Merenda para quem?

Principal alimento para milhares de estudantes no país, merenda escolar ainda não é garantida em tempos de pandemia

Ana Lucia Rodrigues é tia de um estudante matriculado numa escola do município de Itaboraí, região metropolitana do Rio de Janeiro. No mês em que a pandemia decretada .pela Organização Mundial de Saúde chegou ao Brasil, em março de 2020, ela se deparou com uma realidade: crianças de sua cidade estavam passando fome e uma das razões era que elas tinham na escola – agora fechada – a única refeição garantida do dia. Junto com um pequeno grupo de outras mulheres, Rodrigues foi cobrar do secretário municipal de educação ações para que a merenda continuasse a ser fornecida. Com essa iniciativa, surgiu o Movimento ‘Mães de Itaboraí – Nenhum Direito a Menos’.

“Nós tivemos mais de três reuniões com o secretário de educação na época, sem êxito algum. Numa investigação que nós mesmas fizemos, descobrimos que a prefeitura tinha uma verba de R$ 15 milhões para merenda e os estudantes ainda estavam naquela situação”, conta. Em novembro, relembra Rodrigues, cestas básicas passaram a ser distribuídas, como substitutas da merenda escolar. Elas continham dois quilos de arroz, um de feijão, um de farinha de mandioca, um açúcar, um leite em pó, um achocolatado, um óleo, um fubá, um quilo de macarrão, um extrato de tomate, 500 gramas de café e dois pacotes de biscoito. A cesta, que deveria durar o mês inteiro, foi concedida até fevereiro deste ano. De lá para cá, foi suspensa.

“Eles colocaram o mínimo de coisas, com alimentos que não tinham boa qualidade. E assim está sendo na nossa cidade. Agora nem isso esses estudantes têm. E devido a essa movimentação, essa busca por dignidade para esses alunos e também para essas famílias, a gente começou uma luta para garantir algum tipo de alimento e outros coletivos vieram e somaram forças, como é o caso do Casulo, um grupo de professores e diretores, a maioria de São Gonçalo [município vizinho a Itaboraí], que fez uma doação de 100 cestas básicas”, narra Rodrigues.

Esse não é um caso isolado. Cerca de 41 milhões de crianças recebem merenda escolar em todo o país, por meio do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), que atende os 27 estados e 5.570 municípios. Para dar suporte a esse direito, há uma série de garantias legais que foram, inclusive, atualizadas durante a pandemia. No entanto, em muitas cidades do Brasil, apenas iniciativas individuais e de coletivos da sociedade civil estão sendo responsáveis pela comida na mesa dos estudantes brasileiros.

Cenário de garantias

“A alimentação escolar é direito dos alunos da educação básica pública e dever do Estado”. O artigo 3 da Lei 11.947/2009, que veio sendo desenhada desde a década de 1950 e é considerada um marco nas lutas pela alimentação escolar, não deixa dúvidas de que a ‘merenda’ deve ser garantida a todos os estudantes da educação básica pública brasileira. Entre outros assuntos abordados pela legislação – que foi elaborada com participação popular e de movimentos sociais ligados à educação, agricultura e segurança alimentar –, estão a garantia de aquisição de 30% desses alimentos da agricultura familiar, a exigência de qualidade do que é distribuído como merenda e a previsão de reajuste do valor médio da refeição, além da defesa do papel educativo da alimentação na escola.

Durante a pandemia, em abril de 2020, a lei da merenda escolar foi alterada por outra, nº 13.987/20, que autorizava, em caráter excepcional, “durante o período de suspensão das aulas em razão de situação de emergência ou calamidade pública, a distribuição de gêneros alimentícios adquiridos com recursos do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) aos pais ou responsáveis dos estudantes das escolas públicas de educação básica”, como explica o texto. Outro instrumento jurídico, a resolução nº 2 do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), também de abril de 2020, dispõe sobre a execução do PNAE durante o período de estado de calamidade pública. Nele são garantidas, por exemplo, a aquisição e distribuição de alimentos às famílias dos estudantes e o uso exclusivo dos recursos do PNAE para estudantes da educação básica.

