabalhadores: STF mantém validade da jornada 12×36 por meio de acordo individual
Prevaleceu o voto do ministro Gilmar Mendes, no qual ele desfia seu já conhecido e reiterado rosário de fortes ataques e acusações ao direito do trabalho
Por José Geraldo de Santana Oliveira*
O Supremo Tribunal Federal (STF), em julgamento virtual encerrado ao dia 30 de junho próximo passado, por maioria — vencidos os ministros Marco Aurélio (aposentado), Edson Fachin e Rosa Weber —, julgou improcedente a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5994, ajuizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS), em 2018, visando à declaração de inconstitucionalidade do Art. 59-A da CLT, acrescido pela Lei N. 13.467/2017 (da de/ reforma trabalhista), com o seguinte teor:
“Em exceção ao disposto no art. 59 desta Consolidação, é facultada às partes, mediante acordo individual escrito, convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho, estabelecer horário de trabalho de doze horas seguidas por trinta e seis horas ininterruptas de descanso, observados ou indenizados os intervalos para repouso e alimentação” (Grifou-se).
No julgamento, prevaleceu o voto divergente do ministro Gilmar Mendes — que será o redator designado do acórdão —, no qual ele desfia seu já conhecido e reiterado rosário de fortes ataques e acusações ao direito do trabalho, a essa altura totalmente esgarçado pela citada de/reforma trabalhista e por reiteradas decisões do STF, a maioria delas de sua lavra.
Para comprovar essa assertiva, traz-se, aqui, a síntese de seu voto prevalecente, assim exarado:
“[…] Essa visão de mundo, que pressupõe um desequilíbrio irremediável entre forças e relações de produção, não mais se sustenta: é a própria premissa de submissão da mão de obra ao capital que merece ser revista. Para admitirmos que os ares socioeconômicos são completamente diversos daqueles em que se assentaram as bases do direito do trabalho tradicionalmente cultuado no Brasil, basta observar que a maior empresa de transportes do mundo não tem um carro sequer, e a maior empresa de hospedagem do mundo também não dispõe de um único apartamento. Refiro-me aos paradigmáticos Uber e Airbnb – ambos fundados em economia colaborativa e na descentralização da atividade econômica entre diversos agentes mercadológicos. A legislação ora impugnada exsurgiu nesse contexto histórico. Um contexto marcado pela fuga para a informalidade. Quem o diz é a Organização Internacional do Trabalho, que anunciava dados eloquentes em 2017, ano da aprovação da lei impugnada: no cenário latino-americano, a parcela de trabalhadores informais tinha crescido pelo terceiro ano consecutivo, atingindo 32,2%. Estimava-se que, em 2018, teríamos – na América Latina, repita-se – 91 milhões de trabalhadores informais (Organização Internacional do Trabalho OIT, World Employment Social Outlook: Trends 2018 , p. 17). No Brasil, ainda em 2017, o trabalho sem carteira assinada e “por conta própria” superava o emprego formal. E, interessantemente, a ligeira redução da taxa de desemprego se deu em razão do crescimento do trabalho informal e do desenvolvimento do comércio, segundo dados do IBGE (IBGE, Informalidade e comércio contribuem para queda no desemprego). Era esse o problema que se colocava ao país em 2017, quando da Reforma Trabalhista que, entre outras novidades, permitiu a fixação da jornada de trabalho de 12 horas de trabalho por 36 horas de descanso, por meio de contrato individual, privilegiando a liberdade de escolha do trabalhador. A informalidade é um claro indicativo de que os agentes de mercado – não apenas empresas, mas também os trabalhadores – estão migrando para a margem do sistema super-regulado que construímos. Nesse sentido, o Banco Mundial, em relatório sobre políticas de redução da informalidade, destaca que: ‘(…) aumentar a flexibilidade de normas de proteção do emprego e reduzir salários mínimos reduz os custos de contratação formal de trabalhadores, e assim, pode incrementar incentivos para que empresas aumentem o emprego registrado’. (The World Bank, Policies to reduce informal employment: an international survey , p. 10). Em outro documento, sobre o impacto da regulação no crescimento e na informalidade, consigna que: ‘ A regulação está se tornando um fator político central para explicar os gargalos do crescimento econômico em diversos países ao redor do mundo. (…) Altos níveis de regulação estão associados a um menor crescimento ‘. E como as portas para o século XIX estão definitivamente fechadas, parece produtivo abandonar conceitos de fundo polêmico, que insistem em descrever medidas como a jornada de trabalho 12h por 36h, objeto desta ação, sob a pecha de ‘precarização’ das relações de trabalho. Sérgio Pinto Martins é preciso ao evitar a visão ‘entre o céu e o inferno’ quando tratamos do tema da flexibilização das condições de trabalho : ‘Para certas pessoas, é a forma de salvar a pátria dos males do desemprego, para outras, é uma forma de destruir tudo aquilo que o trabalhador conquistou em séculos de reivindicações, que apenas privilegiam os interesses do capital, sendo uma forma de fazer com que o empregado pague a conta da crise econômica’. (MARTINS. Sérgio Pinto. Flexibilização das condições de trabalho . 