Sinpro/RS: Uma breve história do acesso ao voto no Brasil
Nem sempre a totalidade dos brasileiros teve o direito de escolher seus representantes. Os mais pobres, mulheres, negros, indígenas e adolescentes só conquistaram esse direito com muita luta
A nota alta que o Brasil recebeu no quesito processo eleitoral e pluralismo no último Índice de Democracia, organizado pela revista inglesa The Economist, coloca o país na 47ª posição com a nota 9. O ranking criado pela tradicional publicação econômica para aferir o estado democrático em 167 nações é rigoroso. Se o Brasil está no grupo Democracias Falhas, ao seu lado também seguem França, Israel, Chile, Espanha, Estados Unidos, Portugal e Itália. Por outro lado, a história do acesso ao voto no Brasil não é de envergonhar ninguém.
É esse olhar internacional – avalizador da história do processo eleitoral e do pluralismo brasileiro – que acompanhará atento os cerca de 150 milhões de brasileiros que irão às urnas no dia 2 de outubro.
A nota que beirou o máximo da The Economist tem sua história. Um enredo que começa 32 anos após a chegada dos portugueses e que passa por ciclos de menor e maior participação. Do voto falado à exclusão e reinserção dos analfabetos; da conquista do voto feminino, dos negros e indígenas até o voto dos adolescentes de 16 e 17 anos; do sufrágio impresso até a chegada das atuais urnas eletrônicas.
Jairo Nicolau, especialista em sistemas eleitorais e professor do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getúlio Vargas (FGV), entende que o país fez uma trilha própria para a democracia que não envergonha ninguém. “Achar que o que aconteceu aqui não aconteceu em outro lugar do mundo não é correto. Nós seguimos o nosso caminho”, diz.
Autor dos livros História do Voto no Brasil e Eleições no Brasil: Do Império aos dias atuais (Zahar), Nicolau diz que o voto do brasileiro tem uma “história magnífica do ponto de vista da duração”.
Segundo ele, obviamente, houve tempos mais oligárquicos, fechados. Mas, levando em conta o que considera marco de regularidade, “se não são períodos plenamente democráticos, são, de fato, duzentos anos de eleições”.
Na escola, continua o professor, “se aprende, por exemplo, o primeiro reinado, a regência, o segundo reinado; mas, não que durante todo esse período deputados nacionais eram escolhidos em todo o território para representar o que, na época, eram chamadas de províncias”.
Para Nicolau, uma história riquíssima que só foi interrompida no Estado Novo de Getulio Vargas. “Foi o único momento que formalmente se suspende qualquer tipo de eleição.”
Na ditadura estabelecida com o golpe de 1964, Nicolau fala que o país teve eleições de “pé quebrado”, manipuladas. Por outro viés, aponta algo que considera singular: um regime que dissolve partidos, mas estabelece dois para continuar em eleições regulares, exceto em locais considerados de segurança nacional.
Ao cabo, Nicolau é categórico: o Brasil não fica atrás de países como Estados Unidos, Inglaterra e Alemanha. “Neles, você também vai ver percalços. Não há um processo linear. A Alemanha teve uma experiência que foi além do autoritarismo, não é?”, indaga.
Sobre sistemas eleitorais, ele considera o brasileiro mais eficiente e mais democrático que o dos Estados Unidos, por exemplo.
“Nossa eleição é direta; cada eleitor conta como um voto. Lá, nós tivemos o Al Gore e a Hillary Clinton que ganharam no voto popular, mas não acabaram presidentes porque o que conta é o dos delegados eleitos para a escolha. Prefiro o nosso. Ainda tem dois turnos e usa modelo de representação proporcional para eleger parlamentares.”
20% não acreditam em urnas eletrônicas
O processo eleitoral, que é atestado pelos especialistas do Índice de Democracia do The Economist, tem sofrido forte ataque do presidente da República e candidato à reeleição, Jair Bolsonaro (PL-RJ).
Suas lives sugerem que o voto via urna eletrônica possibilita fraudes e que ele mesmo só não teria ganho o último pleito no primeiro turno por causa disso. No entanto, Bolsonaro não apresenta provas do que diz.
Para a professora da Columbia Women’s Leadership Network no Brasil, Débora Thomé, Bolsonaro “se posiciona como um candidato antipolítico, apesar de ser o mais imbricado possível com a política. Ele tem uma agenda de desacreditar o sistema. Ele está falando o tempo todo ‘o sistema não presta’. Faz isso para movimentar a sua base”, diz.
Jairo Nicolau vê o que era antes motivo de grande orgulho virar um pesadelo para alguns. “Hoje temos 20% da população que não acredita (nas urnas). Do nada! Com fake news, sem nenhuma prova. Isso é terrível. Um trabalho incansável do presidente em minar a confiança da população.”
