Ida ao trabalho pode durar 3 horas em Cidade Tiradentes, que tem menor oferta de emprego formal de SP: ‘é desumano’
Cidade Tiradentes foi onde chapa de Nunes obteve menor porcentagem de votos no segundo turno das eleições de 2020
“Que direito tem um trabalho informal? Não tem nenhuma segurança. O que a gente precisa, além do trabalho formal, é que tenha mais trabalho, mais emprego na região. Por que não trazer mais empresas para cá, para a região, já que nós moramos já no extremo da zona leste?”
Quem questiona e cobra é Sebastião de Jesus Souza, morador de Cidade Tiradentes, no extremo da zona leste de São Paulo. O bairro tem a menor taxa de emprego formal entre os 96 distritos da capital paulista. O dado consta no último Mapa da Desigualdade da Cidade de São Paulo, divulgado no ano passado, pela Rede Nossa São Paulo.
O Brasil de Fato visitou a região para entender quais as demandas da população local e como a pouca oferta de serviço e as más condições do transporte público tem resultado na piora da qualidade de vida das famílias de Cidade Tiradentes, distante 35 quilômetros do centro da cidade. Na prática, a distância pode se traduzir em três horas para chegar ao serviço.
“99% das famílias trabalham longe daqui, cerca de duas horas, duas horas e meia de condução”, complementa Sebastião, sobre a realidade do condomínio José Maria Amaral, onde é zelador.
Os problemas se refletem na confiança que o distrito de cerca de 220 mil habitantes deposita na atual gestão, preterida pela maioria dos eleitores de Cidade Tiradentes no segundo turno da eleição de 2020.
Entre as 58 zonas eleitorais da cidade de São Paulo, a que abrange a Cidade Tiradentes (de número 404) é onde Bruno Covas (PSDB) e Ricardo Nunes (MDB) obtiveram a menor porcentagem de votos válidos (43,58%). Foi lá onde Guilherme Boulos (Psol), candidato opositor, teve a porcentagem mais expressiva de votos válidos (56,42%) dentre as 7 zonas eleitorais das quais saiu vencedor no último pleito.
“Eu acho que as próprias pessoas daqui elas estão querendo ver uma coisa diferente acontecendo, elas querem que as coisas mudem, querem uma pessoa que de fato chegue aqui e faça a diferença”, opina a pedagoga Alana Queiroz, também moradora do distrito.
“As pessoas diariamente perdem seis, sete horas por dia dentro do transporte público e isso é desumano”, complementa a produtora cultural Ellen Rio Branco, que chegou no distrito nos anos 1990.
Problemas similares com o passado
Assim como Sebastião, Eliane Mendes Ferreira representa uma das 396 famílias que moram no condomínio José Maria Amaral, na Vila Paulista, erguido graças ao Programa Minha Casa Minha Vida Entidades. A obra, iniciada em 2013, é uma conquista do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra Leste 1.
Quando chegou no bairro, há 30 anos, ela recorda da pouca oferta de escolas, conduções, e a passagem esporádica dos ônibus, sempre lotados. Os desafios, apesar de alguns avanços, ainda são similares.
“A gente não tem só o problema da distância, mas a gente também tem o problema que as linhas de ônibus são planejadas para darem muitas voltas dentro do bairro. Então, um percurso que talvez de carro você faça, sei lá, em 50 minutos, uma hora, pra gente é duas horas, duas horas e meia. E se você tem que cumprir um horário de serviço de 8 horas, 9 horas, você acaba ficando 14, 15 horas fora de casa. Então você chega só pra dormir mesmo”, explica Eliane.
Cansada das longas distâncias, ela sobrevive hoje do Bolsa Família e da ajuda mensal dos três filhos, que trabalham de forma autônoma na região. Para complementar a renda, vende bolos na rua, na Cidade Patriarca, também na zona leste.
“Hoje eu tenho sobrepeso, eu tenho pressão alta, eu tenho um problema no joelho, poque eu já trabalhei em muitas outras funções, né? Então o que acontece? Além de você ter a sobrecarga do trabalho em si, ainda tem a distância para você ir, então às vezes eu não cumpro a função como deveria. E se fosse o serviço perto de casa, eu já conseguiria. Porque isso ia impactar muito menos no tempo que eu fico em pé, no tempo que eu ando”, explica a trabalhadora.
“Eu consigo melhorar um pouco a minha renda com o trabalho informal. Mas, por exemplo, se tivesse uma empresa onde eu pudesse trabalhar, eu estaria com todos os meus direitos”, completa.
Bairro-dormitório
Cidade Tiradentes abriga o maior complexo de conjuntos habitacionais da América Latina, com aproximadamente 40 mil unidades. A maioria desses empreendimentos de moradia popular foi erguida ao longo da década de 1980, por meio da Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo (Cohab), e a Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo (CDHU).
Rapidamente, o bairro se transformou em um dos maiores fenômenos de crescimento urbano da história de São Paulo. Em 20 anos, de 1980 a 2000, Cidade Tiradentes passou de 8.603 habitantes para 190.657, segundo o IBGE.
O bairro foi planejado seguindo o modelo de bairro dormitório, ou seja, seus moradores trabalhavam no centro de São Paulo ou nas fábricas do ABC, e usavam o bairro apenas para descansar ao fim da jornada. É o caso da família de Ellen Rio Branco, uma das primeiras a chegar na região.
“Teve um período nos anos 1980 que Cidade Tiradentes tinha um ônibus com o maior itinerário da cidade de São Paulo. Então, a gente sempre viveu esse lugar de margem, de borda, de extremo”, revela.
