Sindicatos precisam ampliar leque de representação
Há necessidade imperiosa de incluir, no seu manto protetivo, quem hoje está fora dele, tais como autônomos, pejotas, falsos cooperados e por conta própria
Por José Geraldo de Santana Oliveira*
O relatório da Pnad contínua, “Características adicionais do mercado de trabalho 2023”, divulgado aos 21 de junho de 2024, simplesmente desnuda o que já era sabido: o mundo do trabalho, mergulhado no abismo, caminha no sentido anti-horário. Ou seja: do futuro para o passado, apesar da relativa recuperação alcançada no ano de 2023. Tomando-se como referencial o ano de 2012, todas as suas dimensões sociais involuíram.
Vejam-se os indicadores:
Em 2023, havia 174,8 milhões em idade para trabalhar; desses, 100,7 milhões (recorde em números) estavam ocupados, representando 57,6% do total. Porém, menor que o percentual de 2013, que chegou a 58,3%, maior percentual da série histórica iniciada em 2012. Eis a primeira comprovação da marcha anti-horária.
O total de trabalhadores com carteira assinada, em 2023, chegou a 37,3 milhões, o maior número desde 2012, correspondente a 37,4% da força ocupada. Entretanto, esse percentual é inferior ao de 2012, que foi de 39,2%.
O total de trabalhadores empregados sem carteira assinada, em 2023, totalizou 13,3 milhões, nada menos que 13,2% da força ocupada.
Esses números traduzem tragédia social sem precedentes. Desde 1932, quando foi criada, como carteira profissional, passando a ser carteira de trabalho e previdência social em 1969, esse documento de incomensurável grandeza social representa passaporte para a cidadania, indicando ocupação formalizada e o gozo de direitos, tais como previdência social, férias remuneradas, 13º salário e FGTS (a partir da Lei 5.107 de 1966) criado para pôr fim à estabilidade decenal implantada em 1923 com o Decreto 4.682, conhecido como Lei Eloy Chaves.
O relatório da Pnad, sob realce, revela que, em 2023, 37,4% do total da força de trabalho ocupada encontrava-se sob o manto da CTPS e, por conseguinte, dos direitos sociais; nada menos que 62,6% dos que a compõem, ou 63,3 milhões, se achavam fora de sua proteção. Desses, 38,8 milhões são classificados pela Pnad como informais e, dentre eles, 29,9 milhões trabalhadores por conta própria, sendo que apenas um terço desses, 9,9 milhões, possuía registro no cadastro nacional da pessoa jurídica (CNPJ), e 4,5% (1.345 mil) associados em cooperativa; os outros 18,6 milhões encontravam-se legalmente invisíveis.
Esse cenário catastrófico, somado a vários outros fatores não considerados pelo relatório da Pnad sob destaque, atinge em cheio, quase que de forma letal, os sindicatos.
De início, constata-se que, como a organização sindical brasileira cinge-se à representação de quem é formalmente empregado, dada à caducidade dos Arts. 511 e seguintes da CLT e à absoluta resistência dos dirigentes sindicais de alterá-la à revelia das normas para adequá-la à realidade social, os sindicatos legalmente somente representam 37,4% da força de trabalho ocupada.
Se os sindicatos não se acordarem para a necessidade de ampliar seu leque de representação, incluindo todas as formas de relações de trabalho, que são gêneros, das quais o vínculo empregatício é apenas uma modalidade — e se o STF não cessar sua frenética cruzada de cassação das decisões da Justiça do Trabalho que reconhecem vínculo empregatício (já foram milhares) —, em breve período de tempo, não haverá mais a quem representar, como gritam os números da Pnad.
Vale registrar mais: na ação direta de inconstitucionalidade (ADI) 5685, que declarou constitucional a Lei 13.429/2017, permitindo a existência de empresa de locação de mão de obra e terceirização da atividade-fim, o relator ministro Gilmar Mendes —acompanhado por seis outros ministros —, citando Nelson Rodrigues, responsabilizou o direito do trabalho pelo subdesenvolvimento do Brasil: “Nelson Rodrigues já dizia que ‘subdesenvolvimento não se improvisa; é fruto de séculos’. Os dilemas que hoje o mercado nos impõe, e que exigem que reflitamos a respeito do nosso modelo de direitos sociais, nomeadamente os trabalhistas, são fruto de uma cultura paternalista que se desenvolveu há décadas”.
Não obstante a dimensão e o alcance desse cruel e gigantesco dilema, ele não é único. Segundo revela o comentado relatório da Pnad, os sindicatos definham-se, ano a ano, quanto ao número de filiados, como se fosse uma incontrolável sangria, capaz de os levar à condição de fantasma, em pouco mais de uma década, se essa situação não for prontamente revertida.