De acordo com a coordenadora geral do programa, Karine Santos, os dois instrumentos legais foram iniciativas de rápida resolução para dar conta da demanda por merenda. “Dentro do contexto da pandemia de Covid-19, que forçou a suspensão das aulas presenciais, foi possível ao governo federal alterar a legislação do programa para permitir a entrega dos gêneros alimentícios diretamente aos estudantes da educação básica pública, demonstrando a sua flexibilidade e adaptabilidade a essa mudança brusca de cenário”, avalia.

Mas, para Mariana Santarelli, pesquisadora da Plataforma Dhesca e coordenadora do relatório ‘Violações ao direito à alimentação escolar na pandemia de Covid-19’, a legislação disponível deixou brechas para que a alimentação escolar não chegasse a todos os estudantes. “Não havia nenhuma orientação que expressasse claramente essa ação por parte do FNDE, mas os próprios estados e municípios, diante da escassez de recursos para lidar e a falta de informação, começaram a adotar essas estratégias de focalização, sobretudo usando o CadÚnico  [Cadastro Único dos Programas Sociais] como referência. Já outros municípios fizeram consultas internas para ver quem mais necessitava da alimentação. Foram diferentes estratégias montadas nesse sentido de restringir o número de alunos que estariam recebendo esses kits”, relembra a pesquisadora, que reflete: “Na nossa visão, isso é algo que viola um direito universal. Ainda mais porque a gente sabe que nesse contexto de pandemia, muitas famílias que antes não estavam entraram em situação de pobreza. Na verdade, isso já era, inclusive, um problema anterior [que se refletia na falta de acesso] ao Bolsa Família: já existia uma fila enorme do CadÚnico de famílias com perfil para serem usuárias do programa e que não estavam sendo atendidas”. Ela destaca ainda que o sistema nacional de assistência social e, especificamente, os Centros de Referência de Assistência Social (CRAS), estão sendo “literalmente desmontados”. “Ou seja, não tem ampliação do número de pessoas que estão sendo cadastradas por eles. Isso é algo bastante grave e foi objeto de questionamento por parte da defensoria pública e do ministério público em alguns estados”, diz.

Não é só a legislação nacional que garante o direito dos estudantes à alimentação. O Brasil é signatário do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Pidesc) que, no artigo 11, trata do direito à alimentação adequada. Como desdobramento desse artigo, há o documento ‘Comentário Geral 12’, de 1999, elaborado pelo Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais sobre o Direito Humano à Alimentação Adequada que apresenta orientações para a interpretação desse direito de acordo com os termos do Pacto. Dentre as resoluções, o documento estabelece o direito de estar livre da fome e o direito a uma alimentação e nutrição adequadas. Em 2004, foram aprovadas, pelo Comitê de Segurança Alimentar Mundial (CSA), as diretrizes voluntárias em apoio à realização progressiva do direito à alimentação adequada no contexto da segurança alimentar nacional. Essas diretrizes formavam uma orientação prática aos gestores estaduais para a implementação progressiva desse direito. Todas essas iniciativas, portanto, foram importantes para a consolidação da lei da merenda, que hoje não está sendo colocada em prática.

Giro pelos estados

Com a nova legislação ditada durante a pandemia, é possível também substituir a aquisição dos alimentos distribuídos como merenda escolar por kits alimentares com a verba federal. No entanto, estados e municípios, com a sua participação suplementar, também variaram no modelo de oferta.