A atriz e articuladora cultural explica que a luta da população do distrito por melhores condições de transporte público e para desfazer esse posto de “bairro dormitório” é histórica mas esbarra na falta de atenção do poder público.
“A minha mãe lutava lá nos anos 80, 90 por transporte e a gente segue lutando por isso. A gente segue lutando por empregabilidade dentro do território. A gente ainda segue nesse lugar, porque ainda hoje a maior parte da população vivencia mais o período de deslocamento do que ou executando a sua função profissional, ou suas outras tarefas de lazer com os seus filhos”, explica Rio Branco.
“Tiradentes é o lugar onde você tem a menor expectativa de vida comparado a outros territórios, como Moema. Então isso também faz com que as pessoas vivam menos. Você começa a perder ali tempo de vida, qualidade de vida”, completa.
Alana Queiroz, cansada de buscar serviço dentro da sua formação, escolheu o caminho de abrir seu próprio negócio. Inaugurou o Perifa´s Lounge e Bar, que além de ser sua fonte de renda principal atualmente, procura engajar a população do bairro em torno da cultura hip hop.
“Durante todo esse tempo que eu fiquei procurando emprego aqui na região. É muito difícil encontrar na minha área e sempre é muito distante o que compromete muito a qualidade de vida”, explica Queiroz.
“Então você criar algo dentro da periferia e oferecer um espaço dentro da periferia, é você dar acesso também para as pessoas que moram aqui, é acreditar no potencial comprador, no potencial participativo da periferia, não é só um bar local, mas é um espaço que está disponível perto de casa”, complementa.
Empresas na região
Já Elliot Meirelles, com 29 anos, é corretor de imóveis. O jovem, nascido e criado no distrito e com o ensino médio concluído na Escola Técnica Estadual de Cidade Tiradentes, considera que toda sua formação e “construção de personalidade e cidadania” vem da vivência no distrito.
Mas a saída para outros bairros mais distantes se tornou necessária quando entrou na faculdade, e depois já no primeiro trabalho, na região da Avenida Paulista. Ele também acredita que o longo tempo de deslocamento afeta a qualidade de vida da população.
“Acho que devido à dificuldade das pessoas se deslocarem, isso acaba impactando na saúde psicológica e mental das pessoas”, explica.
Para chegar em Cidade Tiradentes, a população do distrito precisa desembarcar na estação de Guaianases ou na estação de Itaquera. A partir desses locais, o trajeto precisa ser feito somente por meio do transporte rodoviário. “Há situações onde se leva até uma hora para chegar em Guaianazes”, lamenta Meirelles.
Um incentivo do poder público para que as empresas se descentralizem ou saiam de bairros onde elas costumam se instalar, na opinião dele, seria um caminho para a permanência da população no bairro, principalmente dos mais jovens.
“Inclusive, muitas das pessoas que ocupam cargos em multinacionais, empresas grandes, cargos relevantes, residem nas periferias”, defende.
Cursos profissionalizantes
Mas essa não é uma reivindicação única. Segundo boa parte da população local, para que jovens e adultos da Cidade Tiradentes possam adquirir bons empregos, apenas a instalação de empresas na região não basta. Ellen Rio Branco defende, por exemplo, que o poder público ajude a formar profissionais em áreas não estereotipadas.
“Tem um espaço que é o Centro de Formação Cultural Cidade Tiradentes, que fica aqui no Vila Holanda, que foi um espaço de reivindicação do território, que era para ser um espaço de formação para as artes. A pessoa podia sair formada em cenografia, sonoplastia, em dramaturgia. Só que hoje o que a gente vê é o que acontece é diferente, tem curso de segurança, tem curso de babá. Partem do pressuposto que aqui as pessoas só podem fazer esse tipo de trabalho. As pessoas não podem pensar em outras possibilidades”, explica a produtora cultural
No distrito, a Prefeitura oferece também cursos profissionalizantes dentro do Centro de Desenvolvimento Social e Produtivo para Adolescentes, Jovens e Adultos (Cedesp). É uma das 58 unidades que a gestão administra no município, totalizando 11.340 vagas em toda a cidade para jovens e adultos entre 15 e 59 anos, número que representa apenas 4% da população da Cidade Tiradentes.
Em meio a pouca oferta de cursos profissionalizantes, outro problema se instala na região: quem consegue ingressar em um trabalho formal tem renda menor se comparada a outras regiões da cidade. Enquanto no distrito de São Domingos, na zona noroeste da cidade de São Paulo, a remuneração média é de R$ 8.515,29; em Cidade Tiradentes o valor fica em R$ 3.144, valor inferior à média da cidade, que é de R$ 3.722,7.
“A gente vive muito essa política também de punição por ser pobre, preto, mulher, de ser um jovem preto, então a política acontece já quando você já está na vulnerabilidade, esses espaços ainda são espaços muito de subalternidade”, finaliza Ellen.
O Brasil de Fato questionou a Prefeitura de São Paulo sobre quais medidas e programas são destinados especificamente para ampliar as vagas formais de emprego no distrito de Cidade Tiradentes, se houve ampliação nos últimos quatro anos na quantidade de linhas de ônibus em Cidade Tiradentes que vão às regiões centrais da capital e por que o Centro de Formação Cultural deixou de oferecer cursos de cenografia, sonoplastia e dramaturgia, conforme dito pelos moradores. Nenhuma das questões foi respondida até o momento. Se houver um posicionamento, o texto será atualizado.
Edição: Thalita Pires