Um tapa na cara dos juízes brasileiros
A publicação de uma longa reportagem na revista VEJA deste fim de semana, com um resumo das mais comprometedoras mensagens obtidas pelo site The Intercept Brasil, levou o escândalo já conhecido como Vaza Jato a um novo patamar. A publicação da editora Abril assumiu ter tratado Sergio Moro como herói, dedicando-lhe cinco capas laudatórias. Com o extrato das conversas flagradas no Telegram, todavia, assinalou em editorial: “Não se pode fechar os olhos ante as irregularidades cometidas”.
O jornal Folha de S.Paulo, a seu turno, concluiu que a última publicação dos diálogos “elevou a pressão sobre o agora ministro da Justiça”: há, pela primeira vez, pontua a seção Painel, “indicação cristalina de, no mínimo, falta administrativa grave”. Seu instituto de pesquisa, Data Folha, apurou que de cada três pessoas que tomaram opinião sobre o assunto, duas delas acharam as condutas de Sergio Moro “inadequadas”.
O próprio Jornal Nacional, da TV Globo, gastou quinze minutos de seu noticiário descrevendo minuciosamente o que chamou de “supostas conversas”, e também se sentiu na obrigação de assinalar que nem a luta contra a corrupção permitiria a conivência com irregularidades.
A mudança de patamar da crise não é gratuita.
As conversas levantadas na última reportagem são aterradoras – as diversas checagens dos órgãos de comunicação apontam fortemente para a veracidade dos conteúdos. VEJA diz isso depois de analisar um conjunto de 650.000 mensagens; a Folha de S.Paulo já havia reconhecido mensagens de seus próprios jornalistas no bojo das comunicações recebidas pelo site.
Se Sergio Moro e Deltan Dallagnol tivessem, no primeiro momento, negado a autenticidade das conversas, talvez nem estivéssemos nos debatendo sobre o conteúdo.
Mas não só não o fizeram com as primeiras e já estrondosas revelações do Intercept, como até hoje não apontaram peremptoriamente um só diálogo como falso. A princípio, afirmaram apenas que as conversas eram normais; com o tempo, passaram a dizer que eram inidôneas porque oriundas de interceptação ilícita e, enfim, põem genericamente em dúvida a possibilidade de alguma adulteração, sem indicar, todavia, uma única.
Na reportagem de VEJA, há menção a uma pessoa externa ao processo: uma conversa que Sergio Moro teria tido com o apresentador Fausto Silva, que retransmite a Dallagnol, com o objetivo de sugerir a ele que fale com a imprensa de modo mais fácil de ser entendido. À VEJA, Fausto Silva, confirmou o teor da conversa.
Se Moro e Deltan tivessem negado de forma absoluta a existência e idoneidade destas conversas, não teria morrido apenas a discussão sobre o conteúdo, mas o inquérito do hackeamento a que se impuseram como vítimas nem teria nascido. É que a exigência de uma forte investigação, segundo ambos, para apurar grupos criminosos que praticaram a interceptação, deixa claro não se tratar de um novelista que, com sua imensa criatividade, saiu inventando diálogos verossímeis que, ao mesmo tempo seriam fortemente comprometedores, e totalmente “normais”.
Não seria má ideia se, ouvindo o conselho de Moro ministro, passássemos a ignorar todo e qualquer vazamento que tenha sido originado de um crime. Mas isso seria extrair a força que a mídia impôs ao próprio processo da Lava Jato, vez que todos os áudios exibidos com glória e êxtase no Jornal Nacional decorreram de violações de sigilo profissional, crime tão grave quanto a própria interceptação ilegal – e é possível que se essa vedação fosse mesmo seguida à risca, ele jamais tivesse se transformado em ministro.
Sergio Moro já nos disse por várias vezes qual foi o diferencial da Lava Jato, o “apoio popular”. Apoio que foi conquistado também na base do vazamento seletivo e cirúrgico das interceptações e delações. Tão cirúrgico quanto o agora criticado modus operandi do jornalista Glenn Greenwald.
Sobre Greenwald, aliás, como sói acontecer quando o poder se sente ameaçado pela pena da imprensa, formam-se nuvens da perseguição do Estado, como a anunciada observação de sua movimentação financeira pelo COAF – aquele órgão que o ministro Sergio Moro tanto fez questão que estivesse sob suas asas. Agora entendemos um pouco melhor o porquê.
Mas, afinal de contas, o que de tão grave, as conversas revelaram? Não seriam todas elas rotineiras e representativas do modo de agir comum de juízes e promotores?
Há um pouco de tudo nas conversas resumidas pela revista – mas nenhuma delas é encontrada diariamente nos fóruns brasileiros: o juiz que avisa o promotor que a denúncia deveria vir acompanhada de um documento que indica, dizendo que vai esperar a juntada deste para recebê-la; o juiz que adverte, pelo Telegram, do prazo que o promotor tem para fazer uma manifestação, assinalando o quanto ela é importante para sua decisão; o promotor que remete ao juiz um rascunho da manifestação que vai lhe apresentar oficialmente, para que ele já possa ir fazendo a decisão com base nela; o pedido do juiz para que a operação policial, que vai resultar na denúncia dirigida a ele mesmo, seja feita em determinada data; o juiz que interpela o promotor sobre uma possível delação, observando, previamente, que a ela se opõe; a recomendação do juiz à polícia para que não tenha pressa em juntar documento que pode afastar sua competência processual.