A plataforma Consed.info/alimentaçãoescolar, produzida pelo Conselho Nacional dos Secretários Estaduais de Educação no contexto da pandemia, apresenta um panorama geral dessa ‘diversidade’. Dados da última atualização antes do fechamento desta reportagem, em julho deste ano, mostram que em Alagoas, Maranhão, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul,  Amapá, Rio Grande do Norte, Sergipe, Rio Grande do Sul e Tocantins, a cobertura se deu com distribuição de kits de alimentação para todos os estudantes matriculados na rede. No Espírito Santo, Acre e Minas Gerais, apenas os estudantes que constam no CadÚnico receberam cestas básicas. Na Bahia, no Ceará e no Pará, os alunos receberam um vale alimentação.  No Distrito Federal, o modelo foi misto: começou com distribuição de alimentos e depois se reverteu num benefício chamado ‘bolsa alimentação escolar emergencial’. O estado de Goiás realizou três iniciativas: auxílio alimentação (de abril a julho de 2020), entrega dos kits (agosto a dezembro de 2020 e fevereiro a junho de 2021) e distribuição de cartões (a partir de julho de 2021), sendo a primeira somente para estudantes com vulnerabilidade social. Já no Paraná, houve distribuição de alimentos da merenda a alunos beneficiários do Bolsa Família e em situação de vulnerabilidade. Em Pernambuco, São Paulo e Rio de Janeiro, foi oferecida uma espécie de cartão alimentação somente para estudantes de maior vulnerabilidade social com recursos próprios de cada estado. Em Pernambuco, no entanto, no momento de fechamento desta matéria, houve uma mudança e a merenda passou a ser oferecida nas escolas por conta da retomada das aulas presenciais. No Piauí, a partir do programa Merenda em Casa, famílias beneficiárias do Bolsa Família, com filhos matriculados na rede estadual de ensino, receberam auxílio mensal, assim como em Santa Catarina.

“Tiveram várias discussões, a gente trabalhou durante um mês, e no dia 9 de abril foi quando saiu a nova lei permitindo a distribuição dos kits para alimentação escolar. Nesse momento teve a discussão sobre o que era mais interessante: a oferta dos alimentos ou a gente transferir os recursos diretamente para os pais. E a decisão foi manter a compra dos alimentos nas escolas, nas prefeituras, nos estados e também na rede federal, e fazer a distribuição dos kits, porque dessa maneira a gente conseguiria garantir, inclusive, os alimentos da agricultura familiar, além de respeitar, minimamente, os regramentos da alimentação escolar. Então, o que é proibido não pode ser adquirido com recurso federal”, explica a coordenadora do PNAE. São proibidos, por exemplo, a compra de alimentos ultraprocessados e a conversão da verba federal em cartões com crédito ou vale alimentação.  Portanto, os estados que oferecerem esse tipo de benefício, usaram recursos próprios. “Essa questão de os estados, apesar de não usarem recurso do Fundo, poderem fazer uso de vale alimentação e benefícios em forma de dinheiro são riscos que a gente está vivenciando agora, porque além de furar a estratégia de garantir alimentação saudável nas escolas, ainda flexibiliza a compra de alimentos da agricultura familiar, uma vez que esses cartões são utilizados em redes de supermercados e não com pequenos produtores”analisa Santarelli, que alerta: “A gente tem que tomar muito cuidado para não deixar essas marcas definitivas no PNAE, porque sabemos que são nesses momentos de exceção que se criam novas regras. Por isso a gente está muito de olho também no Congresso Nacional”.

De todos os 26 estados e o Distrito Federal, apenas o Mato Grosso do Sul, Goiás, Roraima, Santa Catarina e Sergipe declaram que a alimentação fornecida durante a pandemia também garantia parte dos alimentos oriundos da agricultura familiar, sendo que em Santa Catarina, de acordo com o que está informado no site do Consed, os alimentos serão integralmente adquiridos por esse mecanismo.

Por tudo isso, Mariana Santarelli avalia que o momento da pandemia exigia ações mais coordenadas nacionalmente para assegurar a alimentação de qualidade e equânime. “Faltou disposição para fazer uma complementação orçamentária no contexto de pandemia que garantisse as condições logísticas para distribuição de alimentos, por exemplo. Isso deveria ter sido uma decisão do governo federal lá atrás. Obviamente a logística complica a vida dos gestores, mas houve, logo no início, uma regulamentação, feita com base na lei que autorizava a distribuição dos alimentos, que me pareceu uma iniciativa boa. Era um manual, um guia de orientação, mas a gente sabe que a resistência dos gestores em mudar sua forma de operar e toda a insegurança que também veio com a pandemia geram um certo grau de paralisação. Nesse sentido, penso que deveriam ter acontecido mais momentos de formação, diálogo com os gestores públicos, no sentido de orientar uma ação, para além de simplesmente fazer um manual e criar uma resolução”, indica a pesquisadora.

