Sobre o pagamento em dobro de férias quando remuneração não é antecipada
STF declarou inconstitucional Súmula 450 do TST, que garantia o direito. Pleitos dessa natureza, no entanto, devem continuar sendo levados à apreciação e deliberação da Justiça do Trabalho
Por José Geraldo de Santana Oliveira*
Infelizmente, já se tornou corriqueiro — no sentido de frequente e desgracioso —, nos últimos 7 anos pelo menos, o STF (Supremo Tribunal Federal) reduzir e/ou esvaziar direitos fundamentais sociais, levados à sua apreciação e deliberação. Raras são as vezes que um direito trabalhista passa por seu crivo sem dele sair completamente vazio ou envolto em mortalha. Os dedos das mãos não são suficientes para contar os que saíram em uma dessas condições, a partir de 2015, quando se abriram largos para a prevalência do negociado in pejus (em prejuízo) sobre o legislado, no julgamento do RE (recurso extraordinário) 590415.
A última decisão lesiva aos direitos trabalhistas, tomada ao dia 5 de agosto corrente, com o encerramento do julgamento virtual da ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceitos Fundamentais) 501, foi a declaração de inconstitucionalidade da Súmula 450 do TST, que determina o pagamento em dobro das férias quando sua remuneração não é antecipada, nos termos do Art. 145 da CLT, até dois dias antes de seu início.
Eis o que diz a Súmula em questão:
“Súmula nº 450 do TST
FÉRIAS. GOZO NA ÉPOCA PRÓPRIA. PAGAMENTO FORA DO PRAZO. DOBRA DEVIDA. ARTS. 137 E 145 DA CLT. (conversão da Orientação Jurisprudencial nº 386 da SBDI-1) – Res. 194/2014, DEJT divulgado em 21, 22 e 23.05.2014
É devido o pagamento em dobro da remuneração de férias, incluído o terço constitucional, com base no art. 137 da CLT, quando, ainda que gozadas na época própria, o empregador tenha descumprido o prazo previsto no art. 145 do mesmo diploma legal”.
A famigerada decisão, que obriga a todos, ficou assim ementada:
“Decisão: O Tribunal, por maioria, julgou procedente a arguição de descumprimento de preceito fundamental para: (a) declarar a inconstitucionalidade da Súmula 450 do Tribunal Superior do Trabalho; e (b) invalidar decisões judiciais não transitadas em julgado que, amparadas no texto sumular, tenham aplicado a sanção de pagamento em dobro com base no art. 137 da CLT. Tudo nos termos do voto do Relator, vencidos os Ministros Edson Fachin, Cármen Lúcia, Rosa Weber e Ricardo Lewandowski. Falou, pelo requerente, o Dr. Fernando Filgueiras, Procurador do Estado de Santa Catarina. Plenário, Sessão Virtual de 1.7.2022 a 5.8.2022”.
A partir dessa decisão, que, além de se aplicar a todos os processos ajuizados a partir de sua publicação, dia 8 de agosto corrente, alcança também os que ainda estejam em fase de conhecimento, ou seja, não tiveram as decisões neles proferidas passadas em julgado, a Súmula 450 do TST, uma mais protetivas constantes do elenco das 463 que ele baixou, não mais poderá ser fundamento para qualquer pleito administrativo e/ou judicial visando a garantir o pagamento em dobro de férias não quitadas nos termos do Art. 145 da CLT.
Porém, essa danosa decisão, que, como dito, é apenas mais uma das contas do rosário de ataques do STF aos direitos trabalhistas, não pode ser tomada como barreira intransponível para que pleito dessa natureza não seja levado à apreciação e deliberação da Justiça do Trabalho. Isso porque, como se extrai da análise integrativa do Art. 145 da CLT, à luz das garantias constitucionais insertas no Art. 1º, IV (valores sociais do trabalho), 7º, XVII (gozo de férias anuais acrescidas de um terço), 170, caput (valorização do trabalho humano) e 193 (primado do trabalho e bem-estar e justiça sociais), todos da Constituição Federal, o gozo de férias é ato complexo, que exige, para sua concretização, a efetiva interrupção das atividades pelo período estabelecido como tal, que, tem como regra, 30 dias, e o pagamento antecipado da remuneração a elas equivalente, devidamente acrescida de um terço.
