Por que as instituições importam para pensar a preparação para as emergências sanitárias?
Por Lorena Barberia, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP
As “instituições” são frequentemente implicadas em muitos dos problemas de governança, pobreza, doença e subdesenvolvimento. Os estudiosos da ciência política e das políticas públicas há muito enfatizam a importância de entender o papel das instituições. Para os cientistas sociais, as “organizações” podem nem sempre ser instituições. Sendo assim, as instituições podem ser compreendidas como instituições sociais de ampla abrangência como a lei, o mercado, a política, e a cobertura universal de saúde. Neste momento que passamos de três anos desde que a Organização Mundial da Saúde declarou a pandemia de covid-19, é impossível não pensar em como as instituições falharam no enfrentamento da emergência sanitária em diferentes momentos e países, inclusive no momento atual.
Muitas vezes ouvimos falar que falhamos inicialmente no controle da pandemia porque o sistema de vigilância em saúde falhou. O argumento que comumente ouvimos é que, quando o mundo percebeu o surto de sars-cov-2, já era muito tarde, e o vírus estava presente em vários países. Numa analogia de Bill Gates, os bombeiros não chegaram a tempo. Hoje, há um consenso amplo da importância de vacinas e medicamentos para o enfrentamento da covid-19, mas há pouco reconhecimento da importância central do diagnóstico – o primeiro e crítico passo na identificação do agente para o tratamento adequado. As regras, a alocação de recursos e as práticas sistemáticas dos últimos três anos no Brasil têm contribuído para a ausência da compreensão da vigilância como uma parte essencial do enfrentamento à pandemia. Vale a pena uma análise institucional da vigilância entre diferentes países no contexto da pandemia da covid-19. Esta análise ajuda muito para pensarmos de uma forma diferenciada os desafios relacionados a como criar sistemas de alerta para emergências sanitárias.
Para realizar este tipo de análise, precisamos compreender que para os cientistas sociais as instituições são definidas como o conjunto de regras (formais e informais), enquanto as organizações podem ser compreendidas como atores jogando através das regras já criadas. Por isso, além de entender a arquitetura jurídica que estabelece as organizações e os marcos que caracterizam as mudanças em seus objetivos, poderes e recursos, torna-se importante para as análises institucionais olhar as práticas repetidas que ao longo do tempo vão consolidando certas normas e certos valores. É fundamental entender as normas e os valores que tornam aceitáveis certos procedimentos e funcionam como regras informais para definir o comportamento dos indivíduos.
Neste sentido, a vigilância em saúde se entende como o conjunto de regras (formais e informais) que influenciam as ações, decisões e relações de indivíduos e organizações, e, como eles, por sua vez, fazem, mudam, monitoram e fazem cumprir as regras. Há uma multiplicidade de atores e organizações que produziram estas regras, além da Organização Mundial da Saúde e do Ministério da Saúde. Dentro desta perspectiva, as instituições estão em constante mudança, sofrem pressões que alteram sua capacidade interna e sua capacidade de influenciar o ambiente. Isso tem sido visto claramente na área de vigilância epidemiológica ao longo da pandemia. Os governos e as organizações mudaram e continuam mudando, muitas vezes, os critérios que definem uma pessoa como um caso confirmado de infecção por sars-cov-2 e as medidas necessárias para evitar a transmissão para outras pessoas.
