Sinpro/RS: O que o Brasil pode aprender com países latinos que enquadraram seus militares
Às vésperas da posse de Luiz Inácio Lula da Silva, Extra Classe ouviu analistas para entender como nossos vizinhos latinos conseguiram restringir a atuação de militares no governo
Desde a redemocratização, o Brasil tem dificuldades para subordinar o poder militar ao civil, ainda mais na gestão Bolsonaro. Às vésperas da posse de Luiz Inácio Lula da Silva, Extra Classe ouviu analistas para entender como nossos vizinhos latinos conseguiram restringir a atuação de militares no governo.
A caserna brasileira virou piada faz um tempo. Conhecidos como exímios pintadores de meio-fio, os militares têm dificuldade em compreender seu papel em um país democrático e acumulam privilégios exorbitantes. A falta de limites mais rígidos sobre qual é sua função institucional abriu caminho para uma atuação que ultrapassa a esfera da segurança nacional, prestando-se até a fiscais do processo eleitoral. O governo eleito do presidente Luiz Inácio Lula da Silva terá, mais uma vez, a chance de conduzir uma verdadeira reforma das instituições militares, mas há dúvidas se isso irá prosperar.
“Em termos de autonomia das Forças Armadas, o Brasil tem mais problemas do que os vizinhos. Não houve uma justiça de transição que apurasse os crimes da ditadura. Pelo contrário: houve uma lei ampla de anistia, e isso cobra um preço até hoje”, resume o pesquisador Juliano Cortinhas, professor de Relações Internacionais na Universidade de Brasília (UnB).
Além de não restringir o poder de atuação das Forças Armadas, a volta da democracia também a deixou mais ambígua. “Alguns analistas cunharam o termo ‘partido militar’, porque eles continuaram se comportando como um partido político, com agendas próprias”, aponta Cortinhas. Houve, também, a manutenção de uma série de regalias e benefícios para quem seguisse a carreira militar: pensões para filhas solteiras e viúvas, bons planos de saúde e hospitais exclusivos, regras de previdência e aposentadoria diferenciadas, acesso a escolas de elite para os filhos, e uma Justiça Militar cuja existência nunca foi devidamente justificada.
Todo esse caldo – somado à penetração das polícias militares na vida cotidiana – faz com que as Forças Armadas estejam muito presentes no dia a dia da população. O governo de Jair Bolsonaro, tomado aos montes por militares em cargos-chave, não seria possível sem essa naturalização dos fardados na vida pública. Isso também explica as dezenas de atos golpistas que pedem intervenção militar nas rodovias e em frente aos quartéis – e já escalam para o terrorismo doméstico.
A situação do Brasil contrasta com a de outras nações latino-americanas, onde os militares têm um escopo reduzido e não podem opinar sobre questões políticas. Mesmo em contextos muito diversos, países como Argentina, Uruguai, Chile, Colômbia e Costa Rica enquadraram (ou até extinguiram) suas Forças Armadas. Alguns, inclusive, condenaram ex-ditadores e carrascos das ditaduras militares, ao contrário dos brasileiros.
Condenações históricas de militares na Argentina e no Uruguai
Ditadura militar é um tema que não morre na memória dos argentinos. Seja no campo da arte, com o recém-lançado Argentina, 1985 – filme estrelado por Ricardo Darín no papel do procurador que ajudou a condenar ditadores –, seja pelas vezes que uma integrante das Mães da Praça de Maio é lembrada por sua biografia.
No país hermano, as Forças Armadas deram o último golpe em março de 1976, sob o pretexto de combater uma guerra civil contra os grupos guerrilheiros. “É importante frisar, contudo, que não foi um golpe feito no calor dos acontecimentos, mas algo meticulosamente planejado desde a segunda metade de 1975”, explica Matheus Pereira Oliveira, professor de Relações Internacionais na PUC-SP e Universidade de Ribeirão Preto/SP (Unaerp).
O golpe de 1976, explica Oliveira, tinha como objetivo fazer uma reestruturação profunda da economia política do país, de modo a construir uma nova ordem social, política e econômica na Argentina. “Tratava-se de eliminar, de modo definitivo, toda e qualquer resistência ao projeto encampado pelos militares, que misturava a adesão ao modelo neoliberal com uma desorganização e silenciamento dos movimentos sindicais, que, historicamente, são poderosíssimos no país”, descreve o especialista e pesquisador do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional.