Como resumiu a revista VEJA: “Não eram conversas protocolares entre juiz e Ministério Público. Do conjunto, o que se depreende, além de uma intimidade excessiva entre a Magistratura e a acusação, é uma evidente parceria na defesa de uma causa”.
Na verdade, fatos que se desenham e se complementam desde a primeira publicação do The Intercept Brasil, quando o site escandalizou a todos indicando que juiz e promotor consultavam-se, mutuamente, mesmo antes das decisões e, em uma inusitada tabelinha, compartilhavam experiências, impressões e atos processuais.
Seria um tapa na cara dos juízes e promotores brasileiros dizer que tais comportamentos são normais, rotineiros, cotidianos.
Se essas comunicações fossem normais, em primeiro lugar, seriam públicas, não reservadas. A reserva, em um instrumento que não é acessível à defesa, mostra que o princípio da publicidade foi o primeiro a ser estilhaçado.
O segundo é a própria ampla defesa, direito fundamental que baliza o processo penal. Se o juiz combina suas ações com o promotor, sem o conhecimento da defesa, como dizer que esta terá a mesma oportunidade de apresentar seus argumentos para a decisão? Se a defesa não tem acesso ao ambiente em que se conversa sobre o processo, está, na verdade, alijada de onde as coisas efetivamente se decidem.
E cabe aqui abertura a outro questionamento: se as conversas interceptadas dizem respeito a um processo judicial, não considerações genéricas e pessoais, mas sugestões e consultas que teriam provocado consequências efetivas no julgamento (a sugestão de incluir documento que é acatada; a data da operação policial que é ajustada de acordo com a conveniência do juiz; a delimitação da denúncia), seriam, então, conversas públicas mantidas irregularmente em sigilo, mas não comunicações com a tutela constitucional da privacidade.
O que não deve estar no âmbito da privacidade não pode nele ser incluído apenas pela perversão de seu uso. O tema foi abordado, primeiramente, pelo professor Edilton Meireles em artigo no site Justificando (“Diálogos entre Moro e Lava-Jato devem ser submetidos ao contraditório”, 01/07/19).
Não é minha pretensão discutir nenhum dos despachos, decisões, sentenças ou votos que envolveram esta referida operação – não obstante discordar da constitucionalidade da regra que impõe vedações aos demais juízes de fazê-lo, encartada no entulho autoritário da Lei Orgânica da Magistratura, herdeira direta do Pacote de Abril.
Mas é impossível assistir em silêncio a essa afronta como forma de defesa: a transferência da suspeita de parcialidade dos flagrados na conversa sigilosa a todos os juízes e promotores do país.
Os advogados fizeram graça com a perspectiva de um juiz que os avise, pelo Telegram, quando o prazo está se esgotando; promotores se indignaram com a submissão de peças ainda não prontas (e, portanto, não protocoladas) ao conhecimento e quiçá avaliação do juiz. E os magistrados não se sentiram nada à vontade com a ideia de compartilhar decisões ainda não tomadas nos autos.
Ouvido em um seminário de investidores, o ministro Luis Roberto Barroso voltou a criticar, sobretudo, a origem ilícita das mensagens, e aduziu que nenhuma família se manteria íntegra com dois anos de interceptações. Talvez esteja mesmo certo o ministro, sobre os riscos do excesso de invasão da privacidade – que, a bem da verdade, pouco costuma analisar na jurisdição.
O problema é que em questão não está uma família. Nem mesmo, como alguns teimam em colocar, colegas de trabalho. Promotor e juiz, como advogado e delegado, desempenham importantes funções em um processo criminal. É certo que umas dependem de outras e é o conjunto delas que faz o sentido do processo – quando todas são respeitadas, lógico.
Mas ainda assim não são colegas de trabalho, não fazem parte de uma mesma equipe. Cada qual desempenha sua função nos limites de sua competência.
Juiz não é chefe do promotor, nem do delegado; tampouco está acima do advogado. Cada um tem o seu espaço. E o do juiz, para o bem e para o mal, é o mais solitário de todos. Não existe equipe de que faça parte. Não tem como dividir o sofrimento da decisão, o incômodo da dúvida. Esta solidão é parte integrante de seu serviço – quem desconhece isso, certamente não valoriza o trabalho.
Ao mostrar um juiz que dá ordens a todos, que se articula para além de suas competências, que compartilha suas angústias com um dos lados em julgamento, ao qual adere, a situação expõe a todos e fragiliza enormemente a própria ideia de justiça.
Normalizar a perversão é fazer pouco da integridade dos milhares de juízes brasileiros.
O sucesso do “trabalho em equipe” e da submissão popular da decisão pode até render frutos políticos de alta magnitude. Mas é um tiro no pé do Judiciário, pois fulmina justamente os atributos que definem sua identidade: a independência e a imparcialidade.
MARCELO SEMER é juiz de Direito e escritor. Mestre em Direito Penal pela USP, doutor em Criminologia pela USP, é também membro e ex-presidente da Associação Juízes para a Democracia.