STF diz que finalidade da terceirização é reduzir salários: quem errou ou mentiu nesta história?

Nos anos de 2015 e 2016, quando o setor econômico saiu em defesa aberta da ampliação da terceirização, argumentando que a iniciativa seria eficaz para dissolver a crise econômica e desburocratizar e dinamizar a atividade das empresas brasileiras, favorecendo a sua inserção na concorrência internacional, fez-se questão também de dizer, diante da resistência de muitos juristas, sociólogos e até economistas, além da própria classe trabalhadora organizada e de intensa mobilização social, que a terceirização:

a) é boa para os trabalhadores;
b) não reduz direitos e salários (tomando-se por base o padrão atual);
c) amplia direitos porque garante a aplicação da CLT a todos os trabalhadores, inclusive a quem, na época, estava fora da CLT, na informalidade ou na “pejotização”;
d) não precariza as condições de trabalho;
e) não provoca desemprego; e
f) ao contrário, gera empregos, sem desempregar quem já está trabalhando.

Posicionaram-se neste sentido, de forma expressa: CNI[1]; FIESP[2]; FecomércioSP[3]; Deputado Eduardo Cunha; Deputado Arthur Oliveira Maia; Deputado Sandro Mabel; Senador Aécio Neves[4]; Paulinho da Força Sindical[5]; José Pastore[6]; Hélio Zylberstajn[7]; Ives Gandra Martins Filho[8]; Almir Pazzianoto Pinto[9]; Cássio Mesquita Barros[10]; Nelson Mannrich[11]; Sérgio Pinto Martins[12]; Ana Amélia Camargos[13]; Rede Globo[14]; Folha de S. Paulo[15]; Estadão[16]; Movimento pela Segurança Jurídica e pela Competitividade[17]; Jornal Diário Catarinense (Grupo RBS)[18]; Cassiano Ricardo Dalberto[19]; Olavo Carneiro Jr.[20]; Rodrigo Constantino[21]; Paulo Skaf[22]; Alencar Burti[23]; Maílson da Nobrega[24]; Edgar Segato Neto[25]; Luiz Guilherme Migliori[26]; Marcelo Almeida[27]; Jorge Sukare Neto[28]; Eduardo Eugênio Gouvêa Vieira[29]; Bernardo Braga e Vicente Braga[30].

No entanto, como atestado por várias outras pessoas e entidades, cujo rol, de tão intenso, fica inviável reproduzir, sob pena de graves e injustas omissões, já era bastante evidente, tomando a experiência da própria terceirização existente na realidade brasileira na denominada atividade-meio, desde 1993, que os efeitos da terceirização seriam: aumento da precarização do trabalho; redução de salários dos(as) trabalhadores(as) terceirizados(as), com reflexo negativo também nos salários dos(as) não-terceirizados(as); aumento dos acidentes de trabalho; aumento da ineficácia da legislação trabalhista; redução do nível de sindicalização; rebaixamento da condição humana dos(as) trabalhadores(as) terceirizados(as), reduzidos à situação de invisibilidade etc. A terceirização ampliada, diziam, a partir de um pressuposto lógico, só poderia produzir os efeitos já verificados e conhecidos de todos até então.

Cumprindo o papel da defesa dos interesses econômicos de grandes empresas, que são as que, efetivamente, se valem da terceirização, alguns políticos, juristas, economistas e setores da imprensa tradicional construíram a narrativa acima, fazendo parecer que as pessoas e entidades que se manifestaram contrárias à terceirização fossem tratadas como retrógradas, avessas à “modernização” das relações de trabalho e até inimigas da classe trabalhadora, pois a terceirização, como preconizavam, iria gerar empregos, sem reduzir salários e direitos, e formalizar relações antes informais.

Pois bem, no dia 26/03/21, julgando o RE 635.534, o STF – que dias atrás se colocou como paladino da defesa da democracia e da ordem constitucional –, mesmo com os votos contrários dos Ministros Marco Aurélio, Rosa Weber, Ricardo Lewandowski e Luiz Edson Fachin, além da restrição para os casos envolvendo entes públicos, sugerida pelo Ministro Alexandre de Moraes, decidiu, na sua composição majoritária, que não se poderia equiparar os salários dos(as) trabalhadores(as) terceirizados(as) ao dos(as) trabalhadores(as) efetivos(as). O caso específico, inclusive, era relativo à demanda de isonomia salarial de um trabalhador terceirizado ao trabalhador de um ente público, aprovado por concurso público. No entanto, a tese prevalecente foi além da situação específica e fixou o parâmetro de que mesmo quando se esteja diante de entidades privadas a isonomia não pode ser exigida, sob o fundamento, constante do voto prevalecente do Ministro Barroso, de que “os princípios da livre iniciativa e da livre concorrência asseguram ao agente econômico a decisão sobre terceirizar ou não parte das suas atividades e, ao fazê-lo, baixar custos”. E reiterou: “Exigir que os valores de remuneração sejam os mesmos entre empregados da tomadora de serviço e empregados da contratada significa, por via transversa, retirar do agente econômico a opção pela terceirização para fins de redução de custos”.