Mas a oposição, mesmo violentamente reprimida, nunca deixou de pressionar pelo fim do regime, no início dos anos 1980. Movimentos como o das Mães da Praça de Maio, que exigiam a volta de filhos e netos desaparecidos, são emblemas disso. “É um trabalho de militância constante das associações de familiares dos desaparecidos. O dia 24 de março é feriado na Argentina como forma de lembrar dos horrores da ditadura. No Brasil, o 31 de março tem comemorações das Forças Armadas”, compara Marina Vitelli, professora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e coordenadora adjunta do Observatório Brasileiro de Defesa e Forças Armadas da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Em 1985, houve uma tentativa de punir os agentes da ditadura argentina. Porém, para acalmar os ânimos militares, o então presidente civil, Raul Alfonsín, decretou as “leis do perdão”, as quais limitaram significativamente o alcance dos julgamentos. Essas leis só seriam anuladas quase duas décadas depois, por iniciativa do governo Néstor Kirchner (2003-2007), abrindo espaço para o julgamento e prisão de vários militares, inclusive os ex-presidentes Jorge Rafael Videla e Reynaldo Bignone. Em 2005, a Suprema Corte confirmou o decreto kirchnerista e declarou a inconstitucionalidade das leis do perdão.
Todas essas lutas resultaram na extirpação dos fardados das atividades políticas. “Esse processo de memória, verdade e justiça está completamente ligado à ausência dos militares argentinos na política hoje”, explica Vitelli. “Tanto o peronismo (de esquerda) quanto a União Cívica Radical (de direita) chegaram a um pacto democrático, entenderam que as diferenças não poderiam fazê-los buscar aliados nas Forças Armadas. Ninguém bate na porta dos quartéis para tirar proveito dos conflitos políticos”, observa a pesquisadora.
O caso do Uruguai é parecido: há consenso à esquerda e à direita sobre a subordinação militar ao poder civil e uma extensa lista de processos e prisões. Já o Chile realizou uma Comissão da Verdade imediatamente após o final da ditadura e, logo nos anos 1990, começou a se movimentar para condenar militares – houve várias condenações, que seguiram até tempos recentes. Ainda assim, foi um processo cheio de regalias (construíram uma prisão especial para oficiais presos) e não alcançaram o maior líder, Augusto Pinochet, que chegou a ser processado, mas principalmente por ações internacionais. Resta ao Chile também fazer o rechazo da Constituição da era Pinochet.
Colômbia: militarizada, mas sem golpistas
Os colombianos têm as Forças Armadas mais bem equipadas do continente. E não é à toa: ao contrário do Brasil, os vizinhos, de fato, ficaram mais de 50 anos em guerra – e ainda enfrentam alguns resquícios desse conflito.
Os militares combatem grupos armados na selva, participam de ações de segurança em centros urbanos e, também, têm um grave histórico de abusos: o mais notório é o caso dos “falsos positivos”, o assassinato de pelo menos 6.402 civis dados como baixa de guerra pelo Exército durante 2002 e 2008, no governo de Álvaro Uribe Vélez. No entanto, como na Argentina e no Uruguai, os crimes não ficaram impunes: até hoje eles respondem na Justiça pelos crimes cometidos.
A participação política também é completamente tolhida para quem estiver fardado. “Os que estão na ativa não têm o direito de votar desde 1932 e se consideram institucionalmente como um órgão politicamente não deliberativo”, apontam Eduardo Pastrana Buelvas e Diego Vera no livro récem-lançado Relações cívico-militares na região sul-americana, com pesquisas sobre Brasil, Bolívia, Chile, Colômbia, Equador e Peru.
“A Colômbia é um excelente exemplo do que pode ser feito. Tem uma classe política muito militarista, mas que sempre exerceu bastante controle sobre os militares. Já o Brasil tem uma sociedade militarista e com pouco controle dos militares”, compara Marina Vitelli. Na eleição deste ano, uma declaração do general Eduardo Zapateiro contra o então candidato Gustavo Petro causou furor no país, justamente pelo impedimento de se envolver em assuntos políticos. Logo depois de assumir a Presidência, Petro não titubeou em varrer a cúpula militar e policial, para mostrar mais uma vez que o poder civil está no comando.
Costa Rica: país sem FFAA
Há um país na América Latina que nem precisa se preocupar com a interferência dos militares, porque lá as Forças Armadas foram abolidas: é o caso da Costa Rica, que, desde 1948, vive muito bem e obrigado sem eles. Essa mudança permitiu remanejar mais verbas para serviços de saúde e educação, cuja cobertura foi triplicada desde então. O país é o mais próspero da América Central e o único daquela região a fazer parte da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
Um cenário assim parece distante no maior país da América Latina, mas não porque haja uma verdadeira necessidade das instituições militares. “Se o Brasil entende que não tem chance de entrar em guerra, tem que acabar com as Forças Armadas. Eu não vejo um cenário de invasão, não vejo a menor possibilidade disso ocorrer”, defende Juliano Cortinhas.
Os analistas consultados pela reportagem consideram que a hipótese de acabar com os militares brasileiros não deve ter futuro, porém há outras possibilidades para limitar as Forças Armadas. “Elas deveriam ser muito menores e mais bem equipadas. Elas precisam de condições para operar com alta tecnologia, para combater invasões hackers, por exemplo. Hoje em dia não há capacidade para isso”, observa o professor da UnB.