A equidade no centro da educação básica

Da Lei 10.630/2003 ao 18º ODS

Em 2024, um dos mais importantes julgamentos realizados pela Suprema Corte americana no âmbito do debate racial na educação completará 70 anos. Trata-se do caso Brown vs. Board of Education, de 1954, que resultou na declaração da inconstitucionalidade da doutrina “separados mas iguais”, que positivava a segregação racial nas instituições de ensino americanas. Fundamentalmente, o entendimento da Suprema Corte àquela altura era de que a política de escolas segregadas violava o princípio de direitos iguais de proteção, como disposto pela décima quarta emenda.

Como nem sempre a realidade corresponde ao ordenamento jurídico, em 1960, assistimos a uma das cenas icônicas do século 20, protagonizada pela mesma sociedade americana. Nova Orleans se negou a aplicar a regra da dessegregação, levando o FBI a escoltar diariamente à escola uma criança negra de 6 anos, Ruby Bridges, para fazer cumprir a decisão da Suprema Corte.

Mas por que trazer o caso americano para uma discussão sobre a política educacional brasileira se não existem em nosso país barreiras legais que restrinjam ou impeçam o acesso e a trajetória educacional dos negros?

De fato, desde 1891, em nenhum dos nossos textos legais, encontramos positivada a segregação racial em ambiente escolar.

Todavia, isso não nos permite concluir que vivemos, também na educação, a suposta “democracia racial” idealizada para nossa sociedade como um todo, segundo a qual todos os estudantes convivem em pé de igualdade nos sistemas de ensino, gozando do pleno direito à educação, com garantia de padrão de qualidade.

Isso vai depender, por certo, da definição conceitual que se dê ao termo “segregação” ou à medida utilizada para dimensionar a sua existência.

Se nos anos 1960, Ruby era escoltada para assegurar o direito ao acesso a uma escola integrada, no Brasil, os dados da Pnad nos mostram que, em 1982, às vésperas da transição democrática, 62,2% de crianças pretas com 7 anos de idade, oriundas de famílias com renda per capita de até um quarto do salário-mínimo, nunca haviam frequentado a escola.

Usando os mesmos dados da Pnad de 1982, Hasenbalg e do Valle (1999) apontaram que dois terços das crianças pretas ou pardas, aos 13 e 14 anos, frequentavam a escola com atraso de 3 ou 4 anos, derivado tanto da entrada tardia nas instituições de ensino, quanto da reprovação sistemática.

Àquela altura, não tínhamos no Brasil dados relativos à aprendizagem dos estudantes, que só viemos a conhecer nos anos 1990, e de modo censitário, a partir de 2005.

Por certo, desde então o acesso à escola na idade adequada melhorou substancialmente no país e hoje praticamente universalizamos o ensino fundamental, com 98,4% de estudantes de 6 a 14 anos matriculados. Os níveis de reprovação também melhoraram, em decorrência de políticas públicas de regularização de fluxo, implementadas a partir dos anos 1990. Entretanto, os avanços na política educacional não ocorreram de modo equitativo.

Embora um dos princípios fundamentais da República seja a promoção do bem de todos, sem preconceitos de raça ou qualquer forma de discriminação, conforme o art. 3º da Carta Magna, na educação básica esse pressuposto encontrou muita dificuldade em ser traduzido em políticas educacionais alicerçadas em equidade racial.

Com efeito, a Lei 10.639/2003, modificada pela 11.645/2008, vinculou-se de modo importante e mais decisivo à dimensão curricular, de matriz identitária, mas não enfeixou outras dimensões da política educacional.

Por sua vez, o próprio princípio de equidade, enquanto um dispositivo jurídico-legal, só aparece no capítulo da educação da Constituição Federal em 2009, por força da Emenda Constitucional 59.

Todos esses aperfeiçoamentos foram e continuam sendo muito importantes e contribuíram para o debate racial na educação. Contudo, foram insuficientes para reduzir as desigualdades educacionais de atributo racial, na educação básica.

Em termos de infraestrutura, por exemplo, enquanto 66,5% de estudantes brancos estudam em escolas consideradas avançadas, esse percentual vai a 3,6% para estudantes pretos e 0,1% para indígenas. Ou seja, é possível dizer que se tem atualmente no país uma “infraestrutura das oportunidades”.

O financiamento educacional também padece de um grave problema de iniquidade. Se as transferências constitucionais obrigatórias têm uma perspectiva redistributiva, as discricionárias ou voluntárias apresentam um caráter fortemente regressivo.

