O medo vermelho nos EUA : nos anos 50 professores eram interrogados e demitidos sob acusação de serem comunistas
“Este livro é para lhe contar o que as mentes mestras por trás do comunismo têm planejado fazer com seu filho em nome da ‘educação’. Elas querem levá-lo do berçário, vestí-lo com um uniforme, colocar uma bandeira da foice e do martelo em uma mão e uma arma na outra, e enviá-lo para conquistar o mundo”.
Assim começa o livreto 100 coisas que você deveria saber sobre o comunismo e a educação, editado nos Estados Unidos, em 1948, pelo Comitê de Atividades Contra-Americanas, da U.S. House of Representatives – a Câmara dos Deputados americana. O material fazia parte de uma campanha de oposição a comunistas ou supostos comunistas dentro dos Estados Unidos, articulada pela direita americana, que durou cerca de uma década, entre os anos 40 e 50.
Os professores estavam entre os alvos principais, por exercerem uma atividade vista como potencialmente perigosa – a “doutrinação” das novas gerações americanas. Foram interrogados em comitês de investigação perante o Congresso, incluídos em “listas negras” de banimento e demitidos sob acusação de serem “vermelhos”.
Era o início da Guerra Fria, que pôs de lados opostos os Estados Unidos, capitalista, e a União Soviética, comunista, e mobilizou a máquina de propaganda e contra-propaganda dos dois lados. Nos Estados Unidos, a “caça aos comunistas” foi chamada de onda do “medo vermelho” ou Era McCarthy (macartismo), em referência ao senador Joseph McCarthy, um dos grandes promotores dessa política.
Segundo especialistas, foi um dos maiores e mais longos episódios de repressão política da história dos Estados Unidos.
No caso dos professores, as acusações não diziam respeito ao teor das aulas – apesar dos pais terem sido alertados em diversas publicações sobre os perigos de seus filhos estarem recebendo propaganda comunista na escola ou na universidade. O que levava os professores a serem interrogados e demitidos era, na verdade, suas supostas preferências políticas.
“Essas pessoas eram inocentes porque não tinham feito nada de errado”, diz a historiadora americana Ellen Schrecker, uma das maiores especialistas na Era McCarthy. Autora de quatro livros sobre o tema, Schrecker já lecionou em algumas das mais prestigiadas universidades americanas, como Harvard, Princeton e New York University.
“As pessoas que foram caçadas não fizeram nada contra a lei”, completa o canadense Sean Purdy, professor de história dos Estados Unidos na Universidade de São Paulo.
Milhares de professores foram demitidos e a auto-censura se propagou
Até hoje não se sabe o número exato de professores afetados, mas calcula-se que tenham sido milhares. No total, considerando todas as profissões, mais de 10 mil pessoas perderam seus empregos devido à Era McCarthy. Além dos professores, estavam na mira funcionários públicos considerados ‘infiltrados’, sindicalistas e artistas. Uma das vítimas mais conhecidas foi o ator e diretor Charles Chaplin.
Uma vez demitidos, os professores tinham dificuldade de encontrar um novo trabalho na área. Alguns ficaram desempregados por anos, outros precisaram mudar de profissão e houve ainda quem fosse lecionar no exterior.
A demissão de professores ainda gerou um efeito secundário: docentes e estudantes evitavam tocar em temas sensíveis, com medo de serem considerados comunistas e também serem expurgados. A própria Schrecker, hoje com 80 anos, viu episódios de auto-censura quando era estudante de graduação em Harvard, no fim dos anos 50.
“Eu me lembro de uma aula sobre as revoluções na Alemanha no século 19. O professor estava mostrando as diferentes interpretações para o que havia ocorrido. Só muitos anos depois, eu me dei conta que uma dessas interpretações era a marxista. Mas o professor nunca falou que era marxismo. Ele não era radical, de forma nenhuma, estava apenas apresentando uma interpretação importante no estudo desse tema. Mas achou melhor não dar nome aos bois”, recordou a historiadora.
No livreto direcionado aos pais de estudantes americanos, há outro exemplo de atividade vista como “perigosa” nas salas de aula: “A ênfase dos livros didáticos é posta no terço da população (americana) que está sub-alimentada, em vez de nos dois-terços que estão bem-alimentados”. Em outras palavras, mostrar os problemas em vez das qualidades dos Estados Unidos podia ser visto como uma postura anti-americana, que precisava ser combatida.
