Alimentação escolar: Brasil ainda enfrenta desafio do financiamento, diz estudo

Brasil possui uma Política Nacional de Alimentação Escolar, considerada referência, mas ainda há muito que avançar

Qual é a situação da alimentação escolar dos jovens e crianças brasileiros? Atualmente, para milhares de estudantes matriculados na rede pública em todo o país, as refeições oferecidas no ambiente educacional são essenciais.

O Brasil possui uma Política Nacional de Alimentação Escolar, considerada referência em muitos aspectos. Ainda assim, há espaço para avançar, como mostra uma pesquisa do Observatório da Alimentação Escolar, a começar pelo financiamento.

Atualmente, para cada uma das quase 28 milhões de crianças e adolescentes que, de alguma forma, são beneficiadas pelo programa, o governo federal destina apenas 50 centavos. Por lei, o valor precisa ser complementado por estados e municípios, mas a realidade desigual do país faz com que essa tarefa seja mais difícil para algumas regiões do que para outras.

“Esse per capita é repassado de forma igual, seja para São Paulo, seja para um município pequeno no semiárido brasileiro. Então, 30%, por exemplo, dos municípios do Nordeste e do Norte não conseguem fazer a complementação. Eles só têm esses 50 centavos. Ou seja, é pouco o orçamento, considerando que temos municípios que não têm condição de complementar”, explica Mariana Santarelli, coordenadora do Observatório da Alimentação Escolar, ao Conversa Bem Viver.

O estudo também indica que, seguindo as regras atuais, demoraríamos pelo menos 10 anos para que o valor diário para cada estudante chegasse a apenas 99 centavos, o que, para ela, não é o ideal, mas é o mínimo.

Santarelli reconhece avanços do governo Lula (PT) no tema, em comparação às gestões de Bolsonaro (PL) e Temer (MDB). Mas, ao mesmo tempo, chama a atenção para o fato de que o governo ainda isenta empresas vinculadas ao setor da produção de ultraprocessados, ao mesmo tempo que nas mesas das escolas e casas brasileiras ainda chegam alimentos de baixa qualidade.

“A Coca-Cola recebe altíssimos subsídios. Estamos abrindo mão anualmente de R$ 3,8 bilhões em subsídios para oferecer bebidas ultraprocessadas para envenenar a nossa sociedade. Mas quando vamos lá e pedimos um pouquinho mais, aí vem todo aquele discurso da Lei de Responsabilidade Fiscal, do Teto de Gastos”, alerta.

Confira a entrevista completa:

Brasil de Fato – O que é a Política Nacional de Alimentação Escolar?

Mariana Santarelli – A Política Nacional de Alimentação Escolar é um dos programas mais importantes que a gente tem hoje no Brasil para a garantia do direito humano à alimentação. É um programa que chega a quase 40 milhões de estudantes em todo o Brasil. É um programa muito antigo, com mais de 70 anos. Aos poucos ele foi se universalizando, se tornando aquilo que é hoje. É muito importante a gente primeiro reconhecer o valor dessa política.

É um programa internacionalmente reconhecido, por vários aspectos, entre os quais a perspectiva foi realmente de oferta de uma refeição, de um prato de comida, de uma alimentação adequada e saudável. Essa perspectiva da universalidade, que todos os estudantes da rede pública de ensino têm direito a essa alimentação, é muito típica da nossa experiência brasileira.

Temos também a perspectiva da restrição dos alimentos ultraprocessados. A gente vive hoje, não só no Brasil, mas mundialmente, esse fenômeno da transição alimentar. Cada vez mais a gente está se alimentando de refrigerantes, biscoitos, pacotinhos. Isso está virando o grande hábito alimentar da população mundial e brasileira.

Então, a gente vê a escola como um espaço de formação de hábitos alimentares saudáveis. O programa é muito positivo nesse sentido, porque ele restringe essa oferta de ultraprocessado. Só 15% do orçamento total do programa pode ser usado na compra desse tipo de alimento, favorecendo a perspectiva de uma alimentação baseada em alimentos in natura que fazem bem à saúde.