Corrobora essa assertiva os excertos abaixo, colhidos do judicioso voto divergente do ministro Edson Fachin, que, apesar de vencido, não deixa de trazer luz para as trevas ditadas pela comentada decisão.
Confira-os:
“Voto, assim, pelo não conhecimento da Arguição. De todo modo, no mérito, tampouco compreendo haver violação à legalidade e à separação dos Poderes quando a Justiça do Trabalho, sobretudo seu Tribunal de cúpula, interpretando a base legal infraconstitucional existente, formula entendimento, especialmente à luz da CLT, adotando interpretação possível dentre mais de uma hipótese de compreensão sobre a matéria. O direito fundamental ao trabalho, expressamente reconhecido no texto constitucional de 1988, exige concretização, em sua máxima efetividade, no contexto do Estado Social e Democrático de Direito. Já pontuei em outras oportunidades que a justiça social como valor e fundamento do Estado de Direito Democrático (art. 1º, IV, da CRFB), positivado e espraiado pelas normas da Constituição de 1988, é a diretriz segura de que a valorização do trabalho humano objetiva assegurar a todos e todas uma existência digna (art. 170 da CRFB), bem como de que o primado do trabalho é a base da ordem social brasileira, tendo por objetivos o bem-estar e a justiça social (art. 193 da CRFB). Sem maiores divergências, a proteção jurídica ao trabalho é considerada como direito fundamental social, de modo que a interpretação deve assegurar-lhe proteção eficiente. Aliás, está a interpretação constitucional com propósito de conferir a maior efetividade possível aos direitos sociais fundamentais amparada na Convenção Americana de Direitos Humanos, ratificada pelo Brasil no ano de 1992. Assume o País, segundo o art. 26 da Convenção Americana de Direito Humanos, o compromisso de potencializar progressivamente os direitos sociais, econômicos e culturais, de forma a garantir sua plena efetividade, por via legislativa ou por outro meio considerado apropriado. Com esse propósito, as relações contratuais trabalhistas são informadas não apenas pela lei em sentido estrito e pela autonomia privada, mas por um conjunto de princípios constitucionais e legais e, também, pela jurisprudência trabalhista que as integram a partir da interpretação da realidade dos sujeitos e objetos concretos, i.e., às pessoas e aos seus comportamentos inseridos no mundo da vida em que tais relações acontecem.
[…] Considerando a factualidade da concretização da justiça social nas relações intersubjetivas e, especificamente aqui, nas relações trabalhistas, o direito às férias apresenta-se, como consta nas informações, como uma obrigação complexa merecedora da especial proteção conferida pelo ato impugnado, derivado da interpretação da jurisdição trabalhista sobre a matéria ante à realidade que se lhe apresenta. […] É que tanto o direito ao gozo das férias como a sua remuneração e o pagamento do terço salarial, a fim de resguardar a saúde do trabalhador, o direito ao lazer e à convivência familiar, têm estatura de direito fundamental social, previsto no art. 7º, XVII, da CRFB.
[…]
Dispõe especificamente o art. 145 mencionado no verbete: Art. 145 – O pagamento da remuneração das férias e, se for o caso, o do abono referido no art. 143 serão efetuados até 2 (dois) dias antes do início do respectivo período. E o art. 137: Art. 137 – Sempre que as férias forem concedidas após o prazo de que trata o art. 134, o empregador pagará em dobro a respectiva remuneração.