“Como podemos interromper o avanço comunista na educação?”, questiona a publicação, organizada em formato de perguntas e respostas ao longo de 36 páginas. “Descubra os comunistas, expulse-os e os processe com todos os meios legais possíveis”, sugere.
Temas proibidos, disciplina cancelada e silêncio nas universidades
A Era McCarthy alterou a vida nas instituições de ensino, tanto dos professores como dos estudantes.
Ao pesquisar para seus livros, Schrecker colheu o depoimento de um professor universitário que ministrava uma disciplina chamada “Revoluções”. Mas, durante a Era McCarthy, esse professor achou melhor encerrar o curso. Não era um tema seguro naquele momento.
Outro professor entrevistado por Schrecker relatou que, durante a Era McCarthy, parou de usar a palavra “capitalismo” em seus artigos. Em vez dela, escrevia “industrialismo mundial” ou “industrialização”, para não arriscar ter problemas – se referir ao capitalismo pelo nome poderia ser considerado como uma crítica ao modelo e uma adesão ao seu oposto, o comunismo.
“Não havia leis que diziam o que poderia ou não ser ensinado. A principal coisa que aconteceu na Era McCarthy foi a auto-censura. As pessoas evitavam até palavras”, diz Schrecker.
Também durante a Era McCarthy, um professor do campo da psicologia focou seus estudos em comportamento de ratos. Schrecker conta que, quando a perseguição parou, esse professor passou a se dedicar àquilo que queria estudar de verdade, mas que era muito polêmico para os tempos do “medo vermelho”: mostrar que a inteligência humana não é influenciada por questões raciais. Discussões de gênero e raça eram vistas como vinculadas à esquerda.
Entre os estudantes, ocorreu o mesmo. Em 1951, o jornal The New York Times fez um estudo com 72 das maiores universidades americanas, que revelou que os jovens se sentiam desconfiados e inibidos de falar sobre temas controversos. Temiam ser considerados “reds” (comunistas) ou “pinkos” (simpatizantes da esquerda) e, no futuro, serem rejeitados em bolsas de estudo ou oportunidades de trabalho.
Além disso, ainda segundo o estudo do The New York Times, os estudantes buscavam não ser associados às palavras “liberais” (que, nos Estados Unidos, se referem a ideias de esquerda), “paz” e “liberdade”. Também negligenciavam causas humanitárias, porque poderiam ser consideradas “suspeitas”.
Um caso ocorrido na Universidade de Chicago nos anos 1950 ilustra a que ponto chegou o medo vermelho. Um grupo fez um abaixo-assinado para instalar uma máquina de café do lado de fora do Departamento de Física, para atender quem estudava e trabalhava até tarde. Mas não conseguiram muitas assinaturas. O motivo é que as pessoas não queriam ser associadas a alguns estudantes cujos nomes estavam na petição e eram considerados radicais.
Na Era McCarthy, mesmo algo banal como um abaixo-assinado por uma máquina de café poderia gerar problemas.
Banir comunistas para preservar a soberania americana
A justificativa por trás da Era McCarthy era que os comunistas representavam uma ameaça à soberania americana.
No plano internacional, a União Soviética encorajava revoluções comunistas em outros lugares do mundo. E, no final dos anos 40, a balança parecia estar pendendo a favor do comunismo: os soviéticos desenvolveram a bomba atômica antes que os Estados Unidos imaginavam, em 1949, a China se tornou comunista meses depois, e a Coreia do Norte invadiu a Coreia do Sul, no ano seguinte.
Internamente, também havia uma base concreta para esse “medo vermelho”. Segundo documentos de inteligência divulgados na década de 1990, mais de 300 comunistas americanos espionaram o governo americano e passaram informações para os soviéticos, sobretudo durante a Segunda Guerra Mundial.
Alguns dos espiões eram funcionários do governo americano – inclusive, pessoas que trabalhavam no projeto Manhattan, que pesquisou e desenvolveu as primeiras bombas atômicas. Dois deles foram condenados à morte nos Estados Unidos.
“Como já disse uma grande figura histórica, quando uma grande democracia é destruída, não será por causa dos inimigos de fora, mas sim por causa dos inimigos de dentro”, disse o senador McCarthy, em um famoso discurso proferido em 1950.
“A razão pela qual nós nos encontramos em uma posição de impotência não é porque o nosso inimigo mandou homens para invadirem nossa costa, mas por causa de ações de traidores daqueles que foram tão bem tratados por essa nação”.