Por outro lado, tem outra coisa muito bacana também que é uma característica do nosso programa, que são as compras da agricultura familiar. Trinta porcento dos alimentos têm que ser comprados diretamente da agricultura familiar, sem intermediário, favorecendo a inclusão produtiva de toda uma camada da população que nunca teve acesso às compras públicas. Tem uma perspectiva de democratização dessas compras do Estado, criação de mercado e promoção de sistemas locais.

Tudo isso mostra que a gente tem um programa que tem um desenho incrível, maravilhoso, que vem evoluindo ao longo do tempo. Mas temos alguns governos mais comprometidos e outros menos comprometidos.

Estamos tratando muito pelo Observatório da Alimentação Escolar do tema do financiamento. O governo federal faz um repasse por aluno, de acordo com a modalidade de ensino. A maior parte dos estudantes, 70%, está no ensino fundamental e médio, que recebem 50 centavos. Mas a gente tem outros valores per capita diferentes para outras modalidades, alguns um pouco mais altos, outros um pouco mais baixos.

Os estados e os municípios, que são as entidades executoras, também as escolas e institutos federais, têm a obrigação de fazer uma complementação. Ou seja, esses 50 centavos têm que ser complementados com o orçamento próprio do estado ou do município. Só que a gente sabe que isso nem sempre acontece.

Vivemos em um país marcado pelas desigualdades. E esse per capita é repassado de forma igual, seja para São Paulo, seja para um município pequeno no semiárido brasileiro. Então, 30%, por exemplo, dos municípios do Nordeste e do Norte não conseguem fazer a complementação. Eles só têm esses 50 centavos. Ou seja, é pouco o orçamento, considerando que temos municípios que não têm condição de complementar.

E o que nos preocupa é não ter um mecanismo automático de reajuste desses valores per capita. Então, o que acontece? Por exemplo, durante os anos de governo Bolsonaro (PL) e Temer (MDB), a gente passou dez anos sem ter um reajuste que seguisse a inflação. Tivemos um único reajuste que não foi capaz de suprir todo o aumento do preço dos alimentos que vivíamos na época, ainda mais no período de pandemia. Não sei se vocês lembram, mas a inflação do preço dos alimentos estourou.

E o poder de compra da alimentação escolar ficou extremamente comprometido. Então, qual é a nossa demanda? Pleiteamos que esses valores per capita que são descentralizados do Governo Federal para os estados e municípios possam ser reajustados anualmente de acordo com o IPC Alimentação e Bebidas, que é o índice oficial de inflação que mede a variação do preço dos alimentos.

Para quê? Para que a gente não precise ficar dependendo da vontade política de um governante, qualquer que seja, e do Congresso Nacional. A gente sabe que a disputa por orçamento é algo muito muito difícil. Ainda mais nesse contexto da Lei de Responsabilidade Fiscal, de Teto de Gastos.

Ou seja, queremos que haja um compromisso, já que a alimentação é um direito constitucional, de que esses valores per capita vão ser reajustados automaticamente a cada ano de acordo com a inflação do preço dos alimentos.

Vocês fizeram essa projeção de que precisaríamos de 10 anos para conseguir chegar ao valor 99 centavos por estudante por dia. Esse valor já seria satisfatório? Precisaríamos ter proporcionalidade na distribuição do recurso?

Primeiro eu queria chamar atenção para uma coisa que acho que é bem importante, do ponto de vista das leituras que a gente tem e dos entendimentos sobre os avanços que a gente vem tendo em relação ao Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE).

Hoje a gente não chama mais o programa de merenda, mas de alimentação escolar. Justamente porque não queremos que seja um lanchinho ou qualquer coisa. Precisa ser uma refeição balanceada com a quantidade suficiente de nutrientes.

O risco que a gente corre quando tem o subfinanciamento é que voltemos a ter uma merenda. Isso é muito comum. Quando os municípios não têm recurso suficiente para fazer a compra de uma alimentação adequada e saudável, a tendência é que volte a ser um biscoitinho, uma salsicha, um suco de caixinha, coisas que a gente sabe que não são muito boas para a saúde.