De acordo com a coordenadora do PNAE, além da mudança da legislação e dos materiais orientativos – como a Cartilha de ‘Orientações para a execução do PNAE durante a situação de emergência decorrente da Pandemia do Coronavírus (COVID-19)’, elaborada em parceria com o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) e o documento ‘Recomendações para a execução do Programa Nacional de Alimentação Escolar no retorno presencial às aulas durante a pandemia da Covid-19: Educação Alimentar e Nutricional e Segurança dos Alimentos’ –, também foram realizadas rodas de conversas virtuais com grupos de gestores de todas as regiões do Brasil e uma parceria com o Ministério Público Federal com o objetivo de promover a execução do PNAE nos municípios e estados em que havia entraves.

Financiamento antes e depois

Alguns “entraves”, no entanto, vinham de antes da pandemia. De acordo com estudos da Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (Fineduca), entre 2014 e 2019 os investimentos no PNAE foram reduzidos em 18,9%, com uma queda de R$ 924 milhões. E entre 2018 e 2019, houve uma diminuição de R$ 200 milhões nas despesas do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação com o PNAE. Além disso, outros fatores impactam no valor total destinado à merenda e devem ser levados em consideração. O preço dos alimentos, por exemplo, teve alta de 15% em um ano, de acordo com o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), o que se soma ao não reajuste per capita da merenda, que está defasado, segundo a Fineduca: o último aconteceu em 2017. Desde então, o governo federal repassa a estados e municípios R$ 0,36 para o ensino fundamental e médio e R$ 0,32 para a EJA (Educação de Jovens e Adultos), segundo dados do site do FNDE.

Embora reconheçam a agilidade do Congresso em adequar as regras do PNAE às exigências da pandemia, pesquisadores criticam o fato de o parlamento não ter votado uma complementação orçamentária para garantir a qualidade dos alimentos distribuídos aos estudantes. De acordo com dados fornecidos pelo FNDE, o fundo repassou uma parcela extra que deveria ser para o ano de 2020, mas o valor só foi depositado em janeiro de 2021, no valor de R$ 384.836.162,56. “Ademais, cabe também informar que, até o momento, no exercício de 2021, foi pago o valor total de R$ 2.284.131.422,44 para as redes estadual, municipal, distrital e federal, referente às parcelas ordinárias do PNAE”, indica o órgão em nota enviada a esta reportagem.

A coordenadora-geral do PNAE, Karen dos Santos, reconhece que o baixo valor per capita é um debate sempre presente para o FNDE. No entanto, ela diz que é sempre importante lembrar que a responsabilidade é compartilhada. “O município e o estado precisam também colocar recursos para ofertar essa alimentação de qualidade. Quem tem obrigação de garantir a oferta da alimentação no estado e no município são os gestores locais. Esse recurso, quando a gente olha o individual, é pequeno, mas quando a gente olha na sua totalidade, é um recurso muito alto, são mais de R$ 4 bi por ano”, argumenta.

Santarelli pondera: “Você tem a perspectiva de complementação por parte dos estados e municípios, mas nunca se estabeleceu qual era o percentual que deveria ser assegurado por cada uma das esferas de governo. Então, você tem situações muito díspares pelo Brasil. Alguns municípios, sobretudo os mais pobres, de menor porte, operam só com o recurso que é transferido pelo PNAE. Outros, como é o caso das grandes metrópoles, têm capacidade de fazer uma complementação orçamentária de mais volume, de até três vezes. Essa definição faz com que a política de cada localidade seja determinante na qualidade da alimentação. Uma coisa é você operar com trinta e poucos centavos por aluno, outra coisa é você realmente complementar para conseguir chegar mais próximo do que são as recomendações que estão nas próprias portarias do FNDE”. E completa: “De maneira geral, é muito injusta ainda a questão do financiamento da educação. A União é a que mais arrecada impostos e menos contribui proporcionalmente e, com esse formato, sobrecarrega, sobretudo, os municípios. Quando fazemos o recorte da questão da merenda, isso fica muito claro e drasticamente desigual, porque estamos falando de desigualdade da comida no prato do estudante brasileiro”.

Escola Joaquim Venâncio

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