Estado em guerra
Nenhum outro estado da Amazônia Legal teve uma explosão de clubes de tiro como Rondônia. O estado, que tem 1,8 milhão de habitantes e faz fronteira com a Bolívia, ganhou 33 estabelecimentos do tipo só entre 2019 e 2021. Hoje, já são 53 clubes. Ao mesmo tempo, Rondônia concentrou o maior número de assassinatos no campo em 2021, segundo dados da Comissão Pastoral da Terra, a CPT, ligada à Igreja Católica. Dos 35 homicídios no país, 11 aconteceram ali.
Não por acaso, Rondônia é, também, um dos estados em que os bolsonaristas mais têm se sentido à vontade para seus atos golpistas e terroristas de contestação à eleição. Na segunda-feira, o estado tinha oito pontos de obstrução de rodovias – numericamente, só perdia para o Mato Grosso, que estava com onze estradas fechadas. Militantes de esquerda e apoiadores do presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, relatam terem sido agredidos em bloqueios. A situação causa preocupação no estado vizinho, o Acre, que está sem ligação terrestre com o resto do país.
Rondônia é governada por Marcos Rocha, do União Brasil, um coronel da Polícia Militar que venceu as eleições de 2018 sem experiência política anterior e, agora, foi reeleito no segundo turno contra o também bolsonarista senador Marcos Rogério, do PL. Seu secretário de Segurança Pública, o coronel da PM José Hélio Cysneiros Pachá, foi um dos réus pelo Massacre de Corumbiara, ação policial que resultou na morte de 12 pessoas em agosto de 1995.
A violência contra camponeses, indígenas e outros povos tradicionais também se destaca no número de prisões e de agressões. Das 100 detenções registradas pela CPT, 76 foram em Rondônia, assim como 32 das 75 agressões e três dos 13 casos de tortura no país. Quando divulgou seu relatório, a CPT apontou o “emparelhamento protetor do estado brasileiro ao setor ruralista” como um dos fatores do aumento dessa violência e colocou as “agromilícias”, a “pistolagem sob encomenda” e a participação de agentes públicos como responsáveis pelos crimes.
Um dos casos mais emblemáticos dessa promiscuidade ocorreu em 2019, quando oito policiais militares foram presos sob a acusação de atuarem como “capangas” ou “guaxebas”, como dizem os rondonienses, de Chaules Volban Pozzebon. Ele era apontado pelo MPF como um dos maiores desmatadores e vendedores de madeira ilegal da Amazônia, com a propriedade de mais de 100 madeireiras.
Segundo as investigações, os PMs eram usados para a cobrança de “pedágio”, para o despejo forçado de trabalhadores e para ações de pistolagem na região de Cujubim. Um dos presos já era ligado pela CPT a outros casos de violência contra camponeses. Pozzebon foi condenado em 2021 a 99 anos de prisão por organização criminosa e extorsão.
Dos 11 assassinados ocorridos no estado, oito foram mortos nos acampamentos Tiago Santos e Ademar Ferreira, ligados à Liga dos Camponeses Pobres, a LCP. A liga é considerada um dos movimentos mais radicais de luta pela terra da atualidade – e Rondônia é o epicentro de suas atividades. Em um documento lançado em setembro, em que chamava Lula de “pelegão” e Bolsonaro de “celerado”, o movimento pregava contra a participação no processo eleitoral. Com o título “Abaixo a farsa eleitoral e o incremento da guerra contra os camponeses e o povo. Avançar a Revolução Agrária!”, o manifesto defendia a ação direta como instrumento de luta pelo acesso à terra.
Em Rondônia, Bolsonaro e o governador Rocha transformaram a LCP em alvo. Em maio do ano passado, quando participava da inauguração da Ponte do Abunã, que liga a capital do estado ao Acre, o presidente fez uma ameaça direta ao grupo. “LCP, se prepare! Não vai ficar de graça o que vocês estão fazendo. Não tem espaço aqui para grupo terrorista. Nós temos meios de fazê-los entrar no eixo e respeitar a lei”, bradou.
Não era a primeira citação direta. Dias antes, na abertura da Expozebu, em Uberaba, Minas Gerais, Bolsonaro qualificou as ações da liga como “terror no campo”. Adversário de Rocha nas eleições, Marcos Rogério também esteve afinado contra a liga. Ele apresentou em junho de 2021 um projeto de lei para enquadrar a ocupação de terras por movimentos sociais como terrorismo e chegou a afirmar que a proposta tinha como alvo a LCP.