Em geral, a opinião pública apoiou a “caça aos comunistas”. “Isso era apresentado como uma medida de segurança pública durante a Guerra Fria, já que os comunistas tinham relações com a União Soviética, principal antagonista dos Estados Unidos. Assim, os membros do partido comunista eram uma ameaça potencial para a segurança”, explica Schrecker.
Mas pesquisadores dizem que o tamanho da perseguição da Era McCarthy extrapolou o tamanho da ameaça comunista nos Estados Unidos. Assim, acabaram punidas pessoas que nunca tinham feito nada ilegal – e outras que nem comunistas eram. Isso teria acabado limitando direitos que estão na base da democracia americana, como a liberdade de expressão.
“A ameaça comunista era plausível, mas altamente exagerada. Houve espionagem e isso não é bom. Mas foi algo que acabou logo depois da Segunda Guerra Mundial, quando o governo removeu a maioria dos membros do partido comunista. A Era McCarthy foi um preço muito alto a se pagar”, conclui Schrecker.
Depoimentos para o Congresso, ‘listas negras’ e demissões
O Partido Comunista americano nunca foi declarado ilegal, como ocorreu no Brasil. Mas isso não evitou as perseguições da Era McCarthy.
“Na maior parte do tempo, as chamadas vítimas da Era McCarthy não eram inocentes das acusações que sofreram – serem ou terem sido comunistas. Mas isso não era crime”, explica a historiadora Schrecker.
O auge do partido nos Estados Unidos foi nos anos 30. Estima-se que tenha chegado a ter entre 75 mil e 100 mil membros. A grande crise de 1929, seguida por políticas de intervenção na economia implementadas pelo presidente Franklin Roosevelt, acabou arrastando fileiras para o partido.
Mas, ao fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945, a maioria já tinha deixado o partido, explica Schrecker. Mesmo assim, o contingente de americanos ex-comunistas era enorme. Havia, assim, muita gente para ser incriminada na Era McCarthy.
“Muita gente que foi atingida tinha saído do partido no fim dos anos 30. Ou eram pessoas que só tinham ido a algumas reuniões do Partido Comunista. Ou ainda militantes independentes”, conta Sean Purdy, da USP. Entre as militâncias “perigosas” estavam a luta por direitos dos trabalhadores e a defesa da redução da desigualdade.
A “caça aos comunistas” ocorria em duas etapas. Primeiro, os supostos comunistas eram identificados pelo FBI ou por comitês de investigação do Congresso, que os convocavam para serem interrogados. Então, seus nomes eram expostos em público. Em alguns casos, também eram colocados em “listas negras”.
Aí vinha a segunda etapa. Eram os próprios empregadores que aplicavam as sanções. A principal delas era a demissão. Professores universitários que tinham estabilidade de emprego e não podiam ser demitidos sofriam outros tipos de punições, como não conseguir aumento salarial, progressão de carreira ou bolsas de pesquisa.
Professores foram demitidos por suas ideias, não por ações em sala de aula
Assim, entre os professores demitidos estavam comunistas de fato, ex-comunistas ou pessoas que já tinham participado de organizações ou movimentos de esquerda. Já um menor número de professores foi exposto publicamente sem nunca ter tido envolvimento com a esquerda.
Em ambos os casos – comunistas e não comunistas – “é importante enfatizar que esses professores universitários não foram demitidos por causa do seu trabalho. Muitos eram professores importantes, com boas relações com os alunos e ainda assim foram demitidos”, ressalta Purdy, da USP. Ellen Schrecker também diz que, em suas pesquisas, nunca encontrou um caso de professor demitido por alguma atitude em sala de aula.
Purdy cita o caso de Moses Finley, um dos maiores especialistas em história antiga, que havia lecionado em Columbia e na City College of New York. Acusado de ser comunista, Finley teve que depor em um comitê de investigação no Congresso. Lá, o professor se valeu da quinta emenda da constituição americana, que permite que não se responda a perguntas que possam ser usadas com fins incriminatórios.
A seguir, a universidade onde Finley estava trabalhando naquele momento declarou que seriam demitidos todos que não respondessem a perguntas dos comitês anti-comunistas. Foi o que aconteceu com o historiador. Então, Finley deixou os Estados Unidos e foi trabalhar na Universidade de Cambridge, uma das mais prestigiadas da Inglaterra.