Verdade que na mesma decisão se fez a ressalva quanto ao que já havia sido decidido na ADPF 324, que expressamente assegurou aos(às) trabalhadores(as) terceirizados(as) alguns direitos, integrados ao dito patamar civilizatório mínimo em matéria trabalhista, em termos, inclusive, de igualdade de condições destes com relação aos empregados da empresa tomadora de serviços, citando, como exemplo, os direitos ligados a “treinamentos, material e normas de segurança e saúde no trabalho”.

Ocorre que, primeiro, essa ressalva já é, em si, bastante grave, vez que parte do pressuposto equivocado de que alguns direitos trabalhistas não compõem a base mínima do padrão de dignidade humana assegurado aos trabalhadores pela Constituição Federal. Trata-se de entendimento que, na verdade, cria de forma arbitrária e inconstitucional uma situação de subcidadania para a classe trabalhadora.

E, segundo, a ressalva não significa grande coisa em termos de equiparação de direitos entre os(as) trabalhadores(as) terceirizados(as) e os(as) não-terceirizados(as). Ora, ainda que se referisse apenas ao salário (o que não é, como visto nos próprios termos da ressalva), há de se lembrar que praticamente todos os direitos trabalhistas – cuja proteção social é baseada em compensação ou oneração financeira – tomam por base o valor do salário. Assim, se o salário é reduzido, todos esses demais direitos também o serão (FGTS, férias, 13º salário, DSR etc.), com repercussão, inclusive, no valor dos benefícios previdenciários (auxílio-doença, auxílio-doença acidentário, aposentadoria etc.)

Que o STF chegasse a essa conclusão, infelizmente, já era bastante esperado, pois desde 2014, em reiteradas decisões, assumiu o papel de desconsiderar a Constituição e os Direitos Humanos com relação aos(às) trabalhadores(as).

Essa afirmação não é mera retórica, já que pode ser constatada nos argumentos utilizados nos diversos julgamentos relacionados.

Neste caso específico, que, em verdade, não se trata de equiparação, mas de isonomia salarial, é importante lembrar que na base da ordem jurídica forjada à luz dos Direitos Humanos está a proibição da discriminação de quaisquer naturezas. Então, para todo trabalho de igual valor deve corresponder a mesma remuneração.

Vale lembrar, a propósito, na ordem jurídica nacional, primeiro, o precedente fixado já na Constituição Federal de 1934: “proibição de diferença de salário para um mesmo trabalho, por motivo de idade, sexo, nacionalidade, ou estado civil” (art. 121, § 1º, a).

Na Constituição de 1988, a garantia está resguardada no teor do art. 5º, quando prescreve que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”, e está também referida no inciso XXX, do art. 7º: “proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil”.

Além disso, no âmbito internacional, a isonomia está na base da formação de toda legislação trabalhista, conforme enunciado no Tratado de Versalhes (1919), com a fixação do princípio: “salário igual, sem distinção de sexo, para trabalho igual em quantidade e qualidade” (art. 427).

O art. 23 da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) é ainda mais explícito a respeito: “Todos têm direito, sem discriminação alguma, a salário igual por trabalho igual”.

Claro que muitos dos dispositivos normativos que também poderiam aqui ser mencionados fazem referência ao direito à isonomia com relação a empregados de um mesmo empregador, mas isso porque foram concebidos a partir do pressuposto, então vigente, da negação da “marchandage”, ou seja, da vedação da locação de pessoas por meio da terceirização. Como, pela terceirização, se colocam, lado a lado, trabalhadores realizando a mesma atividade, com igual valor, com a única diferença de estarem registradas por pessoas jurídicas distintas, a diferença salarial só pode ser entendida como uma forma de discriminação.

Aliás, foi fazendo menção a muitos desses preceitos que alguns (embora, poucos) defensores da ampliação da terceirização ofereciam a sua “garantia” de que a ampliação da terceirização não representaria redução de salários e direitos dos(as) trabalhadores(as) terceirizados(as) na comparação com os(as) não-tercerizados(as).

O STF, no entanto, não quis saber de nada disso e continuou, como em várias outras decisões, criando a sua “Constituição rebaixada” para a classe trabalhadora. Aliás, uma Constituição que teria como primado a “livre exploração do trabalho”, em completa inversão ao previsto no art. 193 da Constituição vigente.

O curioso, mas não tão curioso assim, é que nenhuma das pessoas ou entidades que defenderam a ampliação da terceirização – que, mais tarde, se consagrou na aprovação das Leis 13.429/17 e 13.467/17[31] – assegurando que ela não reduziria salários e direitos, veio a público para formular uma crítica à decisão do Supremo.

