Pressão popular é alternativa a ofensiva conservadora
Pautas trabalhistas inspiraram manifestações das centrais nos últimos anos. Tendência é manter bloco na rua
Às 20h13 de 4 de dezembro de 2001, o presidente da Câmara dos Deputados, Aécio Neves (PSDB), proclamava o Projeto de Lei 5.483, de flexibilização da CLT. Aprovado naquela Casa, o PL seguiria para o Senado, e de lá de só sairia para o arquivo, já no governo Lula. Mas o risco representado por aquele texto – entre outras coisas, permitir que acordos “negociados” entre empregadores e empregados pudessem prevalecer sobre direitos básicos garantidos em lei – vem à lembrança com o resultado das últimas eleições. O Parlamento de perfil mais conservador e com menos representação dos trabalhadores pode indicar alguma fragilidade na defesa de direitos, muitas vezes identificado pelo setor empresarial como custos que impedem o crescimento.
Esse é um dos desafios que saem da eleição: crescer sem perder direitos. A comparação entre as candidaturas presidenciais que foram para o segundo turno facilita a percepção de quem está mais disposto a defender essa premissa. “Houve redução grande da bancada sindical (na Câmara) e manutenção da bancada empresarial”, diz o analista político Antônio Augusto de Queiroz, diretor do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap). Ele avalia que isso fez aumentar a importância da reeleição da presidenta Dilma Rousseff, para no mínimo barrar a ofensiva patronal, uma vez que a ala dos empresários no Congresso tem várias propostas no sentido da chamada flexibilização – como o PL 4.330, sobre terceirização, até agora barrado por atuação sindical, mas que pode voltar à pauta em novembro.
“Com essa bancada sindical, a força dos trabalhadores na resistência pode reduzir bastante”, afirma Queiroz. “Se Dilma não for reeleita, é praticamente certo que essas mudanças virão.” Em agosto, o diretor do Diap já alertava sobre a iminência de uma ofensiva patronal “assustadora” em 2015. Dos atuais 83 deputados da bancada sindical, o número parcial aponta para 46 a partir de 2015. A bancada empresarial, com 273 cadeiras, deve crescer, embora o balanço provisório mostre 190.
A avaliação é de que novamente o poder econômico dominou as campanhas e saíram vitoriosos os candidatos com maior volume de financiamento privado – mais um argumento a favor de uma reforma política que dependa mais da participação da sociedade e menos do Parlamento para acontecer. As representações partidárias passaram de 22 para 28, das 32 existentes – os nanicos cresceram. Um levantamento aponta 248 milionários eleitos – candidatos com patrimônio acima de R$ 1 milhão. Destes, 39 são do PMDB e 32, do PSDB.
GUSTAVO LIMA/CÂMARA DOS DEPUTADOS
Vicentinho, pressão de movimento sindical deve ser maior
Deverá tomar corpo o trabalho de um grupo de parlamentares que, pelo perfil que apresentam, poderão criar empecilhos na apreciação de matérias voltadas para áreas como direitos humanos e os movimentos sociais. Tende a esquentar a discussão sobre temas como a redução da maioridade penal e direito dos homossexuais, por exemplo. “Nomes como o pastor Marco Feliciano (PSC-SP), em São Paulo, e Jair Bolsonaro (PP-RJ), no Rio de Janeiro, são exemplos disso”, avalia Queiroz, do Diap.
Outro fator que chamou a atenção foi a grande quantidade de eleitos para o Congresso que defenderam, como bandeiras de suas campanhas, maior flexibilização do estatuto do desarmamento – muitos daqueles que anteriormente chegaram a ser conhecidos (sobretudo durante a tramitação do Código de Execuções Criminais, em 2008), como a “bancada da bala”. Para Queiroz, esse resultado é consequência de vários fatores reunidos, como os altos custos de campanha, o que favorece o poder econômico, e as cruzadas moralistas favorecidas pelos meios de comunicação.
Mas também chegam ou se mantêm no Parlamento brasileiro nomes que se identificam – de fato, e não no difuso conceito “marinero” – com o novo na política, caso do deputado Jean Wyllys, reeleito pelo Psol fluminense com quase 145 mil votos. Ele agradeceu em rede social e expressou seu entendimento sobre o processo político.
GABRIELA KOROSSY/CÂMARA DOS DEPUTADOS
Wyllys enfrentou polêmicas e conseguiu se reeleger
“Não escondi os temas ‘polêmicos’ que meu mandato defende, principalmente aqueles que são evitados pelos outros candidatos por conta do custo eleitoral que esses temas produzem (sendo a legalização da maconha, descriminalização do aborto, a regulamentação da profissão do sexo e o casamento igualitário os mais conhecidos deles), pois acho que uma campanha não serve apenas para ganhar votos, mas também para debater com a sociedade”, afirmou o parlamentar.
