Redução da maioridade penal não resolve; educação sim
O Plenário da Câmara dos Deputados aprovou nesta quarta-feira (19), em segundo turno, a Proposta de Emenda à Constituição 171/93, que diminui a maioridade penal de 18 para 16 anos em alguns casos. A proposta obteve 320 votos a favor e 152 contra. A matéria será enviada ao Senado.
De acordo com o texto aprovado, a maioridade será reduzida nos casos de crimes hediondos – como estupro e latrocínio – e também para homicídio doloso e lesão corporal seguida de morte. Em julho, a proposta foi aprovada em 1º turno com o voto favorável de 323 deputados e 155 votos contra.
A Contee mantém sua posição contrária à redução da maioridade penal e vai lutar para que a matéria seja rejeitada no Senado. No fim de julho, uma edição especial da Revista Conteúdo abordou exclusivamente o tema, para mostrar que redução da maioridade penal não resolve do problema da violência, e sim investimentos em educação pública, gratuita e de qualidade socialmente referenciada.
Leia abaixo a reportagem da capa da revista e acesse aqui a edição na íntegra:
Entre os muros da escola
“Entre os muros da escola” e “Entre os muros da prisão” são dois filmes franceses de 2008 que tratam, em seu cerne, de um mesmo tema: a forma como lidamos com a adolescência. O primeiro, dirigido por Laurent Cantet e com roteiro adaptado do livro homônimo de François Bégaudeau (que atua no longa-metragem), acompanha um ano da relação de um professor de francês com sua turma de alunos em uma escola na periferia de Paris, aos quais tenta ensinar não apenas o que consta no currículo, mas também um pouco do mundo. Já o segundo, do diretor Christian Faure, lembra o nosso “Pixote”, de Hector Babenco, e conta a história de Yves Treguier, um órfão de 14 anos na França dos anos 1930 que já passou por várias casas de correção durante a infância e cujo sonho é fugir do reformatório e embarcar num navio para Nova Iorque.
Os títulos originais em francês – “Entre les murs” e “Les Hauts murs”, respectivamente – não são tão correlatos quanto seus correspondentes em português, mas é provável que haja uma razão, ainda que inconsciente, para que tenham sido lançados no Brasil com nomes que mais parecem paródia um do outro (além do fato de terem estreado no mesmo ano). Afinal, o que mais simboliza toda a discussão acirrada que vivenciamos hoje em torno da redução da maioridade penal senão uma escolha entre quais muros queremos que nossos jovens construam e quais queremos que derrubem?
Em meados do mês de junho, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) divulgou uma nota técnica, elabora pelas pesquisadoras Enid Rocha Andrade da Silva e Raissa Menezes de Oliveira, intitulada “O adolescente em conflito com a lei e o debate sobre a redução da maioridade penal: esclarecimentos necessários”. Logo na introdução do estudo, elas o justificam lembrando que, a cada vez que ocorre a divulgação de crimes considerados hediondos envolvendo adolescentes, é comum o acirramento do debate dessa questão, pautado, principalmente, por matérias de tons alarmistas veiculadas na grande chamada “grande mídia”, as quais contribuem para ampliar a sensação de medo e insegurança. “Por se tratar de medida com forte impacto na vida de milhares de adolescentes e suas famílias, a redução da maioridade penal requer maiores reflexões e discussões pautadas em dados e informações inequívocas capazes de retratar a real dimensão do envolvimento de adolescentes em delitos de alta gravidade. Não menos importante é a necessidade de esclarecer a sociedade sobre os dispositivos e sanções existentes no sistema brasileiro de justiça juvenil para os adolescentes que cometem atos infracionais”, afirmam as pesquisadoras.
A nota ressalta ainda que a defesa da redução da maioridade penal é baseada na crença de que a repressão e a punição são os melhores caminhos para lidar com os conflitos e escorada na tese de que a legislação atual deve ser mudada, pois estimula a prática de crimes. “Parecem soluções fáceis para lidar com o problema da violência, mas surtem o efeito oposto, ou seja, aumentam a violência, principalmente quando se leva em conta as condições atuais dos espaços das prisões brasileiras.”
Um dos pontos mais relevantes levantados pelo Ipea é o fato de que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) não é respeitado. Isso porque, muitas vezes, a justiça juvenil não é aplicada conforme as disposições estabelecidas no ECA e no Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), imputando punições mais severas do que seria requerido para a infração em questão. Por exemplo: em 2013, segundo os dados levantados, existia um total de 23,1 mil adolescentes privados de liberdade no Brasil. Desses 64% (15,2 mil) cumpriam a medida de internação, a mais severa de todas; outros 23,5% (5,5 mil) estavam na internação provisória; 9,6% (2,3 mil) cumpriam medida de semiliberdade e 2,8% (659) estavam privados de liberdade em uma situação indefinida.