Então, a gente realmente afirma que precisa ter o orçamento adequado para ter uma alimentação adequada e saudável. Estamos lançando um estudo, disponível no site do Observatório da Alimentação Escolar. Ouvimos 970 nutricionistas de todo o Brasil para entender qual era a visão delas sobre as condições de implementação da alimentação escolar.

Praticamente a metade delas, 47%, diz que não são dadas as condições suficientes para oferecer uma alimentação adequada e saudável e isso é sobretudo por conta do financiamento. Essa é uma das razões principais, mas não é apenas isso. Tem todo um problema também de número insuficiente de nutricionistas, falta de condições de infraestrutura, etc. Mas a questão do financiamento também é uma questão muito relevante.

Quando a gente pensa o Estado Federativo Brasileiro, a composição dos sistemas de políticas públicas, das políticas nacionais, o papel do Governo Federal, que acaba tendo muita arrecadação, é também lidar com essas desigualdades regionais. Então, quando você pega, por exemplo, os repasses de recursos da educação ou da saúde, eles já são hoje diferenciados de acordo com as condições socioeconômicas de cada município. A gente ainda não tem isso na alimentação escolar, no repasse do PNAE.

Isso também é algo muito importante, algo que a gente também tem lutado, tem buscado projetos de lei que criem esse mecanismo de reajuste automático mas criem também um fator de ponderação para que municípios com menor condição socioeconômica possam ter um valor de repasse per capita diferenciado.

Claramente o município de São Paulo tem condição de usar o orçamento próprio para colocar até três ou quatro vezes mais do que o Governo Federal coloca. Agora, quando você fala de um município pequeno em qualquer canto do Brasil, que praticamente não tem arrecadação, que tem índices de insegurança alimentar grave, IDH baixo, ele vai ter condições muito mais complexas para poder fazer a suplementação.

Do ponto de vista do financiamento, precisamos fazer uma alteração no desenho do PNAE para poder ter o mecanismo automático de reajuste, para não ficar dependendo da vontade política dos governantes para poder ter o aumento e também criar fatores de ponderação na distribuição dos recursos do governo federal.

Também é importante reconhecer que durante o início do governo Lula houve a oportunidade de uma negociação com o Congresso Nacional em torno da Lei Orçamentária Anual e essa demanda do reajuste, que a gente já vinha trazendo há muito tempo, foi atendida.

Houve um aumento de aproximadamente 34% do orçamento total destinado à alimentação escolar, o que permitiu o aumento desses valores per capita, mas, desde então, a gente não tem aumento. Assim, mesmo quem tem grande vontade política, acaba não se comprometendo anualmente, porque as decisões em torno do orçamento são muito disputadas.

Como precisamos encarar a questão dos ultraprocessados?

Há hoje restrição de 15% para aquisição de alimentos processados e ultraprocessados. Em todas as nossas campanhas, condenamos e não chamamos de alimentos o que é ultraprocessado. Então, dentro dessa margem, eu acho que o ideal é que as escolas estejam adquirindo apenas alimentos processados e não ultraprocessados.

Eu sou sim a favor da proibição total, em algum momento, da oferta de ultraprocessados nas escolas. Nessa pesquisa mesmo que estamos lançando agora, com as nutricionistas, o que a gente ouviu delas é que, para além dessas limitações orçamentárias e de infraestrutura, uma dificuldade são os próprios hábitos alimentares, não só dos estudantes, mas da comunidade escolar como um todo, dos responsáveis, dos professores, das cozinheiras, de todas as pessoas envolvidas.

Às vezes, você oferece para criança um prato de alimentação saudável, com alface, tomate, legumes, com uma enorme diversidade, que é o que preconiza o programa, mas aquela criança, aquele adolescente, ele não se alimenta assim fora da escola.

Ele está cada vez mais se alimentando de ultraprocessados. Então, ele rejeita aquela alimentação na escola. Isso acaba até gerando um desperdício. Por isso, é tão importante a perspectiva também de forma associada. O PNAE tem como uma das suas diretrizes a questão da educação alimentar adicional. É fundamental que a escola se transforme em um lugar de formação de hábitos alimentares saudáveis.

A perspectiva da educação alimentar tem que ser incorporada nos currículos. Os professores têm que estar preparados para trabalhar isso com os estudantes, a escola tem que dialogar com os pais dos alunos também. Então, eu acho que essa proibição precisa vir acompanhada das condições reais, para que ela realmente aconteça na escola.

