57 anos sem Che Guevara, mártir da libertação latino-americana
Argentino foi uma figura central da Revolução Cubana e um dos arquitetos da primeira experiência socialista das Américas
Há 57 anos, em 9 de outubro de 1967, Che Guevara era assassinado pelo Exército boliviano. Terminava assim a saga épica de um dos homens mais extraordinários do século 20. Médico, guerrilheiro, estrategista militar e teórico marxista, Che Guevara foi uma figura central da Revolução Cubana e um dos arquitetos da primeira experiência socialista das Américas.
Auxiliou igualmente na articulação de outros movimentos insurrecionais pelo mundo, convertendo-se em um dos maiores ícones da esquerda revolucionária — e tornando-se um símbolo da luta contra a opressão, a injustiça social e o imperialismo.
Batizado Ernesto Rafael Guevara de la Serna, Che Guevara nasceu em Rosário, província de Santa Fé, em 14 de junho de 1928. Era o primogênito dos cinco filhos do arquiteto Ernesto Guevara Lynch e da ativista Celia de la Serna. Quando ainda era um bebê, foi acometido por problemas respiratórios, levando os pais a se mudarem para o pequeno vilarejo serrano de Alta Gracia.
Cursou o ensino básico na Escola Deán Funes, em Córdoba, e foi desde cedo influenciado pelos valores de esquerda da família. Sua mãe era uma militante feminista e sufragista, e o pai era apoiador das forças republicanas durante a Guerra Civil Espanhola, além de ter operado uma célula de espionagem antinazista durante a Segunda Guerra Mundial. Che interessou-se pela leitura e por esportes, destacando-se como jogador de rúgbi.
O jovem se mudou com a família para Buenos Aires em 1946 e ingressou no curso de medicina da Universidade de Buenos Aires no ano seguinte. Aprofundou o contato com as ideias socialistas durante a graduação, lendo obras de Karl Marx, Friedrich Engels e Lenin. Intercalou suas atividades acadêmicas com viagens que teriam grande impacto na sua visão de mundo.
Diários de Motocicleta
Foi em 1950 que Che Guevara explorou as províncias setentrionais da Argentina com uma bicicleta motorizada. No ano seguinte, fez uma viagem continental de motocicleta ao lado de seu amigo Alberto Granado, percorrendo 8 mil quilômetros e visitando Argentina, Chile, Peru, Equador, Colômbia, Venezuela e Panamá.
Durante a viagem, Che Guevara e Granado prestaram atendimento médico gratuito às populações desassistidas e serviram como voluntários em um leprosário na Amazônia. O contato com a pobreza, desigualdade social e com as péssimas condições de vida contribuíram para a radicalização do pensamento político de Che Guevara e insuflaram o seu desejo de libertar a América Latina do jugo do neocolonialismo e da exploração capitalista.
As anotações feitas por Che durante a viagem seriam futuramente utilizadas para redigir o livro Diários de Motocicleta, que se tornaria um best seller e inspiraria um documentário homônimo. Após retornar para Buenos Aires em 1953, concluiu o curso de medicina, especializando-se em imunologia. Aceitando o convite do médico Salvador Pisani, trabalhou por um breve período em uma clínica especializada em alergia, mas logo cedeu ao seu espírito aventureiro e embarcou em uma nova viagem continental, dessa vez acompanhado por Carlos Ferrer.
Nesse novo périplo, Che Guevara visitou Bolívia, Peru, Equador, Panamá, Costa Rica, Nicarágua, Honduras e El Salvador. Em 1954, instigado pelas reformas sociais conduzidas pelo presidente Jacobo Arbenz Guzmán, o jovem médico partiu para a Guatemala.
O revolucionário tinha especial interesse em acompanhar o ambicioso projeto de reforma agrária tocado por Arbenz, que já havia desapropriado e distribuído mais de 225 mil acres de terras da United Fruit Company. No país, ele iniciaria um romance com a economista Hilda Gadea, integrante da Aliança Popular Revolucionária Americana (APRA), que o apresentou a funcionários do alto escalão do governo guatemalteco.
Em junho de 1954, Arbenz foi deposto por um golpe de Estado orquestrado pela CIA, visando proteger os interesses econômicos das corporações norte-americanas no país. Che chegou a se unir a uma milícia organizada pela Juventude Comunista com o objetivo de combater a quartelada, mas foi desestimulado pela inação do grupo e pela capitulação do mandatário deposto.
Perseguido pelos aparelhos repressivos comandados pelo coronel Carlos Castillo Armas, Che Guevara buscou refúgio no consulado argentino até receber um salvo-conduto e partir para o México.