Ele afirma que o modelo brasileiro foi copiado por vários países e vê um argumento “patético” na boca de Bolsonaro. “Que fraude é essa que não o tirou do poder? Se é para fraudar, ganha! Não se frauda pela metade. É um argumento torto”, fala indignado.
O paradoxo da exclusão
Durante o período colonial, havia o voto conhecido como cochichado. Segundo ordens reais, uma pessoa ouvia e registrava a intenção do eleitor não letrado. Ao começar a fase do Brasil Império, o analfabeto já estava votando havia muito tempo. Isso perdurou 59 anos nos reinados de Dom Pedro I e Dom Pedro II, incluindo o período da regência.
Em 9 de janeiro de 1881, os analfabetos perdem seu direito de voto e de participar da vida política do país. O Decreto nº 3.029 (Lei Saraiva) acata a ideia do então Deputado Geral pela Bahia Rui Barbosa e estabelece o “censo literário”. Exige-se saber ler e escrever para votar.
A mesma lei também criou o título de eleitor e adotou eleições diretas para todos os cargos eletivos do Império. O voto somente para os cidadãos com renda de 100 mil-réis, o censitário, foi mantido. Essa movimentação se dá quase oito anos antes da instituição da República que, logo depois de ser instaurada, manteve a proibição para os analfabetos.
Três dias após a queda da monarquia, o sexto decreto do governo provisório reafirma a exclusão com a assinatura de todo o gabinete do Marechal Deodoro da Fonseca. Lá estava Rui Barbosa. Desta vez, como Ministro da Fazenda.
Na história do Brasil, mulheres, negros, pobres e analfabetos ficaram muito tempo sem votar. Para os negros, conforme a Série Inclusão, publicada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), nunca houve proibição formal, mas velada.
Na época da escravidão, como os negros eram considerados propriedades, não tinham direito por não ter cidadania. Depois, o impedimento veio por conta da proibição do voto para os analfabetos.
Pequena representação popular
A não participação dos analfabetos ainda foi grafada na primeira Constituição da República, em 1891. Apesar da mesma carta abolir o critério censitário para os pleitos nacionais, a soma contada a partir da Lei Saraiva deixou uma parcela significativa da população brasileira sem votar por 104 anos. Isso, destaca Nicolau, foi uma marca que trouxe consequências gravíssimas para a representação política no país.
“A gente não está falando de um grupo pequeno. Há duas, três décadas, a gente fala de 25% da população. Representava ¼ da população, quase a metade em estados como Piauí e Alagoas. É um fenômeno que proibiu todo um segmento de entrar no processo político. Qual estímulo que uma elite tem de fazer políticas para os mais pobres se eles não são eleitores?”, questiona.
A situação de não acesso às urnas aos não alfabetizados persistiu até maio de 1985. O Congresso Nacional aprovou uma das primeiras emendas constitucionais democratizantes após a ditadura militar.
Assim, em plena República, os não letrados só tiveram o direito de votar em novembro de 1985. Foi a primeira eleição após o golpe de 1964. No fim da restrição do período de exceção, foram eleitos prefeitos de capitais, estâncias hidrominerais e cidades em área de segurança nacional.
Metade da população passa a fazer parte
Mesmo com o voto sendo facultativo para analfabetos, “metade da população foi incorporada no processo. Isso é algo de grande impacto”, afirma o sociólogo Alberto Carlos Almeida. “Já na primeira eleição direta após a ditadura, chegamos com níveis onde a menor participação foi de 49%”, comemora.
Analista político, consultor de empresas e autor de best-sellers como A Cabeça do Brasileiro e A Cabeça do Eleitor (Record), Almeida entende que essa inclusão marca o terceiro momento do que considera ciclos do voto no Brasil República, o da primeira eleição após o regime militar.
No primeiro – República Velha –, tinha um eleitorado de 5% da população. O segundo passa para 15%, em especial no período que vai de 1946 a 1964, pós-revolução de 1930 de Vargas e o Estado Novo.
Ao lado do geógrafo Tiago Garrido, o consultor lançou em maio A mão e a luva: O que elege um presidente (Record).
Para Débora Thomé, “é digno se pensar como a democracia brasileira passa algum tempo incompleta, com a não participação ainda de vários grupos que estavam alijados de algo tão simples na participação democrática, que é o voto”.
Ao lembrar que o país foi a segunda nação que contemplou a possibilidade do voto feminino na América Latina, em 1932 (o Equador garantiu esse direito em 1929), Débora aponta na história a integração tardia ao processo eleitoral das mais variadas camadas sociais brasileiras.
“Imagina que foram necessários mais de 30 anos, quase quatro décadas para que a mulher pudesse votar, mesmo o Brasil já sendo uma República. Interessante ver como um fato como esse leva tempo para acontecer e, depois, mais tempo para que os analfabetos também possam votar. Você tem um déficit de vários grupos que não foram integrados em seu mínimo, que é escolher os seus representantes”, reflete.
