STF avaliza terceirização irrestrita e é porto inseguro para os trabalhadores
O Supremo Tribunal Federal (STF), por sete votos a quatro, em julgamento virtual de cinco ações diretas de inconstitucionalidades (ADIs) 5685, 5686, 5687,5695 e 5735, concluído dia 15, julgou constitucional a Lei nº 13.429/2017, que autoriza a terceirização, a quarteirização etc, em todas as atividades; isto, além de criar empresas de locação de mão de obra, como acontecia no período da escravidão.
Essa decisão não causa nenhuma surpresa, posto que, em 2018, ao julgar o recurso extraordinário (RE) 958252, pelo mesmo placar de sete a quatro, o STF já escancara a terceirização, firmando a seguinte tese com repercussão geral: “”É lícita a terceirização ou qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas, independentemente do objeto social das empresas envolvidas, mantida a responsabilidade subsidiária da empresa contratante”.
Votaram contra a liberação total da terceirização, em 2018 e agora, os ministros Marco Aurélio, Ricardo Lewandowski, Edson Fachin e a ministra Rosa Weber.
O que causa espanto e temor, na recente decisão, são os fundamentos do voto do ministro relator, Gilmar Mendes, acolhidos por seis outros ministros, para declarar constitucional a citada Lei e, consequentemente, improcedentes os pedidos de inconstitucionalidade.
Tais fundamentos incensam a não mais poder o capital, na mesma proporção que amaldiçoam os direitos fundamentais sociais e a Justiça do Trabalho, chegando a declarar a necessidade de sua “refundação”.
Para espancar quaisquer dúvidas, caso ainda haja, quanto ao desapreço da maioria do STF pelos comentados direitos fundamentais sociais, vale a transcrição de mais alguns excertos do voto vencedor:
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Esta Corte reconheceu a constitucionalidade da terceirização em quaisquer das etapas ou atividades da cadeia de produção, em acórdão assim ementado:
Quando do julgamento dos precedentes acima, tive oportunidade de abordar em meu voto a controvérsia objeto das ações diretas agora em julgamento.
Como me pronunciei naquela oportunidade, entendo que devemos analisar a terceirização da atividade-fim sob dois primas: i) a terceirização no contexto das mudanças socioeconômicas dos últimos tempos; e ii) a imprestabilidade do critério atividade-meio versus atividade-fim.
Terceirização, mercado e emprego Inicialmente, é preciso destacar que o tema em questão encerra múltiplas facetas, fazendo com que o problema seja, em grande medida, muito mais sociológico do que jurídico. É quase desnecessário enfatizar o valor do trabalho para a atividade humana. Por conseguinte, a sua regulação por meio do Direito do Trabalho assume a mesma importância. Sendo assim, de início, convém salientar que da pretensão de releitura do trabalho, do mercado e do direito do trabalho não resulta uma fragilização e uma precarização desses temas.
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Para admitirmos que os ares socioeconômicos são completamente diversos daqueles em que se assentaram as bases principiológicas do Direito do Trabalho, basta observar que a maior empresa de transportes do mundo não tem um carro sequer, e a maior empresa de hospedagem do mundo também não dispõe de um único apartamento.
Refiro-me aos paradigmáticos Uber e Air B&B, ambos fundados em economia colaborativa e na descentralização da atividade econômica entre diversos agentes mercadológicos.
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No entanto, é preciso lembrar que essa é uma premissa econômica, que não leva em consideração o fator de liberdade que a empresa tem para se conduzir por um ou por outro caminho (internalização vs. externalização).
No nosso sistema jurídico não há, de fato, essa liberdade, ou seja, a empresa não conseguirá se conduzir de acordo com os custos de transação trazidos pelo mercado em si. Isso porque encontram no Direito mais um vetor de ampliação de custos.