Em contrapartida, infrações como furto, roubo e envolvimento com o tráfico de drogas foram os principais delitos praticados pelos adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de privação de liberdade no Brasil. “Em 2011, roubo (38,12%), furto (5,6%) e tráfico (26,56%) representaram, juntos, mais de 70% do total de delitos praticados pelos adolescentes detidos. Em 2012, esses atos infracionais alcançaram, aproximadamente, 70% do total e, em 2013, cerca de 67%. Por sua vez, os delitos considerados graves, como homicídios (8,39%), latrocínio (1,95%), lesão corporal (1,3%) e estupro (1,05%) alcançaram, em 2011, 11,7% do total dos atos praticados pelos adolescentes detidos no Brasil. Em 2012, tais infrações representaram 13,5% e, em 2013, 12,7%.” Pela conclusão da pesquisa, o confronto entre os números demonstra que, se o ECA fosse cumprido, os adolescentes internos privados de liberdade no Brasil seriam cerca de 3,2 mil –2,2 mil condenados por homicídio, 485 por latrocínio, 288 por estupro e 237 por lesão corporal – e não 15,2 mil, como é na realidade.
Em entrevista coletiva, Enid Rocha ressaltou que existe uma orientação no ECA de que a medida de privação de liberdade deve ser aplicada apenas em atos de violência de alta gravidade. “Aí, quando vamos olhar, apenas 3.200 meninos estão privados de liberdade por motivos relacionados a homicídio, latrocínio, estupro e lesão corporal. Só que nós temos 15 mil restantes que estão privados de liberdade por atos como furto, tráfico de drogas, que não justificariam a severidade da medida”, criticou Enid. “Não sabemos o que levou o Judiciário a aplicar essas medidas, mas reconhecemos que há dificuldades. Por exemplo, em um município onde o Judiciário não encontra disponível uma forma de aplicar a semiliberdade ou a liberdade assistida, isso faz com ele aplique uma medida mais severa. Existem muitos motivos, mas o que os dados dimensionam é que há uma severidade na aplicação dessas medidas.”
A nota técnica também aponta números diretamente relacionados às perspectivas (ou falta delas) desses jovens. De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2013, dos 10,6 milhões de jovens de 15 a 17 anos, mais de 1 milhão não estudavam e nem trabalhavam; 584,2 mil só trabalhavam e não estudavam; e, aproximadamente, 1,8 milhão conciliavam as atividades de estudo e trabalho. E isso a despeito de a adolescência ser um período durante o qual se considera que a atividade mais importante é o estudo. Num cenário como esse, alguém continua a acreditar que a solução é a redução da maioridade penal? Que os tijolos produzidos no país devem servir para erguer muros de prisões em detrimentos dos muros da escola?
O ECA como alvo
Não é de hoje que o ECA, que acaba de completar 25 anos, sofre tentativas de ataques. O Estatuto mal acabara de completar três anos de vigência e a Constituição da República sequer tinha feiro seu quinto aniversário quando, em 1993, o então deputado Benedito Domingos (PP-DF) apresentou a Proposta de Emenda Constitucional 171, alterando o artigo 288 da CF. Esse dispositivo, considerado, por muitos, cláusula pétrea da Constituição, determina que “são penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial”. A PEC – essa mesma desenterrada 23 anos depois – visa alterar a redação para “menores de dezesseis anos”. E ela não é a única. Segundo o portal Consultor Jurídico, neste quarto de século, cerca de 20 leis já modificaram a redação original do Estatuto e há outras 500 propostas em análise na Câmara dos Deputados, sendo que 50 delas têm o intuito de endurecer a punição aos adolescentes infratores.
É claro que, mesmo que 87% dos brasileiros, segundo pesquisa Datafolha divulgada no dia 22 de junho, apoiem a redução da maioridade penal de 18 para 16 anos e que, desse montante, 73% achem que a medida deve valer para todos os tipos de crimes, a questão não é tão simples. Nem tão palatável como querem fazer crer os adeptos do discurso do “Tá com pena? Leva pra casa”. A prova é que mesmo o substitutivo aprovado em junho pela Comissão Especial da Câmara, limitando a redução a crimes hediondos, não foi aprovada no Plenário da Casa – fato que desencadeou a manobra golpista do presidente Eduardo Cunha (PMDB-RJ) e a apresentação de uma emenda aglutinativa que recolocasse o tema em pauta, apenas excluindo o tráfico de drogas da equação.
Outra prova é que o Senado – que analisará a PEC em seguida, caso ela passe em segundo turno na Câmara – também torce o nariz para a redução pura e simples, preferindo a opção, aprovada pelos senadores no dia 14 de julho, que altera o ECA para permitir o aumento do tempo de punição para menores de idade que cometerem crimes hediondos, exceto tráfico. Nesse caso, eles continuariam sendo penalizados como menores, e não como adultos.