Para o procurador Raphael Bevilaqua, do Ministério Público Federal em Rondônia, a classificação da atividade do movimento social como terrorismo é uma “acusação fantasiosa” e serviu para justificar o envio da Força Nacional de Segurança Pública ao estado. Ele defende que o envio foi ilegal, porque não apontava um objetivo específico e não vinha acompanhado de um plano de ação. A FNSP participou de operações ao lado da PM em que foram apontadas diversas violações aos direitos humanos.
Integrantes da liga também são investigados sob a acusação de terem participação na morte de pelo menos dois policiais militares. Além disso, entre presos e mortos em ações policiais, havia pessoas que chegaram a cumprir pena por crimes violentos. Isso não permite, no entanto, para o procurador da República, que o movimento seja apontado como terrorista. Segundo relatos de testemunhas, dos seis assassinados no acampamento Tiago dos Santos, pelo menos cinco foram atingidos por disparos feitos a partir de helicópteros.
Na ocasião, o governo de Rondônia confirmou a presença de atiradores nas aeronaves. Os moradores da área foram alvo de um despejo no ano passado, mesmo com a decisão do Supremo Tribunal Federal que proibia este tipo de ação durante a pandemia de covid-19.
Decidida pela justiça, a remoção foi prontamente cumprida pela polícia. Militantes de direitos humanos receberam denúncias de agressões e interrogatórios informais durante a ação policial. Segundo os moradores, muitas casas foram destruídas, assim como roças. Eles citaram também a contaminação de poços com combustível. A própria Secretaria de Segurança Pública de Rondônia confirmou ter recebido denúncias na época, que foram encaminhadas para as Polícias Civil e Militar.
O Judiciário também é criticado pela ação, porque a reintegração de posse foi dada à empresa de um fazendeiro reconhecido como grileiro. O pedido foi feito pela Leme Empreendimentos, de Antônio Martins dos Santos, conhecido como Galo Velho, e seu irmão, o advogado Sebastião Martins dos Santos. Eles são alvo, desde 2020, da operação Amicus Regem do Ministério Público Federal que investiga grilagem de terras com particiação de agentes públicos, inclusive membros do judiciário. A quadrilha teria faturado pelo menos R$ 330 milhões com crimes agrários entre 2011 e 2015. Por causa dessa investigação, o registro da fazenda alvo da reintegração de posse está bloqueado.
Uma nova operação foi deflagrada na semana passada, a Lamassu. Com o apoio da Polícia Federal e do Ministério Público Federal, o Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado do Ministério Público Federal desbaratou uma quadrilha com a participação de agentes públicos que servia de milícia privada para a proteção das atividades de grileiros. Segundo o promotor Anderson Batista, “há comprovação de que agentes públicos chegaram a fazer uso de veículos da polícia e armamento do estado para ameaçar pessoas e garantir ilegalmente posse de terra em regiões localizadas na Ponta do Abunã”. Com base nas investigações, foram cumpridos 32 mandados de prisão, cinco de busca e apreensão e um de afastamento de função pública.
Os militantes apontam ainda ações do Judiciário que dificultam o direito de defesa do movimento. Em novembro, a advogada Lenir Correia Coelho, defensora da Liga dos Camponeses Pobres, foi alvo de busca e apreensão em sua casa e local de trabalho. Segundo o advogado Felipe Nicolau, presidente da Associação Brasileira de Advogados do Povo, da qual ela faz parte, os policiais apreenderam o celular e o computador de trabalho da advogada, além de dinheiro em espécie, materiais de estudo, contratos de honorários e notas promissórias de clientes, muitas sem qualquer relação com a liga.
Para embasar sua decisão, o juiz Fábio Batista da Silva, da vara de São Francisco do Guaporé, afirmou que a advogada era, na verdade, uma das líderes do movimento, o qual acusa de ser uma “organização criminosa destinada à invasão de terras, e ainda lavagem de dinheiro, esbulho possessório e comércio ilegal de armas de fogo”. A inviolabilidade do advogado “por seus atos e manifestações no exercício da profissão” é prevista no artigo 133 da Constituição Federal.
“Eu estou com medo, que eu tenho quase certeza de que a coisa vai piorar”, disse à Agência Pública Marino D’Icahary, vice-presidente da Associação Brasileira dos Advogados do Povo que também representa integrantes da Liga dos Camponeses Pobres. “Esse enfrentamento vai ficar mais aberto e generalizado e escancarado com esse povo super treinado, milícias, entendeu?”.