Vacina pouca, ricos tomam primeiro
Um novo tratado internacional em negociação pretende alterar a desigualdade na distribuição de imunizantes com vistas às próximas pandemias. Confira a reportagem da nova edição especial do Jornal da Ciência
Até o dia 3 de junho, mais de 2,05 bilhões de doses de vacinas contra a covid-19 foram aplicadas em todo mundo, de acordo com dados da Organização Mundial de Saúde (OMS) compilados pela plataforma One World Data. Um total de 872 milhões de pessoas já haviam recebido pelo menos a primeira dose de um dos 15 imunizantes aprovados e ofertados. Em pouco mais de cinco meses, o número de pessoas totalmente vacinadas (com duas doses) se aproximava de meio bilhão, o que representava 5,7% da população mundial.
É a maior campanha de vacinação da história e também a mais desigual. O volume de doses aplicadas este momento seria suficiente para cerca de 27% da população global. No entanto, segundo um acompanhamento feito pela agência Bloomberg News, 28,6% daquelas doses foram aplicadas em apenas 27 países de alta renda – entre eles EUA, Reino Unido, Canadá, Alemanha, França e Itália – que respondem por apenas 10,4% da população do mundo. Enquanto nove países já haviam vacinado até 40% de sua população, oito não tinham recebido nenhuma dose, entre eles Tanzânia, Togo e Chad, na África, e a Guiana Francesa, na América do Sul.
A lentidão na produção e a desigualdade na distribuição das vacinas contra a covid19 foram tema da 74ª Assembleia Mundial da Saúde (74WHA na sigla em inglês), realizada virtualmente de 24 de maio a 1º de junho. Os 193 países membros da OMS concordaram em abrir um processo para avaliar a criação de um novo tratado internacional de cooperação para lidar com futuras pandemias. Uma nova assembleia foi marcada para 29 de novembro deste ano, para avançar nas discussões sobre o tratado e promover uma reforma da OMS para ampliar a capacidade do órgão de combater pandemias.
A ideia é que o novo documento se some ao atual Regulamento Sanitário Internacional (RSI), firmado em 2005, que estabelece procedimentos para proteção contra a propagação de doenças.
Segundo diretora da área de Acesso a Medicamentos, Vacinas e Produtos Farmacêuticos da OMS, a médica curitibana Mariângela Simão, a intenção é que o tratado crie obrigações para todos, não só os estados membros, mas também empresas privadas e organizações da sociedade civil. A ideia é chegar a um documento com o peso da Convenção-Quadro da OMS para Controle do Tabaco (CQCT/ OMS), o primeiro tratado internacional de saúde pública da história da organização, assinado em 2003. Considerada um marco para a saúde pública mundial, a CQCT determina obrigações para todos os envolvidos, com medidas como restrição ao fumo em lugares públicos a cargo dos governos, e regras sobre propaganda, publicidade, patrocínios destinados às empresas privadas, passando por tratamento médico de fumantes, comércio ilegal, preços e impostos.
Questionada sobre o que seriam os principais pontos do tratado, Simão respondeu que ainda não há detalhes, pois o que se buscou na Assembleia foi, antes de mais nada, a autorização dos governos para que haja um acordo. “Os países têm que aprovar que ele vai ser escrito”, disse a médica. “Mas, por exemplo, acesso equitativo a bens necessários para combater essa e outras pandemias, claro que vão estar presentes”, garantiu.
Na verdade, a proposta do tratado, ainda muito incipiente, é defendida sobretudo por países europeus e pelo Chile, com apoio do secretariado da OMS, explicou uma fonte do Ministério das Relações Exteriores que participa das negociações, mas preferiu não se identificar. “O que existe é uma vontade de parte de alguns países membros da OMS de iniciar esse processo de negociação sem grande segurança sobre o que vai ser o objeto. Pode se tornar realidade, está sendo discutido no âmbito desse grupo de trabalho de fortalecimento da OMS em emergências sanitárias, pode continuar sendo discutido aí ou se tornar uma proposta independente. É mais uma declaração política”, reiterou a fonte.
Uma coisa é a intenção, outra é a realidade. E no mundo das Nações Unidas, as intenções têm que ser muito flexíveis para abrigar todos os interesses envolvidos. O pediatra e sanitarista Paulo Buss, coordenador geral do Centro de Relações Internacionais da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), explica que o RSI, aprovado por todos os países membros depois de um longo e complexo processo de negociação, era arrojado e inovador quando votado em 2005, abrangendo questões que ultrapassavam a saúde pública e incluíam direitos humanos e comércio.
