Carlos Rodrigues Brandão: presente!
Morreu ontem (11), aos 83 anos, o educador Carlos Rodrigues Brandão. A Contee expressa seu profundo pesar, mas também enaltece o legado que continuará vivo em sua vasta obra dedicada à educação popular.
Amigo pessoal de Paulo Freire, Brandão era psicólogo formado pela Universidade Católica do Rio de Janeiro, mestre em antropologia pela Universidade de Brasília e doutor em ciências sociais pela Universidade de São Paulo. São dele os livros “O que é Método Paulo Freire”, “O que é educação”, “O que é educação popular” e “O que é Folclore”, da Coleção Primeiros Passos, da Editora Brasiliense.
Professor universitário, Brandão também escreveu poesia, literatura e abordou temas como cultura e educação ambiental. Em tempos de tantos ataques a educadores, reverenciar sua memória é também fazê-lo por todos aqueles que dedicaram e dedicam a a vida à educação como ato político e cidadão.
Leia abaixo texto publicado pelo cientista político Rudá Ricci no Twitter em homenagem a Brandão:
“Bom dia. Farei um fio em homenagem ao Carlos Rodrigues Brandão, que nos deixou ontem. Psicólogo e antropólogo, Brandão foi um dos maiores expoentes da educação popular. Farei um fio com a fala de Ciço. Lá vai:
1) Ciço apareceu no prefácio e posfácio de um livro publicado no início dos anos 1980. Brandão fazia uma pesquisa sobre como se educa crianças e jovens para fazerem a Folia de Reis. Era um tema caro para ele, desde os anos 1960: a cultura popular (desde o MEB)
2) Brandão conta que em 1982 a Editora Brasiliense reuniu em um livro vários longos e breves poemas que ele havia escrito e que ganho o título de ‘Diário de campo – a antropologia como alegoria’.
3) Este livro retratava seu olhar sobre a ‘arte e cultura entre negros e camponeses, sobretudo em Goiás, Minas Gerais e São Paulo (mais tarde a Galícia, na Espanha), sempre gostei de senti-los, de compreendê-los e de escrevê-los com uma também… outra linguagem.’ Daí surge Ciço.
4) Antes, uma passagem de Brandão por Machado, sul de Minas Gerais. Conta que passa por ele um capitão de terno de congos, e diz em voz alta: ‘Eh, professor! Quem sabe dança! Quem não sabe, estuda!’. A fala fisgou o antropólogo.
5) Antônio Ciço, Tonho Ciço e, ainda, Ciço, era lavrador de sítio na estrada entre Andradas e Caldas, no sul de Minas Gerais. Foi entrevistado por Brandão que buscava entender como se passava o ritual da Folia de Reis de pai para filho. A entrevista revelaria muito mais.
6) Ciço falou de educação. Das bases da educação popular. Começava assim: ‘o senhor chega e diz ‘educação’, vem do seu mundo, o mesmo, um outro. Quando eu sou quem fala vem dum outro lugar, de um outro mundo. Vem dum fundo de oco que é o lugar da vida dum pobre’
7) Com fina ironia, Ciço vai desvelando o que Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron tentaram analisar com profundidade: as escolhas de conteúdos escolares que apartam, de cara, a compreensão das diversas classes sociais inseridas numa sala de aula
8) Ciço fala para Brandão de dois mundos: ‘Quando eu falo o pensamento vem dum outro mundo. Um que pode até ser vizinho do seu, vizinho assim, de confrontante, mas não é o mesmo. A escolinha cai-não-cai ali num canto da roça, a professorinha dali mesmo’
9) Ciço, em seguida, lasca: ‘Estudo? Um ano, dois nem três. Comigo não foi nem três. Então eu digo ‘educação’ e penso ‘enxada’, o que foi pra mim.’
Quantas vezes ouvi um senhor ou uma senhora dizer, ao tentar escrever, que não sabia que o lápis era mais pesado que enxada?
10) Nós, educadores, não nos damos conta da distância entre intenção e gesto. Por este motivo que a fala de Ciço é um soco no estômago. Diz: ‘Estudo, foi estudo regular: um saber completo. Ele entra dum tamanho e sai do outro. Parece que essa educação que foi a sua tem uma força’
11) Completa: ‘Menino aqui aprende na ilusão dos pais; aquele ilusão de mudar com estudo, um dia. Mas acaba saindo como eu, como tantos, com umas continhas, uma leitura. Isso ninguém não vai dizer que não é bom, vai?’
12) Ciço sugere que a escola é ilusão para quem vive na roça: ‘Que a gente aprende mesmo, pros usos da roça, é na roça. É ali mesmo: um filho com o pai, uma filha com a mãe, com uma avó. Os meninos vendo os mais velhos trabalhando’
13) E, neste ponto, revela como é a educação não foral da roça: ‘tão ali, vai vendo um, outro, acompanha o pai, um tio. Olha, aprende. Tem inclinação prum cantorio? Prum instrumento? Canta, tá aprendendo; pega, toca, tá aprendendo. (…)
14) (…) Toca uma caixa (tambor da Folia de Reis), tá aprendendo a caixa; faz um tipe (tipo de voz do cantorio), tá aprendendo cantar. Vai assim, no ato, no seguir do acontecido. Agora, nisso tudo tem uma educação dentro, não tem? Pode não ter um estudo.’
15) Finalmente, Ciço dialoga sobre os princípios da educação popular: ‘Agora, o senhor chega e diz que até podia ser diferente, não é assim? Que não é só pra ensinar aquele ensininho apressado, pra ver se velho aprende o que menino não aprendeu.’ Atiçado por Brandão, lá vem Ciço
16) E completa: ‘Então que podia ser um tipo duma educação até fora da escola, sala. Que fosse assim dum jeito misturado com o-de-todo-dia da vida da gente daqui. Que podia ser um modo desses de juntar saber com saber e clarear os assuntos que a gente sente, mas não sabe. Isso?’
17) A fala de Ciço é um dos textos mais potentes que a educação popular brasileira já produziu. Um achado que Brandão encaixou num livro que escreveu sobre a questão política da educação popular. Porque educação é ato político, como Ciço nos ensinou.
18) A palavra política remete à organização social (de Pólis) e o político, para os gregos da Antiguidade, é justamente quem se preocupa com a comunidade, com a Pólis. Quem pensa apenas em si era chamado de ‘idiota’.
19) Brandão era poeta, psicólogo, antropólogo, foi reitor, mas nunca deixou de ser o que o fez especial para o Brasil: educador popular. Foi um dos mais importantes interlocutores de Paulo Freire. E nos presenteou com Ciço. Ninguém assim parte. Ele foi ali e logo volta. (FIM)”