Mais um ano chega ao fim com a educação sob ataque no Brasil
O professor, escritor e sociólogo Florestan Fernandes (1920-1995), patrono da sociologia brasileira, enfatizava que a “educação é o mais grave dilema brasileiro. A sua falta prejudica da mesma forma que a fome e a miséria, ou até mais, pois priva os famintos e miseráveis dos meios que os possibilitem a tomar consciência de sua condição, dos meios a aprender resistir”. E deixava claro que não se trata de qualquer educação, mas a que educação de qualidade social e emancipatória das classes populares.
Há um ano, após o fim de um difícil processo eleitoral, com a vitória do candidato petista, única opção viável para derrotar um projeto antidemocrático, negacionista e irresponsável, boa parte da população brasileira anseia pela reconstrução de várias políticas públicas que retrocedemos desde 2016.
Esta esperança ainda nos move, até porque, como afirmava Paulo Freire, a esperança não é um capricho de teimosia, mas um imperativo categórico histórico e ontológico de todo ser humano.
No âmbito federal, algumas medidas e políticas foram anunciadas, especialmente para a educação básica, tais como o Compromisso Nacional Criança Alfabetizada, que prevê o fomento a um regime de colaboração entre União, estados e municípios; o Programa Escola em Tempo Integral, instituído pela lei nº 14.640 de 31 de julho de 2023, que visa fomentar a criação de matrículas em tempo integral em todas as etapas e modalidades da educação básica, na perspectiva da educação integral; a Estratégia Nacional de Escolas Conectadas, com investimentos de R$ 8,8 bilhões para universalizar a conectividade das escolas públicas de educação básica até 2026, entre outras ações.
Além dessas políticas estruturantes para a educação básica, tivemos avanços no tema de equidade, a começar pela reestruturação da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão, extintas no governo anterior.
Para o ensino superior foi aprovada a Lei de Cotas e revisões e discussões iniciais sobre a Educação a Distância (EaD), Formação de Professores e a convocação da Conferência Nacional de Educação (Conae) para janeiro de 2024.
Porém, poucas ações estruturantes foram pensadas em 2023 para a complexidade de desafios no campo educacional e social.
Ainda no âmbito federal, o ritmo está muito lento do ideal. Para o ensino médio, outra etapa estratégica da educação nacional e das pautas das juventudes, é preocupante a dificuldade de enfrentar e reverter as reformas impostas com o “Novo Ensino Médio” (NEM) e as BNCCs para educação básica e BNC –formação professores entre 2016-2018.
Entregar a relatoria ao Projeto de Lei enviada pelo executivo atual ao ex-ministro da educação responsável pela reforma do novo ensino médio em 2016, através de uma Medida Provisória, é mais que uma evidência do quanto o atual Congresso, alguns gestores do MEC, Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed), as fundações e os institutos empresariais estão influenciando na revisão e implementação de políticas do atual governo.
Nesta perspectiva de manter a reforma do novo ensino médio, as juventudes brasileiras terão um ensino médio desqualificado, com apenas 1,8 mil horas ou 2,1 mil horas de formação básica geral, completando esta etapa fundamental de sua formação básica, com um “cardápio” de cursos básicos de (des)qualificação profissional de qualquer coisa, visto que o novo ensino médio aceita tudo, como cursos O que rola por aí?, Educação Financeira – Torne-se um milionário, RPG – conquistadores de mundo, Meu mundo, Meu futuro: Me ajuda a construir?, Quitutes da nossa terra – todos aceitos pelos sistemas de ensino.
Porém, o maior interesse dos estados com o novo ensino médio, tão defendido pelo Consed é a redução dos investimentos na educação básica por meio da não realização de concursos públicos para docentes e técnicos administrativos, manutenção e ampliação dos contratos temporários precários nas redes de ensino e, a terceirizando 40% do currículo do ensino médio parcerias público-privadas para oferta dos cursos citados anteriormente.
Mais um ano chega ao fim com a educação sob ataque no Brasil
O segmento das grandes empresas, por meio de suas fundações e institutos empresariais, articulados com o Consed, controlam o orçamento público da educação e orientam os investimentos de acordo com seus interesses, inclusive manipular e doutrinar os estudantes.
No âmbito do legislativo, seja no Congresso Nacional, seja nas assembleias legislativas estaduais e câmaras de vereadores, os ataques e a pauta educacional conservadora prosseguem e, até se intensifica.