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2020, p. 1). A reforma trabalhista só pode ser concebida como ‘precarização’ sob a ótica daquele ‘paradigma perdido’, sob o ponto de vista da lógica tradicional do Direito do Trabalho, fundada na tutela do trabalhador em face de desequilíbrios na relação com o empregador. Nessa conjuntura, entendo que as diversas alterações propostas pela reforma trabalhista empreendem um reencontro do Direito do Trabalho com suas origens privadas, fazendo com que a autonomia assuma posição de destaque, sem prejuízo, logicamente, da tutela da dignidade humana. [..] Nesse contexto, devemos analisar a possibilidade de lei, no caso a CLT, realizar a compatibilização de que trata o art. 7º, XIII, da CF, ao permitir a pactuação da jornada 12h por 36h. Bem vistas as coisas, a questão de fundo requer a devida consideração à liberdade de conformação do legislador. [..]Bem diferentemente se passam as coisas, entretanto. Consoante asseverado na ADPF 324, de relatoria do Ministro Roberto Barroso, a reforma trabalhista foi a resposta encontrada pelo Congresso Nacional – no exercício de sua discricionariedade epistêmica e estrutural – para proceder à composição entre a proteção do trabalho e a preservação da livre iniciativa, bens de destacada importância no texto de 1988 (cujo art. 1º, IV, coloca os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa como fundamentos da República Federativa do Brasil, senda também trilhada pelo art. 170, ao dispor sobre os fundamentos da ordem econômica). Sem trabalho, não há falar-se em direito ou garantia trabalhista. Sem trabalho, a Constituição Social não passará de uma carta de intenções.; tudo isso estará fadado ao esvaziamento se não dermos essa resposta jurídica a um problema econômico e social sistêmico. [..]O cerne da questão nesta ação consiste em saber se a jornada de trabalho excepcional de 12h por 36h pode ser estabelecida por acordo individual escrito, entre empregador e empregado, dispensando o acordo ou negociação coletiva. Seguindo a evolução do tratamento doutrinário e jurisprudencial sobre a jornada 12h por 36h, que cada vez mais se consolida entre diferentes categorias de trabalhadores, me parece natural que a reforma trabalhista normatizasse a referida jornada na CLT, passando a permitir sua adoção pelos trabalhadores via contrato individual, com base na liberdade do trabalhador, mote da reforma. [..]Portanto, não vejo qualquer inconstitucionalidade em lei que passa a possibilitar que o empregado e o empregador, por contrato individual, estipulem jornada de trabalho já amplamente utilizada entre nós, reconhecida na jurisprudência e adotada por leis específicas para determinadas carreiras. Ante o exposto, divirjo do eminente Relator para julgar improcedente a ação”.
O que causa estarrecimento — se é que ainda causa algum —, nessa decisão do STF, não é o fato de ele reputar constitucional a jornada de 12×36 horas, pois isso ele já o fizera na ADI 4842, que teve como relator o ministro Edson Fachin, tendo o acórdão a seguinte ementa:
“DIREITO DO TRABALHO. JORNADA DO BOMBEIRO CIVIL. JORNADA DE 12 (DOZE) HORAS DE TRABALHO POR 36 (TRINTA E SEIS HORAS) DE DESCANSO. DIREITO À SAÚDE (ART. 196 DA CRFB). DIREITO À JORNADA DE TRABALHO (ART. 7º, XIII, DA CRFB). DIREITO À PROTEÇÃO CONTRA RISCO À SAÚDE DO TRABALHADOR (ART. 7º, XXII, DA CRFB). 1. A jornada de 12 (doze) horas de trabalho por 36 (trinta e seis) horas de descanso não afronta o art. 7º, XIII, da Constituição da República, pois encontra-se respaldada na faculdade, conferida pela norma constitucional, de compensação de horários. 2. A proteção à saúde do trabalhador (art. 196 da CRFB) e à redução dos riscos inerentes ao trabalho (art. 7º, XXII, da CRFB) não são ‘ipso facto’ desrespeitadas pela jornada de trabalho dos bombeiros civis, tendo em vista que para cada 12 (doze) horas trabalhadas há 36 (trinta e seis) horas de descanso e também prevalece o limite de 36 (trinta e seis) horas de jornada semanal. 3. Ação direta de inconstitucionalidade julgada improcedente.” (ADI 4.842, Rel. Min. EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 14.9.2016.)”
