Constituição do ventre da luta
Jô Moraes*
Os períodos históricos que determinaram a formulação das constituições brasileiras sempre se relacionaram com alterações estruturantes no país. Cada uma a seu modo representava vitórias democráticas ou ameaças autoritárias. Tivemos novas constituições após a independência, após a proclamação da República, após a revolução de 30, o Estado Novo, a redemocratização do pós-guerra, em plena ditadura militar e a avançada constituição de 1988, no processo de reconquista da democracia.
Toda constituição se elabora num determinado contexto para dar legitimidade a quem está no poder. Por isso o processo constituinte sempre se desenvolve num permanente confronto entre os interesses das elites que querem manter seus privilégios e os da maioria do povo, que quer uma constituição a serviço do país e de seus cidadãos e cidadãs.
Em 1988 conquistamos uma Carta Magna que representou nossas demandas e sonhos. Quem participou do processo sabe que foi uma movimentação de ponta a ponta do país. No interior de Minas Gerais, na cidade de Uberaba tinha um cartaz convocando para um encontro de mulheres cujo desenho que ilustrava era um Palácio Real. Um mordomo à porta respondia ao príncipe que esperava a cavalo: “Perdoe, Príncipe, a Bela Adormecida acordou para participar da Constituinte!”.
Ulysses Guimarães, em seu discurso de promulgação da Carta Magna, relatou a dimensão da participação popular: “Foi de audácia inovadora a arquitetura da Constituinte… O enorme esforço é dimensionado pelas 61.020 emendas, além de 122 emendas populares, algumas com mais de 1 milhão de assinaturas, que foram apresentadas, publicadas, distribuídas, relatadas e votadas, no longo trajeto das subcomissões à redação final. A participação foi também pela presença, pois diariamente cerca de 10 mil de postulantes franquearam, livremente, as 11 entradas do enorme complexo arquitetônico do Parlamento, na procura dos gabinetes, comissões, galeria e salões”.
Foi exatamente essa pressão popular que fez com que conquistas populares fossem asseguradas apesar da presença majoritária conservadora. A maioria dos membros da Assembleia Constituinte era formada pelo Centro Democrático (PMDB, PFL, PTB, PDS e partidos menores), também conhecido como “Centrão”. A resistência dos demais partidos de compromissos democráticos assumiu maior protagonismo pela avassaladora presença popular em todo o processo constituinte.
Em estudo da Fundação Getúlio Vargas, publicado por Ricardo Galhardo pela primeira vez na história do Brasil, uma Constituição garantiu direitos como educação, saúde, habitação e previdência social, infância, lazer e segurança, indicou objetivos e garantiu as fontes de recursos.
Ao longo desses 25 anos, no entanto, ela sofreu inúmeras modificações, em grande parte até refluxos dos objetivos originais. Setenta e quatro propostas e emenda à Constituição foram promulgadas. Nesse período, a nação criou sua consciência cidadã, fruto de sofrimentos diversos, perdas e também conquistas a ferro e fogo. Nas ruas, nos gabinetes, nas marchas e contramarchas, nos enfrentamentos a bombas, cassetetes, balas de borracha e muito spray de pimenta.
Ao comemorar esses 25 anos temos que centrar fogo na defesa e aperfeiçoamento daquilo que é essencial: o conceito de Estado soberano, de inclusão social, de democracia plena. Os novos ventos que impulsionam a economia do país e a disposição popular – com suas jornadas de junho – reforçam a necessidade e a urgência da retomada dos propósitos que moveram os brasileiros em 88. Reforçam a necessidade de abraçarmos as causas das ruas: de um Estado eficiente, a serviço da população.
Muito se avançou, nessa última década, em relação à inclusão dos que estavam fora dos patamares mínimos da cidadania. Os 20 milhões que se integraram à economia; o baixo nível de desemprego; uma vaga na universidade para os que não tinham acesso; aumento real para os salários que eram baixos; estruturação de um mercado interno que ajudou a enfrentar a crise internacional.
Mas cidadania não tem piso. Cidadania não tem teto. Cidadania é uma permanente construção que exige cada vez mais avanços. Cidadania é superação das desigualdades sociais, regionais, culturais. Cidadania é projeto de nação. Cidadania é, sobretudo, empoderamento político. Cidadania é esperança de uma nova sociedade.
O que está em pauta hoje é a RECONSTRUÇÃO DAS FORMAS DEMOCRÁTICAS DO EXERCÍCIO DO PODER. É a reconstrução da representação política, do exercício da administração pública, da estrutura da justiça. É a reconstrução da nação e de seu projeto ousado de desenvolvimento. Realizar as reformas estruturantes que o país precisa, depende de um novo assalto à Bastilha brasileira. E os espaços do Congresso Nacional têm que ser a continuidade do que aconteceu na Constituinte de 1988, radicalizado hoje pelas demandas das ruas do século XXI.
*Jô Moraes
Deputada pelo PCdoB-MG