70 anos de bombas e vítimas

 

“Pensem nas crianças

Mudas telepáticas

Pensem nas meninas

Cegas inexatas

Pensem nas mulheres

Rotas alteradas

Pensem nas feridas

Como rosas cálidas

Mas, oh, não se esqueçam

Da rosa da rosa

Da rosa de Hiroshima

A rosa hereditária

A rosa radioativa

Estúpida e inválida

A rosa com cirrose

A antirrosa atômica

Sem cor sem perfume

Sem rosa, sem nada”

(Rosa de Hiroshima – Vinicius de Moraes)

A primeira explosão de uma bomba atômica na história da humanidade aconteceu há exatos 70 anos, no dia 6 de agosto de 1945, uma segunda-feira. Eram 8h15 da manhã quando o explosivo contento 50 quilos de urânio 235, com potencial destrutivo equivalente a 15 mil toneladas de TNT, atingiu o centro da cidade de Hiroshima, no Japão. Três dias depois, em 9 de agosto, às 11h02 da manhã, era a vez de outra bomba norte-americana – dessa vez feita de plutônio 239 e com potência equivalente a 22 mil toneladas de TNT, ou seja, 1,5 vez mais potente que a bomba jogada sobre Hiroshima – atingisse a cidade de Nagasaki.

O rastro foi de centenas de milhares de mortos, seja pela explosão seja pelo envenenamento acarretado pela radiação.  Foi o primeiro e único momento na história em que armas nucleares foram usadas em guerra e contra alvos civis. No entanto, o terror daqueles dois bombardeios ainda paira sobre o planeta a cada vez que demonstrações de suposta superioridade militar se impõem contra o respeito à vida humana.

Quando Vinicius de Moraes pede, em seus versos, para que pensemos nas “crianças mudas telepáticas”, a imagem evocada pela canção, infelizmente, não se resume às vítimas da bomba de Hiroshima, naquele que foi um dos maiores atentados terroristas da história. Na verdade, esse terrorismo de Estado ainda se faz muito presente, quando, por exemplo, lemos que crianças palestinas são queimadas vivas por Israel em Gaza.

Em 2003, o escritor pernambucano Urariano Mora, colunista do Portal Vermelho, escreveu o texto “A Rosa da Palestina”, com referência ao poema-canção de Vinicius. Passados 12 anos, as palavras continuam atuais:

A Rosa da Palestina

Por Urariano Mota

Um poema de Vinícius ordena, suplica que “Pensem nas crianças mudas telepáticas. Pensem nas meninas cegas inexatas. Pensem nas mulheres rotas alteradas. Pensem nas feridas como rosas cálidas…”. É esse poema, “A Rosa de Hiroxima”, é essa talha em versos que ordena, que resiste e insiste em nossa memória, quando vemos a foto de Somaeah Hassan, de 6 anos, abatida na faixa de Gaza. Essa flor fuzilada, entre gazes, olhinhos semicerrados, é a própria Rosa da Palestina. Contenhamos a velocidade da mão, refreemos a velocidade da escrita, represemos o fluxo da leitura. Pedimos uma pausa no caleidoscópio, nas luzes fugazes, frívolas, vulgares do incessante ir e vir do noticiário de todos os dias. Somaeah Hassan está morta. Calma, buldogues, fechem suas bocas, canos quentes de balas, suspendam a digitação, noticiaristas, segurem por um instante a divulgação do mais quente e recente escândalo. Porque o escândalo já está feito: Somaeah Hassan está morta. Na foto, seus olhinhos se negam a compreender o horror das balas que a levantaram do chão de refugiados de Rafah. Negaram-se é maneira de dizer. São incapazes, nos seus 6 anos. Mais tempo houvesse, mais vida, outra vida tivesse, Somaeah compreenderia e se negaria a compreender o horror maior do seu povo cercado como cães raivosos. E a raiva, em cães, se abate. Mas a raiva, em gente feita cão, não se abate – apenas cresce, quando a crianças como Hassan abatem.

Refreemos a mão. É difícil. Mas tentemos.

Era bom, assim pede a paz que nosso peito deseja, era bom um lugar-comum que nos ajudasse, que nos socorresse. Dizer, por exemplo, que assim é a guerra, cruel como todas as outras, que nela não existem santos e demônios, que a guerra nos transforma a todos em anjos das trevas. Dito isto, seria melhor dizer que o terror feito pelo Estado de Israel apenas é uma resposta ao terror sofrido antes por sua gente. Dito isto, podemos afinal dizer que o mal e o mau têm que ser destruídos, para que só então a paz volte. Mas, ao chegarmos a este passo, perguntamos: mas de que mal e maus vocês falam, caras-pálidas? Pois será que ninguém ainda notou que a nossa cara tem a cara e o sangue da gente palestina? Que eles, os palestinos, são a nossa própria cara? Será que ninguém ainda percebeu que o desespero dos povos palestinos é o nosso próprio desespero em outras terras e em outras circunstâncias? Aquele mesmo desespero que acomete a gente em situações-limite? Ainda que os Estados Unidos exibam ao mundo um negro para consumo externo, ele apenas nos aparece como um novo Al Jolson, com a cara pintada. Os interesses de que ela fala não são os nossos. Servem à mesma rosa atômica que se fez cair em Hiroshima e Nagasaki.

Então voltemos, mais serenos. Mas, desgraça, descobrimos: serenos, não temos mais mãos. Temos somente uma grande letargia. Então quebremos o torpor, voltemos ao princípio.

“A rosa hereditária, a rosa radioativa, estúpida e inválida. A rosa com cirrose, a anti-rosa atômica” sofreu uma tradução no campo de refugiados da faixa de Gaza. Ela se fez uma rosa fuzilada, a Rosa da Palestina, no corpinho frágil de Somaeah Hassan. Essa menina nos fere como uma filhinha morta. Ela, em árabe, em dialeto, em outra língua, nos fala e a compreendemos como compreendemos e amamos uma própria filha que o nosso sêmen esculpiu. Mais: como um serzinho esculpido por nós por um nosso irmão. Mais: irmão com um sentido de irmão mais fundo que o genético. Mais: com um sentido de irmão mais fundo que o racial. Mais: com um sentido de irmão mais fundo que o nacional. Mais, finalmente: com um sentido de irmão que é o próprio sentido de humanidade. Hassan é a nossa própria humanidade abatida. Ela se abre em outras rosas que se despedaçam em Jerusalém. Rosas que em vez de pétalas jogam carnes, fígado, coração e intestinos.

Já secamos as lágrimas. Não nos perguntem portanto por que vomitamos. Nós não queríamos ter essas Rosas da Palestina.

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