Sufragistas conquistam o direito ao voto feminino
Débora é autora do livro infantojuvenil 50 Brasileiras incríveis para conhecer antes de crescer (Galera Record). Nas páginas com a biografia de grandes personalidades, ela destaca a luta de Leonilda Daltro e Bertha Lutz, que, ao lado de outras “sufragistas” entre os anos 1910 e 1930, mobilizaram fortemente a sociedade na busca do direito ao voto feminino.
Por meio de um decreto do Código Eleitoral de 1932, Vargas estabelece o voto facultativo para as mulheres no Brasil. A Constituição de 1934 ratifica o direito.
Não que a “briga” não tivesse começado antes. “Na época da Proclamação da República houve muita discussão. Na primeira Constituinte, era algo que já se falava, mas não foi contemplado”, esclarece. Antes mesmo, houve o caso da gaúcha Isabel de Souza Mattos. Dentista – “com título científico” – ela se aproveitou da brecha na Lei Saraiva para exigir e obter seu registro de eleitora. Era 1887, no Império. Ganhou, mas não levou. Foi barrada de votar em 1890 por um presidente de mesa, na República.
Precedendo o decreto de Vargas, as potiguares conseguiram sua inclusão em 1927. A lei estadual nº 660 vigorou apenas no Rio Grande do Norte, porém foi o suficiente para eleger a primeira prefeita no Brasil. Em 1928, Alzira Soriano recebeu 60% dos votos para chefiar o executivo de Lages.
O voto feminino somente é equiparado ao dos homens, tornado obrigatório em 1965.
Adolescentes ganham voto no grito
Conforme a Constituição Federal de 1988, os adolescentes maiores de 16 anos e menores de 18 têm o direito facultativo ao voto. Isso não veio de mão beijada. Ápice de várias discussões, há 34 anos, em 2 de março, centenas de jovens entoaram “Chegou a nossa vez, votos aos 16” nas galerias do Congresso Nacional.
O movimento, que teve origem nos estudantes secundaristas que participaram nas lutas contra a ditadura nos anos 1980, teve amplo apoio entre os constituintes. Foram 355 votos favoráveis contra 98 contrários e 38 abstenções.
Indígenas em busca de representação
A Constituição do Brasil estabelece proteção especial à cultura indígena. Para impedir imposições de regras estranhas à sua cultura e sociedade, é entendido que uma decisão coletiva dos aldeados prevalece sobre a obrigatoriedade da lei eleitoral brasileira.
Assim, em tese, caso esses povos originários entenderem conjuntamente que o voto não lhes interessa, não estarão sujeitos a penalidades.
O contrário é que está acontecendo. Cada vez mais indígenas mostram interesse e buscam participar das eleições em todo o território nacional.
No entanto, a legislação não permite o alistamento eleitoral para aqueles que não saibam falar português.
De acordo com o TSE, em 2018, houve um crescimento de 56,47% de candidatos que se declararam índios ou descendentes ao realizarem o pedido de registro de candidatura. Foram 133 concorrentes ao pleito, contra 85 nas Eleições Gerais de 2014.
“Nós hoje somos cerca de um milhão de pessoas que fazem parte de mais de 305 povos distintos, que falam mais de 180 línguas. E, apesar de termos sido criminosamente reduzidos em números, nós representamos uma enorme diversidade social e cultural que detém conhecimentos tradicionais, saberes e ancestrais. Nossos conhecimentos tradicionais asseguraram toda proteção aos territórios indígenas, que hoje são 13% do território nacional”, declarou Joenia Wapichana ao tomar posse na Câmara dos Deputados.
O primeiro indígena a ocupar uma cadeira no parlamento brasileiro foi o cacique xavante Mário Juruna, eleito em 1982 pelo PDT do Rio de Janeiro, com 31 mil votos.
Mulheres são maioria do eleitorado
Segundo as últimas Estatísticas do eleitorado – por sexo e faixa etária divulgadas em maio pelo Tribunal Superior Eleitoral, o total de eleitores no Brasil é de 152.303.709 milhões. As mulheres representam 52,83%, 80.468.657. Os homens são 47,15%, 71.804.110, sendo que 30.942 não informaram gênero (0,02%) Entre os que têm o voto facultativo, estão aptos 1.008.797 de jovens de 16 anos. Destes, 556.609 são mulheres, 55,18%, e 452.188 são homens, 44,82%. Na faixa etária dos 17 anos, estão 1.522.078 de eleitores. São 808.036 mulheres, 53,09%, e 714.042 homens, 46,91%. Também com o voto facultativo, idosos de 70 a 79 anos totalizam 8.999.058 de eleitores. Mulheres são 55,50%, 4.994.335 e homens, 44,42%, 3.997.723. Eleitores acima dos 79 anos somam 4.051.071. Mulheres são 57,57%, 2.332.401 e homens, 42,20%, 1.709.606.