1959: a Revolução Cubana
Na capital mexicana, trabalhou como médico e fotógrafo e reencontrou um grupo de exilados cubanos que havia conhecido na Guatemala. Foi então apresentado aos irmãos Raúl e Fidel Castro, líderes do Movimento 26 de Julho, que se ocupavam em articular uma guerrilha para derrubar o ditador cubano Fulgencio Batista. Decidido a tomar parte do movimento, iniciou o treinamento militar e o estudo de táticas de guerrilha.
Em novembro de 1956, Che Guevara embarcou para Cuba a bordo do iate Granma. Ao desembarcarem na província de Oriente, os guerrilheiros foram atacados, mas um grupo conseguiu se refugiar na Serra Maestra. Os rebeldes rapidamente ganharam apoio da população campesina e iniciaram a formação de um Exército Revolucionário.
Che Guevara seria um dos quatro comandantes das forças revolucionárias, ao lado de Raúl e Fidel Castro e de Camilo Cienfuegos, liderando a Coluna Nº. 4.
O argentino foi o principal responsável por conduzir a estratégia de cooptação do apoio popular, fundando clínicas médicas e escolas para alfabetizar os camponeses e construindo fornos coletivos e oficinas para o ensino de táticas militares em apoio à guerrilha. Ele foi também o criador da Rádio Rebelde, que fornecia comunicação por radiotelefone para os combatentes e difundia a propaganda do movimento revolucionário para a população cubana. Como líder militar, Che Guevara destacou-se pela rigidez e pela autoridade moral que tinha sobre suas tropas.
Che Guevara comandou diversas campanhas militares de grande importância para a neutralização das forças de Batista. Durante a Batalha de Las Mercedes, liderou um destacamento de 1.500 homens, logrando impedir que o Exército cubano cercasse e aniquilasse uma unidade guerrilheira comandada por Fidel Castro. Posteriormente, em meio à ofensiva final rumo a Havana, ele obteve uma série de vitórias táticas que lhe garantiram o controle de toda a província de Las Villas, culminando com tomada da capital, Santa Clara — última vitória militar decisiva das forças revolucionárias.
Em 1º de janeiro de 1959, Batista capitulou e fugiu de Cuba. As tropas guerrilheiras adentraram então em Havana sob aplausos efusivos da população. Após o fim do conflito, Che Guevara refugiou-se em uma casa de veraneio em Tarará, a fim de se recuperar de uma crise de asma. Casou-se poucos meses depois com a guerrilheira Aleida March.
Após o triunfo da Revolução Cubana, o revolucionário assumiu o posto de comandante da prisão de La Cabaña, atuando como revisor de apelos dos soldados que haviam sido condenados por crimes de guerra. A pedido de Fidel, ele embarcou em uma excursão diplomática de três meses a 14 países da África e Ásia. Após retornar a Cuba, foi nomeado diretor Instituto Nacional de Reforma Agrária (INRA), efetuando uma abrangente campanha de desapropriação de grandes latifúndios e redistribuição de terras para os camponeses
Che foi responsável por coordenar a Campanha Nacional de Alfabetização. O programa envolveu mais de 100 mil voluntários e é considerado até hoje um dos mais bem sucedidos esforços de erradicação do analfabetismo da história. A taxa de analfabetismo de Cuba despencou de 38% para 3,9% em apenas oito meses. Em 22 de dezembro de 1961, Cuba foi declarada “Território Livre do Analfabetismo”.
O argentino visitou o Brasil nesse mesmo ano, ocasião em que foi condecorado por Jânio Quadros com a Grã Cruz da Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul — a mais alta comenda destinada a estrangeiros.
Ele exerceu ainda os cargos de ministro da Fazenda, Indústria e também presidente do Banco Nacional. Nessas funções, instituiu os programas de nacionalização de bancos, fábricas e empresas, universalizou o direito ao emprego e alocou recursos para a ampliação dos serviços de saúde, educação e habitação.
Também criou as Jornadas de Trabalho Voluntário — frentes que visavam impulsionar a economia da ilha e educar politicamente a população, estimulando os valores do “Novo Homem”, tais como a igualdade, a solidariedade, o altruísmo e a cooperação. O programa obrigava os burocratas do governo a comparecerem às frentes para executar trabalhos manuais ao lado dos operários
Para compensar as perdas de parceiros comerciais causadas pelas sanções econômicas impostas pelos Estados Unidos e seus aliados europeus, Che buscou fortalecer os vínculos diplomáticos com as nações socialistas, celebrando uma série de acordos com União Soviética, Checoslováquia, Coreia do Norte, Hungria e Alemanha Oriental.
