33 anos de CF: Apesar dos ataques, Constituição Cidadã segue no panteão da história
Por José Geraldo de Santana Oliveira*
“Em grandes épocas históricas, vinte anos representam um dia ou talvez menos; mas, há dias que concentram em si vinte anos ou mais.” (Marx, em sua correspondência com Engels)
Essa contundente sentença, que trata das transformações sociais, muito embora pronunciada há mais de um século, calha bem com o significado do dia 5 de outubro para o Brasil e os/as brasileiros/as.
Nesse dia, há exatos 33 anos, foi promulgada a Constituição Federal (CF) de 1988 — a Constituição cidadã, segundo a proclamou Ulysses Guimarães, sem favor o maior estadista deste país —, que encerrou dezenas de anos de intensas e heroicas lutas sociais em prol da ordem democrática que ela consagra, desde seu Preâmbulo, assim exarado:
“Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL”.
Se, por um lado, é fato que o Brasil, com as referidas lutas heroicas, gerou a CF e não o contrário, também o é que ela o fez cidadão pela primeira vez em seus quase cinco séculos de história. O Brasil que emergiu da promulgação da CF, aos 5 de outubro de 1988, a não ser pelo seu povo e seu território, não guarda nenhuma sintonia com aquele que vigeu até sua véspera: 4 de outubro de 1988.
O Brasil que a CF deu à luz não é mais aquele em que causa social era questão de polícia — como constatara o último presidente da República Velha, Washington Luís —, ou aquele da liberdade de ação e expressão garroteada pelo Ato Institucional (AI) N. 5/1968, ou o do Decreto-lei N. 477/1969, da Lei de Segurança Nacional, que, a rigor, só representava a segurança dos que vilipendiavam a nação.
Ao contrário, o país que dela emergiu é o da esperança e do desabrochar do porvir; da igualdade de direitos entre homens e mulheres, do campo e da cidade; da liberdade de expressão e de ação; da educação como primeiro direito fundamental social; da saúde como direito de todos/as e dever do Estado, que se concretizou no Sistema Único de Saúde (SUS), o maior e mais amplo programa de saúde do mundo, presente nos 5.570 municípios do Brasil, que impediu, apesar da Emenda Constitucional (EC) da morte, a 95/2016, e do atual governo federal, que a pandemia da Covid-19 ceifasse milhões de vidas; da previdência social como o maior e mais eficaz instrumento de inclusão social, que representa a mola propulsora da dignidade e do desenvolvimento de mais de 4.100 municípios que têm nela sua principal fonte de riqueza, apesar de todas as mutilações que já lhe foram impostas por meio das emendas constitucionais (ECs) 20/1998, 41/2003, 47/2005 e, sobretudo, 103/2019; dentre outras inapagáveis garantias.
Tudo isso não obstante as 111 ECs que a alteraram, sendo que, de todas elas, tão somente 15 tiveram como escopo a ampliação de direitos; as demais, em regra, visaram ao contrário, tendo como maiores referências de retrocessos sociais a 95/2016, que congelou os investimentos públicos por 20 anos, e a 103/2019, que dinamitou a previdência social.
Vale ressaltar que, surrealmente, ao menos 37 das citadas ECs destinaram-se, no todo ou em parte, a modificar os Atos das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCTS), que, como a própria denominação está a dizer, tinham, em 1988, caráter transitório e nada mais.
Não obstante todos esses ataques já perpetrados e os que se acham em curso, como a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 32/2020, que tem como objetivo precípuo a volta do Estado privatizado, desprovido dos princípios que regem a administração pública estabelecidos pelo seu Art. 37 — legalidade, moralidade, impessoalidade, publicidade, transparência e eficiência —, a CF encontra-se, desde sua promulgação, e, com certeza, estará pelos séculos vindouros, no panteão da história do Brasil.
Indiscutivelmente, cabem-lhe bem os emblemáticos versos 11574 a 11584 da imortal obra do poeta alemão Goethe, “Fausto”, notadamente quanto aos seus objetivos e vestígios:
“Da sabedoria é conclusão superior:
Faz jus à liberdade e à sua existência
Só quem diariamente a conquistar com destemor.
Cercado de perigos é assim a vivência
Dessas crianças, adultos e velhos a se agitar.
Gostaria eu de tal multidão vislumbrar
E conviver com homens livres em terra livre
Para poder dizer ao momento fugaz:
Continua aqui. És belo! Não te vás!
Os vestígios de meus dias, na Terra passados,
Nem em milênios poderão ser apagados”.
*José Geraldo de Santana Oliveira é consultor jurídico da Contee