Mas não foram todas as universidades que se colocaram contra professores taxados de comunistas. É o caso da Sarah Lawrence, escola de artes em Nova York, acusada de empregar professores subversivos e comunistas por um artigo de 1951 da revista American Legion, grupo patriótico americano. “As universidades têm que contratar professores vermelhos?”, questionava o título do artigo.
Diversos de seus professores foram chamados para depor no Congresso americano. A Sarah Lawrence, então, fez uma declaração pública em defesa da liberdade acadêmica. Ninguém foi demitido.
Era McCarthy acabou por esgotamento próprio
A Era McCarthy durou de 1946 a 1956. Nesse período, “o anti-comunismo do macartismo não só acabou com o Partido Comunista americano, acabou também com ideias da esquerda em geral no país”, diz Sean Purdy.
Já a partir de 1957, a Era McCarty começou a retroceder. “As pessoas começaram a perceber que, na verdade, não havia uma grande ameça comunista”, explica Schrecker.
Além disso, “a Era McCarthy ficou sem novas vítimas. Não havia mais novos líderes do partido comunista para perseguir, nem estrelas de Hollywood que pertenceram ao partido e que já não tivessem sido expostas. Então, o movimento não conseguiu mais fazer manchetes e foi perdendo força”, diz a historiadora.
A seguir, na década de 1960, os Estados Unidos são tomados por diversas mobilizações sociais. “De repente, houve um movimento social massivo, com demandas muito sérias. Então, foi possível ressuscitar a crítica à vida americana. Depois, ainda veio a Guerra do Vietnã, que gerou uma grande oposição”, recorda Schrecker.
Hoje, site de direita expõe professores considerados de esquerda
Recentemente, professores de esquerda – ou rotulados como de esquerda – voltaram a ser perseguidos nos Estados Unidos.
Em dezembro de 2016, foi lançado no país o site Professor Watchlist (lista de observação de professores, na tradução para o português), uma iniciativa para denunciar professores universitários acusados de “discriminar estudantes conservadores e promover propaganda de esquerda na sala de aula”.
A página no Facebook tem apenas cerca de 1,2 mil seguidores. É um projeto particular, sem apoio do Estado. Mesmo pequeno, tem assustado professores.
Já são mais de 200 nomes de professores cadastrados. Um deles é Jonathan L. Walton, professor de religião e sociedade em Harvard. Segundo o site, após um tiroteio em massa em Las Vegas, Walton teria culpado “nossa anxiedade cultural, masculinidade tóxica e intolerância racial, religiosa e ética por roubar a alma dessa nação”. Também teria dito que Trump era um “louco” que “incorpora os piores aspectos da doença cultural desse país”.
À BBC News Brasil, Walton disse: “eu prefiro ter me pronunciado e a História provar que eu estava errado, do que ter ficado calado e a história provar que eu estava certo”.
Outro nome de prestígio na lista é o professor de história Charles Strozier, diretor do Centro sobre Terrorismo da City University of New York. Para ele, o Professor Watchlist representa um novo macartismo. “É uma sombra que nos lembra daquele período de perseguição nos Estados Unidos”, afirma.
Se por um lado nem os estudantes conservadores de Strozier reclamam de suas aulas, conta ele, por outro, pessoas de fora da universidade começaram a escrever cartas para seu diretor pedindo que fosse demitido. “Eu sou um professor sênior, com quase meio século de profissão, tenho estabilidade no emprego, não vão tocar em mim. Mas e o professor em início de carreira? Esse clima (gerado pelo site Professor Watchlist) tornou os acadêmicos mais reservados, mais cautelosos, cuidadosos”, diz Strozier.
“O que é a universidade se você não pode explorar ideias? É claro que as pessoas não irão sempre concordar com você – e nem devem. Mas o ponto da liberdade acadêmica é poder pensar e debater novas ideias. Explorar, argumentar. A universidade é um mercado de ideias. Se você tentar esmagar isso, você está matando o pensamento intelectual”, acrescenta.
Também estão listados professores com ideias feministas, críticos à desigualdade racial ou favoráveis à Palestina. A BBC News Brasil tentou contato com os responsáveis pelo Professor Watchlist, mas não obteve resposta.
“Não faz sentido ter medo do comunismo hoje. Simplesmente, porque o comunismo não tem mais nenhum poder”, diz Schrecker. “Agora, movimentos de direita voltaram a enfrentar a esquerda. Mas, em vez de comunismo, os assuntos são gênero, religião, questões raciais. Não só nos Estados Unidos, mas também no Brasil”, completa a historiadora.