Ao olharmos a média de transferências do governo federal para a educação básica municipal, em 2018, por exemplo, temos uma média por aluno negro de R$ 78,80 e R$ 82,42 para o aluno branco, na rede municipal, conforme análise de Callegari (2020). A este respeito, o Índice de Equidade de Redistribuição de Recursos Educacionais (IERRE), desenhado também por Caio Callegari (2020), mostrou a regressividade dos programas que fizeram parte das diversas edições vigentes do Plano de Ação Articulada (PAR).[1]

Soma-se a este cenário uma das maiores desigualdades do sistema educacional brasileiro, na perspectiva de raça, que é a aprendizagem.

Em 2019, enquanto 70,4% de crianças brancas eram alfabetizadas ao fim do 2º ano do ensino fundamental, esse percentual caía para 52,6% em relação à criança preta e 53% à parda.

Essa desigualdade persiste na medida em que ocorre a transição de uma etapa para outra, ou mesmo dentro de uma mesma etapa, como nos anos iniciais e finais do ensino fundamental. Em língua portuguesa, no 5º ano do SAEB de 2021, enquanto os estudantes brancos obtiveram uma proficiência de 219 pontos, o preto alcançou 186,4 e o pardo 209,9. No 9º ano, em matemática, a diferença entre os dois primeiros grupos, brancos e pretos, alcançou seis anos de atraso de aprendizagem.

Isso significa que, embora todos os estudantes estejam na mesma turma de 9º ano, a credencial escolar dos negros, sobretudo dos pretos, não se transforma em aprendizagem. Em outros termos, “juntos, mas desiguais”.

No ensino médio, por sua vez, há uma convergência de desigualdades na perspectiva de raça: no acesso, na evasão, na reprovação e, sem surpresa, na aprendizagem, são os alunos negros que apresentam menor realização educacional.

Pouco tempo atrás, um interessante artigo da Harvard Law Review concluiu que em larga medida Brown vs. Board of Education faliu no seu propósito de dessegregação, haja vista que à norma legal não ocorreu a implementação da política nos moldes que deveria ter acontecido.

Por aqui, a Lei 10.639/2003 foi a primeira a se constituir como uma ação afirmativa na educação básica, e também o primeiro dispositivo legal a ser assinado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva no seu primeiro mandato.

Certamente, ela impulsionou o debate racial na educação básica, levando a ganhos na política curricular, materiais didáticos, paradidáticos, além de formação de professores, ainda que em um patamar menor do que aquele que buscávamos.

De todo modo, 20 anos depois, o presidente Lula volta a governar o país e em recente conferência da ONU proferiu um dos discursos mais contundentes deste seu terceiro mandato.

Talhado conceitualmente na perspectiva da superação da desigualdade, o presidente apresentou ao mundo o comprometimento voluntário do país com o 18º Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS): a promoção da igualdade racial.

Do ponto de vista educacional, sobretudo da educação básica, o chamamento do presidente, que assinou a Lei 10.639 em 2003, nos mobiliza e nos implica, Ministério da Educação, a dar os passos seguintes e necessários à sua tradução mais estrutural bem como à sua implementação, coordenada pelo governo federal.

Isso significa que sob a liderança do presidente Lula e do ministro da Educação, Camilo Santana, em articulação com as redes estaduais e municipais de ensino, é hora de colocar uma concepção de equidade que estruture, organize e direcione o financiamento da educação, dos indicadores do SAEB, da infraestrutura das escolas, dos programas de formação e das lógicas de oferta educacional.

Em outros termos, é preciso implementar estruturalmente uma política educacional antirracista.

É necessário avançarmos em relação à régua universalista, importante, mas insuficiente, e nos orientarmos por uma perspectiva equitativa vertical, com recursos diferenciados para equilibrar desigualdades de partida e gerar resultados justos.

A reconstituição da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (Secadi), do MEC, cumpre também esta função e recebe com entusiasmo o 18º ODS, determinado pelo presidente.

[1] Fonte: Callegari, C. (2020). Equidade educacional na Federação brasileira: Opapel das transferências federais aos Municípios. [Dissertação de Mestrado em Administração Pública e Governo]. Escola de Administração de Empresas de São Paulo, Fundação Getulio Vargas)

ZARA FIGUEIREDO – Doutora em educação pela USP, com estágio pós-doutoral no Centro da Metrópole/USP. Docente do Departamento de Educação da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Atualmente é secretária nacional de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (Secadi) no MEC

Do portal JOTA

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