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Ou seja, as empresas são chamadas a financiar um determinado modelo de estado que traz consigo inúmeros custos que extrapolam a lógica do mercado em si mesma. É óbvio que a imposição, por parte do Estado, no sentido da internalização da cadeia produtiva, resulta na mitigação da liberdade de iniciativa. E mais: onera empresas que, num contexto moderno, passam a adotar uma estratégia econômica que reduz ‘a extensão de sua organização econômica hierarquizada, sem, contudo, reduzir a extensão do mercado econômico que ocupam‘. ( Idem. Ibidem. )
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A terceirização é justamente um consectário desse modelo descentralizado, externalizado. E, se as bases socioeconômicas são outras, é inevitável que tenhamos que conformar a disciplina em torno delas.
2. Atividade-meio versus atividade-fim
Em um cenário de etapas produtivas cada vez mais complexo, agravado pelo desenvolvimento da tecnologia e pela crescente especialização dos agentes econômicos, torna-se praticamente impossível divisar, sem ingerência do arbítrio e da discricionariedade, quais atividades seriam meio e quais seriam fim.
O critério insculpido a partir da Súmula 331 do TST, como analisado na ADPF 324, não se coaduna com a realidade empresarial e econômica moderna, sendo um critério aplicável à luz do subjetivismo. E assim o sendo, sob o prisma jurídico, revela-se como um não critério, na medida em que dele não se pode retirar normatividade, em razão da falta de definição segura das suas hipóteses de aplicação.
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Ao fim e ao cabo, a engenharia social que a Justiça do Trabalho tem pretendido realizar não passa de uma tentativa inócua de frustrar a evolução dos meios de produção, os quais têm sido acompanhados por evoluções legislativas nessa matéria.
Não se trata aqui de fazer uma ode à informalidade e um réquiem das garantias trabalhistas, muito pelo contrário. A flexibilização passa necessariamente por ajustes econômicos, políticos e jurídicos, que resultarão no aumento dos níveis de ocupação e do trabalho formal, que, por conseguinte, trará os desejáveis ganhos sociais.
Portanto, é nessa balança entre o ideal – por vezes ideológico e utópico – e o real que o problema se coloca. Sem trabalho, não há falar-se em direito ou garantia trabalhista. Sem trabalho, a Constituição Social não passará de uma carta de intenções.
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Propõe-se, assim, uma equalização entre o valor do trabalho e a sua contribuição no processo de desenvolvimento econômico e social, superando-se a orientação marxista que, reitere-se, demoniza o capital e insere o trabalho como uma mera relação de poder e submissão. Aqui, estamos estabelecendo que o valor jurídico do trabalho seja compatível com o seu valor fático. Só assim superaremos a consagração artificial de direitos trabalhistas, atingindo a valorização do trabalho na medida do seu real valor.
Paternalismo e a necessária refundação do Direito e da Justiça do Trabalho Nelson Rodrigues já dizia que ‘subdesenvolvimento não se improvisa; é fruto de séculos‘. Os dilemas que hoje o mercado nos impõe, e que exige que reflitamos a respeito do nosso modelo de direitos sociais, nomeadamente os trabalhistas, são fruto de uma cultura paternalista que se desenvolveu há décadas. O Direito do Trabalho brasileiro baseia-se em uma premissa de contraposição entre empregador e empregado; na prática, uma perspectiva marxista de luta entre classes. Essa dicotomia é um clássico do chamado conflito distributivo.
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Disso resulta uma demonização do capital, uma ideologia que impregnou até mesmo a feitura do texto constitucional brasileiro nessa matéria. Como destacou Roberto Campos:
‘A cultura que permeia o texto constitucional é nitidamente antiempresarial. Decretam-se as conquistas sociais que, nos países desenvolvidos, resultam de negociação concretas no mercado, refletindo o avanço da produtividade e o ritmo do crescimento econômico. A simples expressão conquista social implica uma relação adversária, e não complementar, entre a empresa e o trabalhador. Elencam-se 34 direitos para o trabalhador, e nenhum dever. Nem sequer o dever de trabalhar, pois é praticamente irrestrito o direito de greve, mesmo nos serviços públicos. Obviamente, ninguém teve coragem para incluir, entre os ‘direitos fundamentais’, o direito do empresário de administrar livremente sua empresa’. (Roberto Campos, A utopia social, A lanterna na popa, v. II, p. 1205)
O contexto é, portanto, de um desequilíbrio entre posições jurídicas que não mais se sustenta, pois a própria premissa de submissão da mão de obra ao capital merece ser revista.