Destaque da bancada sindical, o deputado reeleito Vicente Paulo da Silva, o Vicentinho (PT-SP), ex-presidente da CUT e atual líder de seu partido na Câmara, diz que o conservadorismo mais acentuado do Congresso irá exigir maior mobilização popular. Ele identifica a possibilidade de votação de projetos nocivos aos direitos humanos e a conquistas trabalhistas.
Estados
Na briga pelos governos estaduais, 13 já resolveram a questão no primeiro turno. O PMDB levou quatro (Alagoas, Espírito Santo, Sergipe e Tocantins), o PT ganhou três (Bahia, Minas Gerais e Piauí) e o PSDB, dois (Paraná e São Paulo). Os outros ficaram com PCdoB (Maranhão), PDT (Mato Grosso), PSB (Pernambuco) e PSD (Santa Catarina).
Enquanto o Parlamento e os comandos dos governos estaduais se reorganizam, na disputa pelo Palácio do Planalto, por mais que pairem críticas à atual gestão, apresentam-se dois projetos distintos. Basta ver as prioridades apresentadas pelas candidaturas. Anunciado como ministro da Fazenda em um eventual governo tucano, o ex-presidente do Banco Central Armínio Fraga é cauteloso ao falar de temas sociais, mas caudaloso na defesa do chamado tripé econômico (câmbio flutuante, cumprimento da meta de superávit fiscal e da meta de inflação), uma combinação que pode ser interpretada também como sinal de controle de gastos – não só do governo, mas das famílias.
Um agente do mercado declarou logo após o primeiro turno que a ida de um “candidato amigável ao mercado” traria pelo menos três semanas de “esperança” à Bolsa. A adesão do chamado mercado – leia-se especulação, nesse caso – acirrou ainda mais a gangorra das ações e fez aumentar a convicção sobre quem seriam os setores privilegiados em um governo Aécio. O neurocientista Miguel Nicolelis expressou a sua preocupação ao postar em uma rede social: “A crença cega, sem crítica, nos arautos do mercado financeiro, passa a ser a maior ameaça ao modelo atual de desenvolvimento social do Brasil”.
No campo político, Aécio ganhou apoios de perfil conservador ou nitidamente de direita. Candidato pelo PSC, Pastor Everaldo já se manifestou a favor do tucano. O Clube Militar, formado por militares reformados e saudosos de 1964, declarou, em retórica dos tempos do golpe, que o líder do PSDB é a esperança para salvar o país da “sovietização”, promovida por um governo de origem comunista.
“A volta do Estado mínimo é apenas um dos retrocessos previsíveis no projeto neoliberal e antidesenvolvimentista de Aécio Neves”, escreveu, em artigo, o professor Eduardo Fagnani, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), também coordenador da Plataforma Política Social. “Não há nada mais velho e antissocial do que o enganoso ‘culto da austeridade’, remédio clássico seguido no Brasil dos anos de 1990 e aplicado na Europa desde 2008 com resultados catastróficos”, compara. “Não há como conciliar política econômica que concentre a renda e política social que promova a inclusão.”
Parece não haver dúvida de que o atual governo, comandado por Dilma Rousseff (PT), deu sequência ao de Lula no combate às desigualdades e na busca por melhor distribuição de renda, com programas sociais e políticas como a de valorização do salário mínimo. O nível de emprego se manteve e houve melhorias salariais, embora o país continue sendo socialmente injusto. Curiosamente, o resultado das urnas, com crescimento do pensamento conservador, aparentemente se chocou com os movimentos do ano passado.
Para a professora Maria do Socorro Sousa Braga, uma explicação estaria no baixo número de jovens envolvidos nas eleições e no número alto de abstenções. “Há um desinteresse muito grande pela política, pelos políticos. Os protestos do ano passado tinham demandas progressistas e até imaginávamos que muitos deles passassem a se envolver com partidos tradicionais, mas isso não ocorreu”, afirma a professora.
A base social que dá apoio a Dilma espera avanços relacionados ao crescimento com manutenção de direitos. E vê com apreensão um possível retorno de políticas pró-mercado representadas por Aécio e seu futuro ministro da Fazenda.
Câmara muda quase metade
Na Câmara dos Deputados, segundo o Diap, a renovação foi de 46,8%, sendo 275 reeleitos e 238 nomes que entram em janeiro – percentual mais ou menos em linha com as cinco eleições anteriores, mas bem abaixo de 1990 (62%). PT (70 deputados), PMDB (66) e PSDB (54) continuam com as maiores bancadas. Mas dos três grandes partidos, com mais de 50 deputados, apenas o PSDB cresceu.