[…]
No mesmo sentido, a doutrina trabalhista de Maurício Godinho Delgado, ministro do TST: “Outra característica das férias é sua composição obrigacional múltipla. Efetivamente, o instituto comporta, em seu interior, inequívoca multiplicidade de obrigações de natureza diversa. Citem-se, por exemplo, a obrigação de fazer do empregador, ao determinar a data de férias do obreiro, dispensando-o dos demais compromissos contratuais; a obrigação empresarial de dar, através do pagamento antecipado do salário do período de férias, acrescido do terço constitucional e, se for o caso, do valor da conversão de parte das férias, além, ainda, de metade do 13º salário (se requerido este pagamento tempestivamente pelo obreiro) ; por fim, a obrigação empresarial de não fazer, consistente na omissão do empregador de requisitar qualquer serviço ao obreiro no período de férias, sob pena de frustração do instituto.” (DELGADO, Maurício Godinho. Curso de direito do trabalho. 18ª ed. SP: LTr, 2019, p. 1161, g.n.).
[…]
Transcreve-se, pela solidez da fundamentação, um dos julgados paradigmas da Súmula 450 trazido nas informações: EMBARGOS – SUJEITOS À SISTEMÁTICA DA LEI Nº 11.496/07 – FÉRIAS USUFRUÍDAS, E NÃO REMUNERADAS NA ÉPOCA PRÓPRIA – PAGAMENTO EM DOBRO 1. As férias constituem obrigação complexa, que só é efetivamente adimplida com a satisfação completa de dois requisitos: (a) o pagamento antecipado do salário acrescido do adicional; e (b) o afastamento do empregado das atividades laborais. 2. Destarte, somente é possível considerar concedidas as férias se os dois requisitos são cumpridos, na ordem legal. Se a remuneração é paga após o gozo do período de descanso, o empregado não tem a possibilidade de exercer por completo o direito às férias e, sendo assim, frustra-se a finalidade do instituto, que é propiciar ao trabalhador período remunerado de descanso e lazer, sem o qual se torna inviável a sua recuperação física e mental para o retorno ao trabalho. 3. Se é assim, o mero afastamento do empregado equivale a simples concessão de licença, não se podendo considerar como adimplida a obrigação patronal. Nesses termos, o pagamento das férias fora do prazo a que se refere o art. 145 da CLT enseja a condenação em dobro, em razão do disposto no art. 137 consolidado. Embargos conhecidos e providos. (…) Discute-se, nos autos, se o pagamento da remuneração das férias fora do prazo previsto no art. 145 da CLT gera a obrigação de o empregador pagar em dobro. De acordo com o art. 145 da CLT, o pagamento da remuneração das férias, bem como do respectivo abono, deve ser efetuado até 2 (dois) dias antes do início do período de fruição. O completo gozo das férias depende tanto do afastamento do trabalho quanto dos recursos financeiros necessários para que o empregado possa usufruir do período de descanso e lazer e, assim, recuperar-se física e mentalmente para retornar ao labor. Assim, as férias constituem obrigação patronal complexa, que só é efetivamente adimplida com a satisfação integral de dois requisitos: (a) o pagamento antecipado do salário acrescido do adicional; e (b) o afastamento do empregado das atividades laborais. Destarte, somente é possível considerar concedidas as férias se os dois requisitos são cumpridos, na ordem legal. Se a remuneração é paga após o gozo do período de descanso, o empregado não tem a possibilidade de exercer por completo o direito e, sendo assim, frustrase a finalidade do instituto, que é propiciar ao trabalhador período remunerado de descanso e lazer, sem o qual se torna inviável a sua recuperação física e mental para o retorno ao trabalho. Se é assim, o mero afastamento do empregado equivale a simples concessão de licença, não se podendo considerar como adimplida a obrigação patronal. Nesses termos, o pagamento das férias fora do prazo a que se refere o art. 145 da CLT enseja a condenação em dobro, em razão do disposto no art. 137 consolidado.
[…]
Ante o exposto, voto pelo não conhecimento da presente Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental e, no mérito, pela sua improcedência. É como voto.”
Desse modo, está lançado mais um desafio às entidades sindicais e seus/suas advogados/as, que é o de superar mais essa pedra no caminho dos/as trabalhadores/as.
Ao debate e à ação!
*José Geraldo de Santana Oliveira é consultor jurídico da Contee