A terceira evidência é que, embora em menor número, há setores importantes da sociedade que rejeitam a redução, como a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), os movimentos sociais e sindical, as entidades educacionais, as organizações defensoras dos direitos humanos, o próprio governo federal.
“O Estatuto da Criança e do Adolescente, saudado há 25 anos como uma das melhores leis do mundo em relação à criança e ao adolescente, é exigente com o adolescente em conflito com a lei e não compactua com a impunidade. As medidas socioeducativas nele previstas foram adotadas a partir do princípio de que todo adolescente infrator é recuperável, por mais grave que seja o delito que tenha cometido. Esse princípio está de pleno acordo com a fé cristã, que nos ensina a fazer a diferença entre o pecador e o pecado, amando o primeiro e condenando o segundo”, expressam, em nota, os bispos Dom Sergio da Rocha, Dom Murilo S. R. Krieger e Dom Leonardo Ulrich Steiner, respectivamente, presidente, vice-presidente e secretário-geral da CNBB.
“A comoção não é boa conselheira e, nesse caso, pode levar a decisões equivocadas com danos irreparáveis para muitas crianças e adolescentes, incidindo diretamente nas famílias e na sociedade. O caminho para pôr fim à condenável violência praticada por adolescentes passa, antes de tudo, por ações preventivas como educação de qualidade, em tempo integral; combate sistemático ao tráfico de drogas; proteção à família; criação, por parte dos poderes públicos e de nossas comunidades eclesiais, de espaços de convivência, visando à ocupação e a inclusão social de adolescentes e jovens por meio de lazer sadio e atividades educativas; reafirmação de valores como o amor, o perdão, a reconciliação, a responsabilidade e a paz.”
Já o secretário nacional de Juventude, Gabriel Medina, cuja pasta é ligada diretamente à Presidência da República, afirma que “o governo rejeita qualquer forma de violência e não é tolerante com a impunidade”, mas que o “Estatuto da Criança e do Adolescente já prevê medidas punitivas aos adolescentes desde os 12 anos”. “Isso a sociedade precisa entender.”
Na opinião de Medina, a mobilização até agora foi vitoriosa. “A Câmara queria aprovar a redução da maioridade penal para qualquer tipo de crime. Conseguimos esclarecimento da sociedade e mobilização política para reduzir o relatório. Então ficamos com uma PEC que se restringia à redução perante crimes hediondos. E esse texto foi derrotado. Mas dia 1º de julho fomos pegos de surpresa por causa de uma manobra do presidente da Câmara, a portas fechadas e sem participação popular, sem cumprir uma liminar do Supremo Tribunal Federal (STF). A Câmara aprovou a redução, mas com uma PEC que é mais limitada, retirando os crimes de tráfico e de roubo qualificado. Isso porque cada vez mais a PEC vai sendo desidratada com o esclarecimento da sociedade”, considera.
“Acho que a gente não pode deixar de reconhecer as vitórias. E nós apostamos muito que a PEC não passe no Senado. Vamos continuar nesse trabalho de esclarecer sore o ECA e avançar nas políticas públicas de educação, cultura, reforçar o Plano Juventude Viva, que previne a violência com a juventude porque a juventude é a principal vítima e não autora da violência no país. Agora vamos convocar ainda mais a juventude, os movimentos, aqueles que defendem os direitos humanos e a vida para continuarmos a mobilização com intuito de convencer a sociedade a reverter esse quadro triste de um Congresso que flerta com a barbárie.”
Há que se notar que a importância e o papel essencial da educação permeiam os discursos de todos aqueles que creem, parafraseando o tragediógrafo grego Sófocles, na construção de pontes em lugar de muros. “Nossa aposta é no sentido de diminuir a distância entre a legislação existente de proteção aos direitos dos adolescentes e a sua concretização”, disse Enid Rocha, do Ipea, na coletiva. “Mostramos que existe um Sistema Nacional Socioeducativo, mostramos que as medidas em meio aberto no âmbito da política nacional de assistência social vêm avançando. Então, a aposta é em políticas sociais, na inclusão desses 1,7 milhão de meninos e meninas que não estudam, não trabalham, daqueles outros que só trabalham, daqueles 27% que não concluíram o ensino fundamental embora tenham de 15 a 17 anos”, completou. “Apostamos na escola e na implementação do Sistema Nacional Socioeducativo, em aproximar o Estado desse público. Não só o Estado, até porque a Constituição Federal coloca que a proteção integral dos direitos da criança e do adolescente é responsabilidade do Estado, da sociedade e da família. Por isso é que muitas das políticas sociais do governo familiar buscam o fortalecimento familiar e comunitário.” Para que, ao invés de entre os muros da prisão, nossa juventude possa ser formada entre as pontes da escola.
Da redação