Dos sete partidos médios a partir de 2015, com entre 20 e 49 deputados (PSD, PP, PSB, PR, PTB, DEM e PRB), somente o PSB, o PTB, o PRB e o PR cresceram. Uma notícia boa foi o aumento da representação feminina, que subiu de 47 para 51 deputadas. Dos três maiores partidos, o PT perdeu 18 cadeiras e o PMDB, cinco. Já o PSDB ficará com dez a mais a partir de janeiro.
O resultado disso será um poder Legislativo mais pulverizado, onde as articulações com o governo federal para aprovação de matérias terão de ser feitas de forma bem mais individual, entre as lideranças dessas siglas propriamente, e bem menos em blocos, conforme aposta Queiroz, do Diap.
Para o analista político, a redução das bancadas decorre, entre outras razões, da criação do PSD, Pros e Solidariedade. As três legendas tiveram importantes adesões durante o período de trocas partidárias, o que acarretou em perda de parlamentares em todos os grandes e médios partidos, com exceção do PT. Na avaliação do cientista político, o próximo presidente da República terá de negociar com vários partidos “no varejo” (ou seja, caso a caso) para formar maioria pontual.
Segundo ele, acima de tudo, o poder de fogo destas negociações ficará na mão dos partidos médios (muitos dos quais fisiológicos). “Num cenário desses, as chances de reformas estruturais são praticamente nulas. Ou haverá pressão popular ou o toma-lá-dá-cá tende a aumentar”, ressaltou.
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A reforma e o silêncio
ALICE VERGUEIRO/FUTURA PRESS/FOLHAPRESS
Movimento por Consituinte exclusiva para reforma política reuniu centenas de entidades
O plebiscito popular por uma Assembleia Nacional Constituinte para mudar o sistema político teve 7,8 milhões de votos, 97% favoravelmente a mudanças, mas recebeu um expressivo silêncio dos meios de comunicação tradicionais. Para Ricardo Gebrim, da secretaria do plebiscito, a “ausência e ignorância” da mídia foram um fato sintomático. “Ao longo das eleições, os principais candidatos à Presidência votaram no plebiscito. É evidente que isso é um fato jornalístico em qualquer parte do mundo. No entanto, eles ignoraram completamente.”
A importância cada vez maior da participação popular, e da apresentação de projetos de iniciativa popular, decorre também de um fato que já foi confirmado no início do mês de forma empírica. Nestas eleições, seguindo o padrão observado em anos anteriores, as desigualdades sociais se refletiram no percentual de candidaturas de negros, jovens, mulheres e indígenas, mostrando que o Congresso não é uma representação de toda a sociedade brasileira.
A constatação partiu do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) que fez, pela primeira vez, um mapeamento do perfil das candidaturas registradas no Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Elaborado em conjunto com a Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político, o levantamento mostrou que dos 25.919 candidatos, somente 8.008 (ou 30,09%) são mulheres, frente a 51,04% da presença feminina no total do eleitorado.
Mesmo a distribuição das candidaturas por partido acompanhou esse desequilíbrio, que apenas cumpriu a definição legal de cotas mínimas, de 30% para candidatas do sexo feminino. Já no tocante à questão racial, a maioria das candidaturas continuou formada por homens brancos (38,6%), seguidas por homens negros e pardos (30%), e depois por mulheres brancas (16,5%), mulheres negras (14,2%) e indígenas, que quase não aparecem nessa visualização (uma vez que foram registradas apenas 118 candidaturas indígenas no país).
O estudo do Inesc também mostrou que em relação à faixa etária dos candidatos, os jovens com até 29 anos representaram apenas 6,8% das candidaturas, quando a proporção de jovens na população eleitoral brasileira é de 51% do total.
A desigualdade é gritante em todos os recortes. “Muita gente acha que o percentual de 44% para negros não é tão baixo, mas precisamos ver o comportamento dos partidos em relação a esses candidatos, os poucos espaços que eles conseguiram nos guias eleitorais em relação aos outros candidatos e o tratamento dado pelas legendas a eles”, ponderou Carmela Zigoni, assessora do Inesc, ao acentuar que o tratamento diferente dado a essas pessoas revela o tamanho da exclusão no processo eleitoral – seja racial, de gênero, por faixa etária, ou relacionada a povos indígenas e outros.
Para Guacira Oliveira, do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea), os resultados obtidos evidenciam a necessidade de uma reforma do sistema político. “Ele é incapaz de responder às lutas que estamos travando. A atual situação se mostra patriarcal”, acentuou.
Da Rede Brasil Atual