O que causa estarrecimento, e vai causar sempre, é o fato de o guardião da Constituição Federal, conforme seu Art. 102, considerar constitucional a assimetria (desigualdade) das relações individuais de trabalho e jocosamente — como se colhe do voto vencedor, acima sintetizado — chamá-la de “liberdade do trabalhador”. Assimetria que o próprio STF registrara, com todas as letras, na ementa do acórdão do Recurso Extraordinário (RE) 590415, julgado em 2015, com o seguinte destaque:
“3. No âmbito do direito coletivo do trabalho não se verifica a mesma situação de assimetria de poder presente nas relações individuais de trabalho. Como consequência, a autonomia coletiva da vontade não se encontra sujeita aos mesmos limites que a autonomia individual”.
Nesse processo, o voto do relator Luiz Roberto Barroso, acolhido pela maioria dos demais ministros, patenteia:
“II. LIMITAÇÃO DA AUTONOMIA DA VONTADE DO EMPREGADO EM RAZÃO DA ASSIMETRIA DE PODER ENTRE OS SUJEITOS DA RELAÇÃO INDIVIDUAL DE TRABALHO 8. O direito individual do trabalho tem na relação de trabalho, estabelecida entre o empregador e a pessoa física do empregado, o elemento básico a partir do qual constrói os institutos e regras de interpretação. Justamente porque se reconhece, no âmbito das relações individuais, a desigualdade econômica e de poder entre as partes, as normas que regem tais relações são voltadas à tutela do trabalhador. Entende-se que a situação de inferioridade do empregado compromete o livre exercício da autonomia individual da vontade e que, nesse contexto, regras de origem heterônoma – produzidas pelo Estado – desempenham um papel primordial de defesa da parte hipossuficiente. Também por isso a aplicação do direito rege-se pelo princípio da proteção, optando-se pela norma mais favorável ao trabalhador na interpretação e na solução de antinomias. 9. Essa lógica protetiva está presente na Constituição, que consagrou um grande número de dispositivos à garantia de direitos trabalhistas no âmbito das relações individuais. Essa mesma lógica encontra-se presente no art. 477, §2º, da CLT e na Súmula 330 do TST, quando se determina que a quitação tem eficácia liberatória exclusivamente quanto às parcelas consignadas no recibo, independentemente de ter sido concedida em termos mais amplos. 10. Não se espera que o empregado, no momento da rescisão de seu contrato, tenha condições de avaliar se as parcelas e valores indicados no termo de rescisão correspondem efetivamente a todas as verbas a que faria jus. Considera-se que a condição de subordinação, a desinformação ou a necessidade podem levá-lo a agir em prejuízo próprio. Por isso, a quitação, no âmbito das relações individuais, produz efeitos limitados. Entretanto, tal assimetria entre empregador e empregados não se coloca – ao menos não com a mesma força – nas relações coletivas”.