Um mapeamento sobre a “Educação sob ataque no Brasil” em curso pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação revela que tivemos nos últimos anos 1.993 proposições legislativas, das quais 1.319 (66,2%) correspondem a legislação estaduais e 674 (33,8%) à legislação federal.
E do que tratam essas proposições? Versão sobre a escola sem partido (9,95), doutrinação (7,9%0, Censura (5,5%), Perseguição (6,7%), afastamento (0,4%), demissão (1,6%), correspondem a 32% das preocupações e proposições legislativas federais.
Recentemente, na Câmara de vereadores de Manaus foi aprovado que a Bíblia é um instrumento pedagógico a ser utilizado nas escolas e, em várias assembleias legislativas, como a do Rio Grande do Sul, é discutida a manutenção das escolas cívico-militares.
Quem está trabalhando e pesquisando nas ciências da educação, sabe que temas não são nem prioritários nem os reais problemas da educação brasileira.
Legisladores e gestores deveriam questionar por que não executaram o Plano Nacional de Educação (2014-2024), os Planos Estaduais de Educação (2015-2025) e os Planos Municipais (2016-2026) para melhor planejarmos os próximos planos a partir de 2024.
Sem uma avaliação séria e um diagnóstico efetivo em conjunto com a sociedade gaúcha referente a educação na última década, a Assembleia Legislativa do RS e o governo estadual estão empenhados em aprovar um novo marco legal para a educação do Estado, em caráter emergencial no apagar das luzes do ano letivo vigente, como se já não existisse um marco legal no país e no estado, descumprido pelos próprios proponentes.
O denominado novo marco legal para a educação gaúcha, na verdade, é uma pauta de cinco medidas que favorece os próprios interesses dos gestores atuais no exercício da gestão, em detrimento de medidas que efetivamente melhores a qualidade da educação em nosso estado.
Vejamos as propostas que estão em pauta no legislativo:
– PEC 299/2023: altera os artigos 199, 211, 214, 215 e 216 da Constituição Estadual retirando a responsabilidade do Estado do RS pelo oferecimento do Ensino Fundamental, mesmo sendo notória a incapacidade dos municípios pela sua oferta considerando o contexto histórico de desenvolvimento da educação no RS;
– PL 517/2023: institui o Marco Legal da Educação, que nada de novo apresenta, visto que tudo que anuncia já está previsto na legislação educacional brasileira e gaúcha, em descumprimento e descontinuado pelas sucessivas gestões, principalmente, na última década;
– PL 518/2023: implanta sérias alterações na composição, no funcionamento e nas atribuições do Conselho Estadual de Educação (CEEd-RS), órgão mais autônomo, plural e democrático do Brasil. O objetivo principal é submetê-lo ao poder executivo;
– PL 520/2023: prevê alteração da Lei 11.123/1998, que dispunha sobre a Educação Profissional, visando “modernizar a legislação e promover a inclusão produtiva dos estudantes a nível profissional e técnico”, reforçando a Cede lógica do NEM, ou seja, jovens pobres não devem sonhar com a formação superior nas universidades e permanecerem cursando itinerários de qualificação profissional;
Por este conjunto de iniciativas e ataques à educação, aos órgãos democráticos, às escola, às universidades, aos professores e funcionários públicos, estamos concluindo mais um ano com poucos avanças na educação devido ao contra-ataque do campo conservador derrotada na última eleição presidencial, com apoio das gestões neoliberais que priorizam o controle, as avaliações de desempenho, a redução do investimento público e a privatização da educação básica e superior por meio de vários mecanismos.
Mas vários movimentos de resistência e luta democrática estão na rua defendendo a democracia, a educação pública de qualidade, a formação e valorização da carreira docente no Brasil.
Um bom exemplo foi a realização do IX Encontro Nacional das Licenciaturas (Enalic), do VIII Seminário Nacional do Pibid e do III Seminário Nacional do Programa Residência Pedagógica na Univates, em Lajeado, entre 6 e 8 de dezembro.
Neste encontro das licenciaturas, 8,6 mil pessoas se cadastraram, mais de 1,7 mil estiveram presencialmente, de todas as regiões do Brasil, com mais de 5 mil trabalhos submetidos. Foram 2.755 de pesquisas, 755 comunicações científicas e 2 mil relatos de experiências.
Onde há reflexão, debate, participação e luta, há esperança por uma educação pública de qualidade social emancipatória dos estudantes e das classes populares.
Gabriel Grabowski é professor, pesquisador e escreve mensalmente para o jornal Extra Classe.