Por exemplo, para proibir o ultraprocessado, tem que ter um trabalho intensivo de educação alimentar nutricional. Boa parte das escolas ainda não realiza esse trabalho. Não tem materiais pedagógicos suficientes sendo distribuídos pelo Governo Federal para essa finalidade. Os professores ainda não estão formados. Tudo isso precisa acontecer e o orçamento também precisa ser maior, porque oferecer uma alimentação in natura muitas vezes é mais caro.

Algumas escolas estão localizadas muito distante dos centros de distribuição desses alimentos. A gente tem toda a questão logística amazônica, que é muito difícil de você fazer a compra. Então, como é que você viabiliza, por exemplo, em escolas indígenas que estão dentro de terras e territórios tradicionais, a compra local? Porque você precisa comprar localmente para poder não oferecer os ultraprocessados.

São várias condições combinadas que precisam estar acontecendo para que a gente chegue a um cenário ideal. Eu acho que estamos caminhando nesse sentido, mas tem que tomar muito cuidado quando faz esse tipo de redução para entender quais são as condições reais de que elas sejam implementadas.

A gente precisa, por exemplo, apoiar cada vez mais a agricultura familiar, precisa de políticas complementares, de extensão rural, de assessoria técnica, de crédito, de fomento, para que os agricultores familiares, para que povos e comunidades tradicionais, povos indígenas quilombolas, possam realmente ter condições de fazer essa oferta local.

É uma combinação de fatores, mas que eu sou a favor de que a gente possa chegar algum dia a esse cenário para ideal de uma alimentação totalmente livre de ultraprocessados nas escolas.

Com certeza, precisaríamos de muito mais do que esses 99 centavos. Os 99 centavos, obviamente, se não vierem com uma suplementação, se não vierem com esse fator de ponderação em que ele pode ser adicionado de um percentual a mais para os municípios que não tem de fato condições de fazerem a complementação, realmente não é suficiente.

Mas eu acho que é o mínimo. O mínimo que a gente pode. Quando começamos essa campanha do registro, pensamos assim: “O que é o mínimo?”. O mínimo é que pelo menos a gente possa manter o poder de compra que a gente tem hoje. Isso é o mínimo. Então, nem o mínimo a gente está conseguindo.

É por isso que a gente tem batido muito na tecla do reajuste e na desses fatores de ponderação para enfrentar as desigualdades. Agora, uma coisa que eu acho que é muito importante quando fazemos esses pleitos é olhar quais têm sido as escolhas que o nosso governo faz.

Hoje temos um orçamento total do PNAE Federal de R$ 5,27 bilhões, em 2025. Para chegar a esses 99 centavos, daqui a 10 anos, e valores um pouco diferenciados, a depender das outras categorias dos valores per capita, a gente precisaria chegar a R$ 8,64 bilhões. Estamos falando de um crescimento de 64% ao longo de 10 anos. Não é nada absurdo para pleitearmos.

Eu acho que realmente é o mínimo indispensável que a gente precisa. Quando comparamos, por exemplo, com outras escolhas que o Governo Federal faz, é assustador. Por exemplo, o Brasil abre mão de até R$ 3,8 bilhões anuais em isenções fiscais que são concedidas aos fabricantes de bebidas adocicadas, como é o caso dos refrigerantes, mas não apenas.

A Coca-Cola recebe altíssimos subsídios. Estamos abrindo mão anualmente de R$ 3,8 bilhões em subsídios para oferecer bebidas ultraprocessadas para envenenar a nossa sociedade. Mas quando vamos lá e pedimos um pouquinho mais, aí vem todo aquele discurso da Lei de Responsabilidade Fiscal, do Teto de Gastos.

Eu acho que, no médio e longo prazo, era importante deixarmos de ter esse tipo de isenção, e que inclusive a gente pudesse sobretaxar esse tipo de alimento e realmente priorizar um orçamento adequado para aquilo que é importante para garantia do direito humano à alimentação e à nutrição adequadas.

Editado por: Luís Indriunas

Fonte
Brasil de Fato

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