No texto constitucional, os vetores da valorização do trabalho e da livre iniciativa estão postos, estrategicamente, lado a lado. Estão assim postos enquanto fundamentos da República Federativa do Brasil, logo no artigo inaugural da Constituição, e como princípios da ordem econômica, no art. 170.
Disso resulta um mandamento constitucional de equalização desses vetores, bastante diferente do cenário jurídico paternalista que construímos ao longo dos anos, antes mesmo da promulgação da Constituição de 1988.
O reconhecimento da constitucionalidade da terceirização de atividades inerentes à atividade-fim revela-se como instrumento de equalização dos agentes de mercado envolvidos, atendendo, portanto, às diretrizes constitucionais acima citadas. Logicamente, a prática da terceirização coloca em xeque conceitos basilares do Direito do Trabalho tal qual o conhecemos. Será preciso, portanto, refundar o Direito do Trabalho, instaurando novos pontos de ancoragem ou, no mínimo, reformulando os seus mais fundamentais conceitos. Também a Justiça do Trabalho estará diante do grande desafio de coibir abusos, nomeadamente o uso ardiloso da terceirização como expediente de pulverização da cadeia produtiva com vistas a impedir, em qualquer altura do processo produtivo, que alguma empresa arque com os direitos trabalhistas envolvidos. A rigor, do modelo de produção horizontalizado, terceirizado, não decorrem necessária e intrinsecamente fraudes e ilicitudes.
Enfim, somos chamados a decidir entre a utopia e a realidade. Tenho reiterado a lição de Peter Häberle no sentido de que a nossa evolução constitucional deve ocorrer entre a ratio e a emotio, ponderando-se o que Ernst Bloch chamou de princípio-esperança com o que Hans Jonas chamou de princípio-responsabilidade. (HÄBERLE, Peter. El Estado Constitucional . Trad. Héctor Fix-Fierro. México D.F: Universidad Autónoma de México; 2001, p. 7)
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Não vejo, portanto, qualquer violação à Constituição Federal a determinar a nulidade da lei impugnada. Ante o exposto, julgo improcedente a presente ação direta de inconstitucionalidade. É como voto”.
Cenários tenebrosos
São tenebrosos os cenários que se revelam nessa apologia ao neoliberalismo, em forma de voto, tendo como mentor mor o declarado inimigo dos direitos sociais, Roberto Campos.
Nela se explicitam as seguintes teses, majoritárias no STF:
I o STF, como tem sido a tônica dos últimos anos, continuará a ser porto absolutamente inseguro para os direitos sindicais e trabalhistas, ao qual se não devem aportar-se, em nenhuma hipótese, sob pena de saírem em uma mortalha;
II ao reverso do que preconiza o Art. 170, caput, da CF, o fundamento da ordem econômica é tão somente a valorização da livre iniciativa, desprezando-se, por inteiro, a do trabalho humano, que, no texto constitucional, vem em primeiro lugar;
III como vaticinado pelo deputado federal José Carlos Aleluia, DEM-BA, por ocasião da votação do PL 4.330, convertido na Lei 13.429/2017, declarada constitucional, para a atual maioria do STF, não haverá mais categorias profissionais, só terceirizados; a apologia ao Uber e à Air B&B tem esse exato propósito;
IV tal como sustentado pelo presidente Jair Bolsonaro, desde a campanha eleitoral, aos trabalhadores é negada a garantia de acumulação de emprego e direitos; têm de se contentar com emprego, quando o conseguir; afinal, no atual estágio social, para o STF, Estado Democrático de Direito não passa de utopia e entrave econômico;
V A Justiça do Trabalho, na sua “refundação”, como salienta o relator, terá de ser protetiva da liberdade econômica e não dos direitos dos trabalhadores.
A isso, a maioria do STF chama de modernidade e de rompimento das amarras utópicas e ideológicas dos direitos sociais.
Triste Brasil!
José Geraldo de Santana Oliveira, consultor jurídico da Contee