No ano de 2023, segundo o mencionado relatório, havia tão somente 8,4 milhões de sócios, ou 8,3% do total de trabalhadores ocupados; em 2012, eram 14,4 milhões, correspondentes a 16,1% da força ocupada de 89,7 milhões. Somente no ano de 2023, foram perdidos 713 mil sócios.
Consoante gráfico do IBGE, contido nesse relatório, de 2012 a 2023, somente no período de 2012-2013, houve crescimento de 205 mil sócios; 2015-2016, perda de 1,133 milhão; 2016-2017, 407 mil; 2017-2018, 1,503 milhão; 2018-2019, 1,018 milhão; 2022-2023, 713 mil. Nele, não há dados de 2013-2014, 2014-2015, 2019-2020 e 2021-2022.
Nessa toada de perda de milhões de sócios, o dado mais desesperador é o que diz respeito à associação de jovens de 18 a 24 anos, que recuou 73,4%, no período em referência. No mesmo período, o percentual de ocupados nessa faixa recuou 8,7%.
No que diz respeito a esse recuo, a coordenadora de pesquisas domiciliares do IBGE, Adriana Beringuy, avalia: “De modo geral essa população mais jovem se insere no mercado de trabalho através de vínculos mais frágeis, muitas vezes na informalidade, ou em trabalhos intermitentes, com maiores rotatividades, o que leva ao menor número de associações”.
Será que essa avaliação abarca todas as causas dessa brutal redução, cabe perguntar? Ou será que os sindicatos não sabem mais dialogar com os jovens sobre a sua importância e a de filiação a eles? Quem tiver os pés no chão, por certo, concluirá que as causas dessa catástrofe não se resumem à incontestável avaliação da coordenadora de pesquisas do IBGE, decorrendo, em considerável medida, do distanciamento dos sindicatos da perspectiva e do horizonte buscado pelos jovens e dos demais trabalhadores.
Eis o gráfico sob comentários, que inclui também a variação de trabalhadores ocupados:
Colhe-se do gráfico acima que o crescimento do número de contratação, exceto no período 2015-2016, sempre foi positivo, o que não refletiu na associação aos sindicatos. Ao contrário, o número de desligamentos foi maior do que o de dessindicalização, 1,65 milhão contra 1,13 milhão somente em 2015-2016. Nos demais anos, houve crescimento positivo do número de contratação. Em todos eles, com exceção do período de 2012-2013, registrou-se aumento do número de sindicalização; nos demais, exceto 2015-2016, em que o total de demissões superou o de contratações, houve crescimento do número de contratações e também do de desligamento dos sindicatos.
O poeta gaúcho Mário Quintana, com sua refinada ironia, inverte o enigma da Esfinge da peça “Édipo Rei”, de Sófocles, dizendo, em genial metáfora (Mário Quintana em Prosa e Verso 3): “Na volta da esquina encontrei a Esfinge. Petrifiquei-me. Ela me disse então, olhando-me nos olhos: Devora-me ou decifro-te”.
Parece fora de dúvida que os sindicatos estão perante o desafio da Esfinge e o do poeta. Equivale a dizer: ou enfrentam, com firmeza e determinação, as causas que os levam ao definhamento quanto ao número de filiados, ou serão por elas devorados e decifrados, ou seja, viram fantasmas.
Para debelarem tais causas, há necessidade imperiosa de incluir, no seu manto protetivo, quem hoje está fora dele, tais como autônomos, pejotas, falsos cooperados e por conta própria. Em uma palavra, a representação sindical precisa alcançar todas as modalidades de relações de trabalho e não apenas aquela que se cinge ao vínculo empregatício devidamente formalizado: CTPS assinada.
O cenário dantesco que grassa o mundo do trabalho exige dos sindicatos que se dediquem com prioridade à inclusão de quem está excluído dos direitos sociais — os poucos que remanescem — insertos no Art. 7º da CF e na CLT, nada importando se tem CTPS assinada ou não.
Para além dessa tarefa que se assemelha a uma montanha, é inadiável também fazer, e com afinco, o que o mestre João Guilherme Vargas Neto repete à exaustão nas suas imperdíveis colunas semanais: subir às bases, para apertar as mãos dos integrantes de suas respectivas categorias e, olhando-os diretamente nos olhos, deles ouvir críticas e sugestões para o cotidiano sindical. Só assim conseguirão atrair novos sócios e parceiros de luta.
Quem assim não agir, desafortunadamente, estará fadado a se transformar em fantasma, isto é, não ter a quem representar.
Esse é o desafio! A hora é esta, antes que seja tarde demais!
*José Geraldo de Santana Oliveira é consultor jurídico da Contee