Ora, se ofereceram publicamente garantias aos(às) trabalhadores(as) de que isso não ocorreria, como forma, inclusive, de favorecer a aprovação da lei que determinou a ampliação da terceirização, teriam, agora, no mínimo, que vir novamente a público para reconhecer o erro, pedir desculpas e criticar a posição do Supremo.

Sintomaticamente, se omitem, no entanto.

Diante deste silêncio, do ponto de vista do registro histórico, duas conclusões são possíveis: ou os(a) defensores(as) mentiram; ou o STF errou.

Mas também podem ser as duas coisas!

São Paulo, 03 de abril de 2021.

[1]http://www.portaldaindustria.com.br/cni/imprensa/2015/04/1,60220/terceirizacao-conheca-nove-formas-pelas-quais-o-pl-4330-protege-o-trabalhador.html
[2]http://www.terceirizacaosim.com.br/
[3]http://www.fecomercio.com.br/NoticiaArtigo/Artigo/12117
[4].  http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2015/04/1617413-aecio-apoia-projeto-que-libera-empresas-a-terceirizar-qualquer-etapa.shtml
[5]http://glo.bo/1K6lvEY
[6]http://glo.bo/1K6lvEYhttp://economia.estadao.com.br/noticias/geral,terceirizacao-da-atividade-fim-imp-,1673287;  http://www.valor.com.br/brasil/4016854/pl-4330-vai-encarecer-terceirizacao-diz-jose-pastore
[7]http://glo.bo/1K6lvEY
[8]http://www.diap.org.br/index.php?view=article&id=7889
[9]http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,o-desafio-da-terceirizacao-imp-,1529902http://www.jornalacidade.com.br/politica/politica_internaNOT.aspx?idnoticia=1055182
[10]http://www.dw.de/terceiriza%C3%A7%C3%A3o-mais-emprego-ou-menos-direitos/a-18386363
[11]http://www.conjur.com.br/2013-out-20/nelson-mannrich-regulamentar-terceirizacao-fortalece-relacoes-trabalho
[12]http://www.cartaforense.com.br/conteudo/colunas/o-projeto-de-lei-de-terceirizacao/15296
[13]http://www.dercio.com.br/blog/terceirizacao-divide-opinioes-e-abordamos-os-pros-/
[14]http://glo.bo/1K6lvEY
[15]http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2015/05/1624214-editorial-debate-precarizado.shtml
[16]http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,a-terceirizacao-necessaria-imp-,1080012
[17]http://www.terceirizacaoja.com.br/
[18].http://www.clicrbs.com.br/diariocatarinense/jsp/default2.jsp?uf=2&local=18&source=a4740214.xml&template=3898.dwt&edition=26466&section=2162
[19]http://www.mises.org.br/Article.aspx?id=2076
[20]http://direitostrabalhistas.blogspot.com.br/2015/04/eu-digo-sim-ao-pl-4330-terceirizacao-de.html
[21]http://veja.abril.com.br/blog/rodrigo-constantino/economia/em-defesa-da-terceirizacao/
[22]http://www.atribuna.com.br/noticias/noticias-detalhe/economia/fiesp-preve-abertura-de-3-milhoes-de-empregos-com-lei-da-terceirizacao/?cHash=fb13cb13ad46c51af790765f8011133d
[23]http://portal.acsp.com.br/ver/noticias/presidente-da-associacao-comercial-de-sp-comemora-aprovacao-do-projeto-que-regulamenta-a-terceirizacao
[24]. Revista Veja, edição de 25/03/15, p. 24.
[25]http://www.febrac.org.br/novafebrac/index.php/noticias/noticias/766-presidente-da-febrac-conquista-mais-um-voto-a-favor-do-pl-4330
[26]http://www.dercio.com.br/blog/terceirizacao-divide-opinioes-e-abordamos-os-pros-/
[27]http://congressoemfoco.uol.com.br/noticias/outros-destaques/por-que-sou-a-favor-do-pl-4330/
[28]http://m.corporate.canaltech.com.br/coluna/mercado/A-importancia-do-PL-4330-da-terceirizacao-para-o-mercado-brasileiro-de-TI/
[29]http://www.planetaosasco.com/dinheiro/5870-lei-de-terceirizaao-e-vitoria-para-a-sociedade-brasileira-avalia-firjan
[30]http://www.brasilpost.com.br/vicente-piccoli-medeiros-braga/tres-argumentos-em-favor-_b_7116734.html
[31]. A relação dos parlamentares que votaram a favor da aprovação da Lei n. 13.429/17 pode ser acessada no importante registro histórico elaborado por: YAMAMOTO, Paulo de Carvalho; MARQUES, A. C. B. R. C.; LOPES, G. F. R. “Democracia e Direito do Trabalho no Brasil, uma tarefa de arqueólogos: a Lei n. 13.429/2017 sobre terceirização”. In: SOUTO MAIOR, Jorge Luiz; SEVERO, Valdete Souto. (Org.). Resistência III: o Direito do Trabalho diz não à terceirização. 1ed. São Paulo: Expressão Popular, 2019, v. 1, p. 171-180.

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