O medo como língua materna

No Brasil de 2025, meninas aprendem antes a sobreviver do que a existir. A misoginia se reorganiza, os discursos de ódio se expandem e o feminicídio segue como desfecho anunciado

Fernanda Augusta de Vasconcelos Roa*

Ser mulher no Brasil de 2025 é viver em alerta constante, não é metáfora, é sobrevivência. Meninas nascem e já encontram pronta uma pedagogia do medo que não precisou ser criada, foi herdada. Cada conselho dado ainda na infância funciona como manual de autopreservação: cruze as pernas, sente direito, não corra tanto, não use saia sem shorts por baixo, não ria alto, não seja simpática demais, não demonstre inocência, não confie em quem olha demais, nem em quem olha de menos. São regras não escritas, mas indispensáveis, porque a violência aqui não é possibilidade, é probabilidade.

E é impossível fingir que isso é normal. É impossível seguir vivendo como se o risco fosse imaginário quando os números escancaram a verdade todos os dias. Lembro-me de uma roda de conversa majoritariamente masculina em que a Subinspetora Aline, coordenadora do Grupamento Especializado de Proteção a Mulheres, fez uma provocação direta: imaginem as quatro mulheres mais importantes da vida de vocês, filhas, esposas, mães ou irmãs. Agora escolham uma delas para sofrer algum tipo de violência. É cruel, é duro, mas é real. São mais de treze mulheres violentadas por dia no Brasil, segundo o Atlas da Violência 2025. Dez. Três. Mulheres. Por. Dia. E seguimos ouvindo discursos de que o problema é “exagero”, “vitimismo”, “mimimi”.

O feminicídio no Brasil não é acaso, não é surto, não é exceção. É o ponto final de uma frase que começou muito antes. É o resultado de um processo cultural tão profundo que ainda há quem acredite que ele começa “no calor do momento”. Não começa. Ele começa décadas antes, e a cada caso emblemático essa estrutura se revela.

Ao revisitar esses episódios, a indignação cresce.

Ângela Diniz, assassinada em 1976, foi julgada moralmente por ousar viver como queria. A ela não foi garantida sequer a proteção da própria morte: seu assassino teve a “honra” defendida em tribunal. A dela, ninguém defendeu.

Eloá Pimentel, morta ao vivo, em rede nacional, enquanto o país assistia a cobertura que romantizava seu agressor, como se a violência fosse prova de amor. E agora, em 2025, duas servidoras assassinadas por um colega que não tolerava a autoridade feminina. Ele não matou “por amor”. Ele matou porque achava que podia. Porque achava que tinha esse direito.

Décadas nos separam desses casos, mas a lógica que os produz é a mesma. Seguimos escrevendo capítulos novos de um livro que nunca deveria ter sido iniciado.

O que mudou não foi a misoginia, foi sua velocidade. A internet amplificou o ódio e o organizou. Criou a machosfera, onde homens transformam ressentimento em identidade e violência em projeto político. Onde a cultura red pill prega que mulheres são inimigas estratégicas, incapazes de lealdade, inferiores por definição. Isso não é opinião, é doutrinação. E doutrinação produz homens dispostos a matar.

O mais alarmante é perceber que esse discurso está moldando meninos que mal atingiram a vida adulta. Jovens sem qualquer experiência afetiva, mas já convencidos de que mulheres são ameaças, obstáculos, inimigas. Jovens instruídos por influenciadores que glamourizam o feminicídio como ato de “recuperação da masculinidade”. Eles não estão sendo apenas influenciados, estão sendo treinados.

E o preço desse treinamento aparece quando um homem entra armado em um instituto federal e assassina duas mulheres porque não admite ser chefiado por elas. Ele não é um caso isolado, ele é o produto final de um sistema. Ele é a prova de que discurso mata. Sempre matou.

Como isso se sustenta em 2025? Porque há conveniência social em fingir que o problema não existe. Há instituições que relativizam, há Justiça que hesita, há imprensa que suaviza, há famílias que silenciam. E, acima de tudo, há uma sociedade inteira que sempre achou aceitável que mulheres vivessem com medo.

E existe outra ferida, que não sangra por fora, mas corrói por dentro: a maternidade. Ensinar uma menina a viver aqui é ensiná-la a desconfiar de tudo. É prevenir sem traumatizar, alertar sem destruir a infância. É pedir que ela sonhe e, ao mesmo tempo, pedir que ela olhe por cima do ombro. É ensiná-la liberdade com as mãos e medo com os olhos.

E há ainda o outro lado, o que quase ninguém discute: ser mãe de um menino. E entender que cabe a você desfazer tudo o que o mundo fará para moldá-lo. Cabe a você ensinar que mulheres não são objetos, que “não” é frase completa, que pornografia não é escola, que masculinidade não se prova com violência. Cabe a você monitorar o que ele consome, quem influencia, que tipo de homem ele se tornará. E essa responsabilidade, gigantesca, injusta, desumana, recai quase sempre sobre as mães.

A violência de gênero não começa no ato, começa no discurso. O feminicídio é apenas o capítulo final de uma narrativa que a sociedade insiste em recontar. E enquanto evitarmos nomear a misoginia como crime, ela continuará se fortalecendo.

O Brasil de 2025 é um país onde mulheres estudam mais, trabalham mais, lideram mais. E morrem como se nada disso importasse.

Ser mulher no Brasil é resistir.

Mas nenhuma sociedade que se diz civilizada deveria exigir tanta resistência de metade da sua população.

Nenhuma.

*Fernanda Augusta de Vasconcelos Roa é guarda civil municipal em Belo Horizonte, bacharela em Direito e pós-graduada em Direito Público.

Fonte
Diplomatique

Artigos relacionados

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Botão Voltar ao topo
666filmizle.xyz