Tomando o Ministério de Saúde do Brasil como exemplo, desde o início de 2020, as definições de casos suspeitos foram mudando e continuam mudando. Inicialmente, basearam-se na ocorrência de febre e pelo menos um sinal ou sintoma respiratório, com histórico de viagem internacional do indivíduo para áreas com transmissão local ou contato com caso de viajante confirmado. O método de diagnóstico da covid-19 priorizado foi o exame RT-PCR, mas, com os insumos e capacidade limitada, o Ministério também passou a reconhecer casos de pessoas com teste sorológico positivo, um critério que somente foi eliminado como confirmatório no sistema oficial de notificação em abril de 2021 para pessoas vacinadas e em janeiro de 2022 para pessoas não vacinadas. As regras informais nas empresas, nas escolas, nos municípios e nos Estados também foram muito importantes em determinar se uma pessoa com sintomas leves ou assintomáticos deveria ser testada e com qual teste. E, finalmente, a vigilância em saúde também sofreu mudanças significativas desde que a Anvisa liberou os autotestes para sars-cov-2 em janeiro de 2022. Ao liberar a venda em farmácias privadas de testes de antígeno individuais, a Anvisa determinou que, mesmo após um resultado positivo no autoteste de antígeno para covid-19, as pessoas deveriam comparecer aos postos de saúde para realizar novos testes, pois somente profissionais de saúde podem confirmar diagnósticos de sars-cov-2; ademais, o Ministério da Saúde jamais implementou um sistema de notificação eletrônico para facilitar o registro de quem está doente e já isolado em casa após a realização de um autoteste. Ao contrário, até hoje, a política vigente é que estas pessoas devem sair de casa para serem confirmadas com profissionais de saúde.
Dentro da perspectiva de quem estuda as instituições, há uma compreensão de que o contexto institucional é determinante para compreender o comportamento dos indivíduos. Em termos metodológicos, não há como estudar o comportamento dos indivíduos sem entender as instituições que limitam como estes podem agir. Dito de outra forma, as instituições orientam o comportamento. Do ponto de vista de quem estuda as instituições, há um desafio em compreender se os indivíduos agem de certa forma por consequência de se identificarem com uma instituição, ou se as preferências do indivíduo prevalecem como determinantes para que os indivíduos ajam como atores racionais com autonomia das instituições. Além disso, os indivíduos podem pertencer a diferentes instituições, e as normas e os valores destas diferentes instituições podem estar em conflito.
Sabemos e decidimos, como sociedade, conviver com a subnotificação da covid-19, além da convivência com um número desconhecido de pessoas infectadas transitando sem acesso ao diagnóstico. Há vários problemas que resultam dessa situação. Com frequência, as pesquisas de opinião pública confirmam que as pessoas sintomáticas ou com contato com outros indivíduos com casos confirmados não se testam. Algumas destas pessoas não procuram ser testadas porque entendem que o sars-cov-2 não causa mais formas graves da doença, dado que estas pessoas estão vacinadas. Outras pessoas afirmam não procurar ser testadas porque os testes não são mais aceitos por empregadores para justificar ausências. E existe uma parcela importante de indivíduos a quem foi negado o direito a um diagnóstico e continuam sem ter acesso ao teste. Para algumas destas pessoas, há sintomas que sugerem que tenham desenvolvido covid longa. A covid é parte de uma questão maior sobre vigilância. Imagine tratar o HIV sem um diagnóstico laboratorial ou controlar o diabetes sem acesso a exames laboratoriais. Isso é o que em muitos casos pedimos aos pacientes hoje em dia que são infectados pelo sars-cov-2, e outras doenças. As mudanças institucionais que houve na vigilância epidemiológica da covid-19 são parte também da limitação no diagnóstico laboratorial da doença.
Temos evidências fortes reforçando o que já sabíamos antes da pandemia. A resposta à pandemia da covid-19 vai além do que está decretado ou consolidado em normas, e vai além do que as organizações declaram com seus programas vigentes. Entre todas as áreas, a vigilância em saúde foi muito negligenciada durante os últimos três anos e isso gera consequências importantes para o desafio atual e os futuros.
O enfrentamento de emergências sanitárias em saúde pública depende de ter equipes e sistemas preparados em todos os níveis, organizados num sistema coerente de vigilância em saúde, que começa com a vigilância laboratorial e hospitalar. Ainda, existem também métodos ativos de vigilância ambiental, inclusive de animais silvestres, vigilância sindrômica, sentinela, que também são importantes e precisam ser integrados aos indicadores de risco que utilizamos para comunicar risco à população. Há uma urgência de repensar a vigilância em saúde, e como se materializa o direito e a necessidade de melhoria no acesso aos testes diagnósticos se queremos ter a esperança de enfrentar esta e as próximas pandemias de forma diferenciada.
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