Che Guevara foi responsável por treinar as tropas que enfrentaram e derrotaram as milícias de exilados cubanos financiados pelos Estados Unidos durante a Invasão da Baía dos Porcos. O episódio marcou o aprofundamento da cisão entre os governos cubano e norte-americano e reforçou a orientação socialista da Revolução Cubana. Posteriormente, ele conduziria os acordos com a União Soviética que viabilizaram o transporte de mísseis balísticos para a ilha, dando início à Crise dos Mísseis — ápice da tensão nuclear durante a Guerra Fria.
Em 1964, chefiou a delegação cubana despachada para a Assembleia Geral da ONU, proferindo um famoso discurso condenando o imperialismo, colonialismo, o racismo norte-americano e o regime do apartheid na África do Sul. Intensificou desde então sua atuação diplomática, visitando a China e uma série de nações africanas, asiáticas e europeias, sempre exortando a união internacional contra o imperialismo e a exploração ocidental.
Não obstante, seu posicionamento favorável à China durante a Ruptura Sino-Soviética causou desentendimentos com Fidel, que advogava uma visão diplomática mais pragmática.
A luta de um revolucionário
Em 1965, Che Guevara embarcou para a África, servindo como emissário do governo cubano no auxílio aos movimentos revolucionários e anticoloniais do continente. Ofereceu-se para atuar na guerrilha no Congo, integrando a chamada “Rebelião Simba” — movimento liderado por Laurent-Désiré Kabila, que lutava contra as tropas do ditador Mobutu Sese Seko e os mercenários pró-apartheid financiados pelos Estados Unidos e pela África do Sul.
Che Guevara, entretanto, frustrou-se com as rivalidades entre os comandantes rebeldes e teve suas estratégias neutralizadas por uma série de operações conduzidas pela CIA. Demovido por seus próprios soldados, retirou-se do conflito e refugiou-se na embaixada cubana em Dar es Salaam, na Tanzânia, onde participou de reuniões com a Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) e outras organizações revolucionárias.
Em novembro de 1966, viajou para a Bolívia, a fim de articular um movimento revolucionário contra a ditadura de René Barrientos Ortuño. Instalou um acampamento militar no Vale do Rio Ñancahuazú, no sudeste do país, e iniciou a formação de um Exército guerrilheiro. A unidade revolucionária obteve uma série de vitórias em escaramuças contra as tropas bolivianas no primeiro semestre de 1967.
Não obstante, o movimento não conseguiu conquistar o apoio dos camponeses e nem articular a união das lideranças locais. Também não recebeu o apoio esperado do Partido Comunista da Bolívia, que se recusou a prestar assistência à guerrilha.
O argentino não sabia que os militares bolivianos estavam recebendo cooperação técnica dos Estados Unidos. Washington havia despachado para a Bolívia uma equipe de comandos da Divisão de Atividades Especiais da CIA e batalhões de elite das Forças Especiais do Exército para auxiliar na busca pelo revolucionário. Ele foi capturado pelas Forças Especiais da Bolívia em La Higuera, no departamento de Santa Cruz.
Che Guevara foi executado em 9 de outubro de 1967, com nove tiros de carabina. Sua morte foi confirmada pelo governo cubano no dia 15 de outubro, causando enorme comoção mundial. Seus restos mortais foram trasladados para Cuba em 1997 e sepultados com honras militares em um mausoléu na cidade de Santa Clara.
Malgrado o esforço incansável da mídia ocidental em vilanizá-lo, Che Guevara permanece como um expoente maior da luta contra a opressão, servindo de referência para movimentos revolucionários e líderes políticos em todo o planeta há várias gerações.
Nelson Mandela o definiu como “uma inspiração para todo ser humano que ama a liberdade”, enquanto Jean-Paul Sartre o descreveu como “não apenas um ser humano, mas também o mais completo dos seres humanos de nossa época”. Frantz Fanon o chamou de “o símbolo mundial das possibilidades de um homem”.
Inspirada por suas ações e formulada por Régis Debray, a Teoria do Foco Insurrecional (ou Foquismo) teve grande influência nos movimentos guerrilheiros latino-americanos entre as décadas de 60 e 70.
Para além da sua capacidade de ação material, Che Guevara também se destacou por sua produção intelectual, tendo exposto suas concepções políticas em diversas obras (A Guerra de Guerrilhas, O Socialismo e o Homem em Cuba, etc.). Foi poeta e frasista excepcional, tendo cunhado diversas expressões célebres.
Há uma bem conhecida que sintetiza plenamente seu aguerrido espírito revolucionário: “se você é capaz de tremer de indignação a cada vez que se comete uma injustiça no mundo, então somos companheiros”.