O que, igualmente, foi judiciosamente anotado pelo relator ministro aposentado Marco Aurélio, e desprezado pela maioria dos demais ministros. Veja-se:
“Impossível é agasalhar reforma trabalhista mediante lei em sentido formal e material conflitante com a Constituição Federal. No ápice da pirâmide das normas jurídicas, está essa última, que a todos, indistintamente, submete – Legislativo, Executivo e Judiciário. Cumpre examinar a possibilidade de acordo individual escrito versar jornada de trabalho e sistema de continuidade ininterrupta, compensando-se com período de descanso dilatado. Quando dos trabalhos da Assembleia Constituinte, teve-se presente, na definição de direitos sociais, o embate desequilibrado entre prestador e tomador de serviços. Observou-se que a autonomia da manifestação de vontade própria às ideias napoleônicas que nortearam o Código Civil acabava por sujeitar o trabalhador aos ditames do empregador, especialmente considerado o fato de o mercado de trabalho, ante o crescimento desenfreado da população, ser, desde sempre, desequilibrado, com excesso de mão de obra e escassez de emprego. A mitigação da liberdade individual ocorreu submetendo-se fixações extraordinárias à participação da entidade de classe que congrega a categoria profissional, ou desta, necessariamente, e daquela referente à categoria econômica. Estabeleceu-se, no inciso XIII do artigo 7º, a duração de trabalho normal não superior a 8 horas diárias e 44 semanais – carga de trabalho considerada a unidade de tempo semana –, facultada a compensação de horários e a redução da jornada mediante acordo ou convenção coletiva. O preceito não contempla o acordo individual. O inciso que se segue – o XIV – versa jornada de 6 horas para o trabalho realizado em turnos ininterruptos de revezamento, mais uma vez submetendo o fenômeno à negociação coletiva. Proclama a Constituição Federal, no inciso XXVI, ante a importância da participação da entidade sindical – ao menos da que congrega a categoria profissional –, o reconhecimento de acordos e convenções coletivas de trabalho. No que impugnado, nesta ação direta de inconstitucionalidade, a cabeça do artigo 59-A e o parágrafo único dele constante, da Consolidação das Leis do Trabalho, a reforma trabalhista potencializou o fim em detrimento do meio, colocando em segundo plano comezinha noção de Direito. Previu-se a possibilidade de a jornada de 12 horas, alternada com descanso de 36, ser pactuada não só por acordo coletivo ou convenção coletiva, mas também via acordo individual. O menosprezo aos ditames constitucionais foi grande. O conflito, com a Constituição Federal, da expressão ‘acordo individual escrito’ é de clareza solar. Julgo procedente o pedido formulado, tal como o foi, para declarar inconstitucionais a expressão “acordo individual escrito” contida na cabeça do artigo 59-A e o parágrafo único dele constante, da Consolidação das Leis”.
O que estarrece, e com muito maior gravidade, exigindo a mais ampla denúncia e repúdio, é o STF, na declaração de constitucionalidade do Art. 59-A da CLT, sob comentários, é fazê-lo, fingindo não ver que esse perverso dispositivo, o mais perverso de todos, da famigerada de/reforma trabalhista autoriza os empregadores a exigir jornada de 12×36 horas sem nenhum intervalo para repouso e alimentação, como se o/a trabalhador/a a ela submetido/a fosse máquina, ou simplesmente instrumento de trabalho que fala, como era o conceito clássico da escravidão.
Eis o que diz o excerto do Art. 59-A, sob críticas: “observados ou indenizados os intervalos para repouso e alimentação”.
O que estarrece e exige reação imediata do movimento sindical e da própria a Justiça do Trabalho é o fato de o relator, com a anuência de seis outros ministros, pugnar abertamente pelo fim da importância sindical e dessa Justiça Social, inquestionavelmente, a mais relevante de todas as que compõem o Poder Judiciário. Isso, claro, para quem acredita que os valores sociais do trabalho (Art. 1º, IV, da CF), a valorização do trabalho humano (Art. 170, caput, da CF) e o primado do trabalho (Art. 193 da CF) jamais se envelhecerão. O que não parece ser o entendimento majoritário do STF.
Eis o que se lê no voto vencedor, que faz o leitor atento inferir essa nefasta assertiva:
“Nessa conjuntura, entendo que as diversas alterações propostas pela reforma trabalhista empreendem um reencontro do Direito do Trabalho com suas origens privadas, fazendo com que a autonomia assuma posição de destaque, sem prejuízo, logicamente, da tutela da dignidade humana”.
A esse contundente golpe nos valores sociais do trabalho, certamente, o maior de todos já perpetrado, somado aos anteriores, calha bem a ironia do personagem Agapito Robles, personagem do formidável escritor peruano Manuel Scorza (1928-1983), na novela “Cantar de Agapito Robles, que dizia existir, em alguns lugares no Peru, cinco estações ao ano: outono, inverno, primavera, verão e massacre.
No Brasil, ao menos no campo dos direitos fundamentais sociais, a estação massacre é a mais intensa e tem como regente principal o STF.
*José Geraldo de Santana Oliveira é consultor jurídico da Contee