O que está por trás da investida contra a Lei da Igualdade Salarial?
O 1º de Maio das trabalhadoras chega com seus direitos no mundo do trabalho, adquiridos recentemente, sendo questionados. A Lei da Igualdade Salarial determina que empresas devem adotar medidas para garantir a equidade
por Julieta Palmeira
No mês de abril deste ano, entrou na pauta da Câmara dos Deputados um Projeto de Lei -PDL- que pretende revogar a portaria que regulamenta a Lei nº 14.611. A Lei estabelece a igualdade salarial e critérios remuneratórios entre mulheres e homens no ambiente de trabalho, modificando o artigo 461 da CLT, a primeira lei de iniciativa do Executivo no terceiro Governo Lula. O PDL é de autoria da deputada Adriana Ventura (Novo-SP) com explícito apoio de deputadas e de deputados da União Brasil e do PL. Outras iniciativas de questionamento da regulamentação foram tomadas, entre elas, está a Ação Direta de Inconstitucionalidade no âmbito do Supremo Tribunal Fedetal (STF)
No Brasil, as mulheres ganham 19,4% a menos que os homens , sendo que a diferença em cargos de dirigentes e gerentes, por exemplo, a diferença de remuneração chega a 25,2%.
No recorte por raça/cor, as mulheres negras são as que têm renda mais desigual. Enquanto a remuneração média da mulher negra é de R$ 3.040,89, correspondendo a 68% da média, a dos homens não-negros é de R$ 5.718,40 — 27,9% superior à média. Elas ganham somente 66,7% da remuneração das mulheres não negras. Esses dados são de 2023 do Relatório Nacional de Transparência Salarial e de Critérios Remuneratórios * , que se busca impedir de ser apresentado anualmente ao se questionar a regulamentação da Lei 14.611. Acresce-se a participação das mulheres em relação ao trabalho de cuidados: o número de horas trabalhadas pelas mulheres é quase o dobro dos homens. Ainda quando as mulheres são maioria em determinado setor de atividade, elas recebem menos, de acordo com o IBGE em dados de 2023**Nos serviços domésticos, as trabalhadoras representavam cerca de 91% e o salário é em torno de 20% menor do que o dos homens. No setor da educação, saúde e serviços sociais, as mulheres totalizam 75% e têm rendimentos médios em torno de 30% menores do que os recebidos pelos homens. Maioria da população, maioria do eleitorado, as brasileiras também são maioria das chefias de família no país, quase 51 %. Ao tempo em que cresce o número de lares chefiados por mulheres, se intensifica a necessidade de se superar a desigualdade de gênero no trabalho. De acordo ainda com o IBGE, no geral, a participação da renda feminina representa 37% da renda do trabalho na família. Diante da informação de que a renda do trabalho em média corresponde a 75,5% da renda familiar, podemos dimensionar a importância da renda feminina e da igualdade salarial entre homens e mulheres.
Durante a 2ª Reunião Técnica do Grupo de Trabalho sobre Emprego, do G20 Brasil, realizada em Brasília (DF) no dia 28 de março deste ano, as representações dos países da África do Sul, Austrália, Espanha, Canadá, e também do Brasil, relataram a luta dos seus países para acabar com a desigualdade salarial entre homens e mulheres Uma demonstração da relevância da temática.
Mas o que está por trás do questionamento da igualdade salarial?
Em primeiro lugar, uma visão medíocre e retrógrada de determinados setores empresariais que esbarra no que está acontecendo no mundo aonde as empresas buscam se adequar às iniciativas voltadas para o desenvolvimento com sustentabilidade e essa iniciativa não tem impedido o crescimento dos seus negócios. Sempre é bom lembrar que o compromisso 5 dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável – ODS definidos pela ONU é a igualdade de gênero e que pelo menos mais quatro dos ODS dialogam com a igualdade de gênero. Mas para quem não considera os ODS ou acha que não vamos alcançá-los, o que dizer do estabelecimento de critérios para importação de produtos de empresas com base nesses compromissos? Cito a taxonomia da União Europeia e outras regulamentações de países definindo critérios, incluindo o de sustentabilidade, para transações comerciais.
A Lei da Igualdade Salarial não se aplica às empresas menores. A Lei e sua regulamentação diz que as empresas com mais de 100 empregados devem adotar medidas para garantir a igualdade salarial, incluindo transparência salarial, fiscalização contra discriminação, canais de denúncia, programas de diversidade e inclusão, e apoio à capacitação de mulheres. Está registrado que em torno de 38% das empresas que enviaram os dados de 2023 ao Ministério do Trabalho e Emprego – MTE declaram que adotam políticas para promoção de mulheres a cargos de direção e gerência com impacto óbvio na igualdade salarial no contexto da Lei. O questionamento da regulamentação que, de fato, monitora a aplicação da Lei da Igualdade Salarial ao definir que as empresas devem encaminhar relatório anual ao MTE, resulta em obstáculos para aplicação dessa legislação. É preciso cumprir a lei !
Um outro aspecto que está por trás da investida contra a Lei da Igualdade Salarial tem a ver com os estereótipos sobre o papel social destinado às mulheres em nossa sociedade. Esses papéis são reproduzidos numa sociedade patriarcal com base em normas sociais, religiosas e culturais. O homem é constantemente apresentado como “provedor”. Já a mulher, como “cuidadora” e “do lar”. E esses papéis tem sido apresentados como imutáveis. Esse estereótipo de certa forma ganha força no momento atual brasileiro, ao lado da pauta de costumes que reproduz a desigualdade de gênero, principalmente vinculados a determinados setores religiosos. Mas não somente. Basta conferir quais partidos estão à frente da investida contra a Lei da Igualdade Salarial pra constatar que tem a ver com o acenso, e não me refiro aos conservadores no geral, mas das forças políticas conservadoras de direita e de ultradireita nos últimos tempos em nossa sociedade
Mas o impacto da inserção das mulheres no mundo do trabalho, da presença de mulheres chefas de família é irreversível e aponta para a igualdade salarial e remuneratória e para a autonomia econômica das mulheres. Uma conquista das mulheres e da sociedade. Um avanço civilizatório
*1° Relatório Nacional de Transparência Salarial e de Critérios Remuneratórios – 2023 – Ministério do Trabalho e Emprego e Ministério da Mulher
*Estatísticas de Gênero: Indicadores Sociais das Mulheres no Brasil, estudo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) 2023
Julieta Palmeira, médica e feminista , assessora da FInep/MCTI