Quando veio a covid-19, ficou claro que o RSI é insuficiente e incapaz de dar todas as respostas necessárias. Entre as insuficiências estão a falta de sanções. “Os países têm liberdade de definir suas próprias medidas, dentro de seu território, e o RSI não prevê nenhuma sansão à não execução de algumas medidas que seriam importantes e necessárias, nem a quem não opere dentro dessas regras”, explicou Buss. “Então, uma das ideias que se vai discutir são as sanções”, completou.
Segundo o executivo da Fiocruz, a ideia agora é construir um tratado de controle de pandemias, sem mexer diretamente no RSI, mas antecipando uma possível reforma do regulamento, colocando compromissos para enfrentar uma epidemia.
“O RSI diz que essa é uma emergência de saúde pública, de interesse global, e cria algumas obrigações, por exemplo, a de notificar. Mas fora o que está nesse regulamento, nada obriga os países”, acrescentou Mariângela Simão. Para ela, é uma negociação difícil, mas extremamente importante para futuras pandemias, porque cria mecanismos para facilitar o acesso mais equitativo aos bens e produtos e ter regras mais claras.
Buss acrescenta que a expectativa dos profissionais de saúde envolvidos na negociação do novo tratado é aprovar um documento abrangente, que não se limite a vírus e doenças, mas que alcance questões que cercam a emergência de uma pandemia, entre elas, as alterações climáticas que, como já ficou provado, estão na raiz da emergência e disseminação de novos vírus. Enquanto não há tratado, a diplomacia da vacina está sendo liderada pela China, que prometeu cerca de meio bilhão de doses para mais de 45 países, de acordo com uma contagem país por país feita pela agência de notícias Associated Press (AP). Assim, grande parte da população mundial acabará inoculada, não com as vacinas ocidentais de tecnologia avançada e sofisticada, mas com as doses chinesas feitas com a técnica tradicional de vírus inativado. As vacinas da China, que podem ser armazenadas em geladeiras padrão, são as mais adequadas para países tropicais, que não têm grande capacidade de armazenamento ultrafrio exigido por vacinas como as da Pfizer.
Mesmo com toda a hesitação e desconfiança, muitas vezes motivadas por propaganda de fundo ideológico, as vacinas chinesas já estão aplicadas em mais de 25 países. Inclusive no Brasil, onde foi a primeira a chegar, pelo Instituto Butantan, em uma negociação entre o governo do Estado de São Paulo com o governo chinês sucessivamente atacada pelo Palácio do Planalto
Patentes: reviravolta dos EUA surpreende
Surpresa, perplexidade, esperança. Estas foram as reações tanto no mundo da saúde, quanto no da política internacional, mais ainda na indústria farmacêutica, com a virada de 180° do governo dos Estados Unidos em relação às patentes das vacinas.
Em uma decisão considerada histórica, o governo Joe Biden anunciou no início de maio apoio ao um pedido feito em outubro pela Índia e África do Sul à Organização Mundial do Comércio (OMC) para que o órgão recomende a dispensa temporária dos direitos de propriedade intelectual de medicamentos e vacinas usados no tratamento e na prevenção da covid-19. A proposta já ganhou o apoio de 57 países em desenvolvimento – exceto o Brasil, que se alinhou com a posição contrária de países ricos.
O Informe quinzenal sobre Saúde Global e Diplomacia da Saúde do Centro de Relações Internacionais em Saúde (CRIS) da Fundação Oswaldo Cruz, que circulou em 21 de abril, usou o adjetivo “surpreendente” para a nota assinada pela representante dos EUA para o comércio, Katherine Chi Tai, anunciando a abertura à discussão de flexibilização nas regras de propriedade intelectuaI.
A proposta ganhou também o apoio do governo chinês em 13 de maio, conforme anunciou o embaixador da China no Brasil, Yang Wanming, em sua conta no Twitter.
Tecnicamente, o que está em debate é uma renúncia de algumas disposições do Acordo TRIPS, sigla em inglês para Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights (Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio). Assinado em 1994, o TRIPS foi um dos temas mais importantes da chamada Rodada Uruguai, que culminou na criação da Organização Mundial do Comércio (OMC). O tratado resultou de intenso lobby da indústria farmacêutica apoiada pelos países ricos, em especial Estados Unidos, União Europeia e Japão.
A proposta de dispensa temporária dos direitos de propriedade intelectual de medicamentos e vacinas, usados no tratamento e na prevenção da covid-19, visa aumentar a capacidade de produção das vacinas que tem avançado muito lentamente.
A edição especial do Jornal da Ciência, “Em busca da vacina verde-amarela”, está disponível para download gratuito neste link. Acesse a publicação completa e compartilhe!