“Gênero na escola e democracia à brasileira”, por Fabiane Simioni
Em artigo publicado na edição 33 da Revista Conteúdo, a a professora da Universidade Federal do Rio Grande (FURG) e doutora em Direito, Fabiane Simioni, faz uma análise da retirada do termo “gênero” do Plano Nacional de Educação (PNE) e de planos estaduais e municipais.
Fabiane, que também é integrante do conselho diretor da ONG Themis – Gênero, Justiça e Direitos Humanos, aponta a linha antidemocrática e conservadora presente nos vetos. Confira abaixo.
por Fabiane Simioni
No ano de 2015, mais de 45 anos depois que autoras e autores das ciências sociais começaram a problematizar as relações de gênero no Brasil, vimos a retirada, do Plano Nacional de Educação, seguido dos estaduais e municipais, de qualquer referência ao termo “gênero”. Os vetos dos respectivos parlamentos se direcionaram para as metas de combate à discriminação racial, de orientação sexual ou de identidade de gênero, pesquisas sobre a permanência de transexuais ou transgêneros na escola, bem como sobre programas de formação continuada para professoras e professores em gênero, diversidade e orientação sexual.
Legisladores alinhados a diferentes partidos políticos, mas aglutinadosem torno de crenças religiosas dogmáticas consideraram que esses temas representam um problema para a família tradicional brasileira, porque subverteriamos conceitos de mulher e de homem, de matrimônio e de maternidade.
Trata-se, podemos afirmar, de uma reação a algumas conquistas jurídicas e sociais em termos de representatividade e de garantia de direitos para segmentos historicamente invisibilizados em uma sociedade hierárquica e desigual como a brasileira. É como se houvesse uma disputa para a retomada daquilo que se convencionou como tradicional e foi construído como hegemônico para conter “o outro”, aquele considerado desviante, subversivo, impuro ou abjeto.
Entretanto, essa nova cruzada contra corpos/sujeitos específicos (porque nem todos são dotados dos mesmos privilégios no acesso aos modos de distribuição de bens, recursos e prestígio) revela uma faceta antidemocrática que acabou por acalentar as mentes e os corações mais conservadores, mesmo daqueles que não compartilhavam os mesmos compromissos políticos com quaisquer práticas religiosas. Nesse caso, a democracia, como valor e como bem públicos, é atacada porque a regra do igual respeito e igual consideração é deturpada para dar lugar a reminiscências atávicas de um projeto de heteronormatividade compulsória.
As vozes contrárias ao debate sobre a inclusão de “gênero” como um tema que também diz respeito à escola pressupõem que as famílias é que são responsáveis pela formação de crianças e adolescentes sobre questões pertinentes às formas de expressão da sexualidade e da identidade de gênero. É como fosse possível à escola esconder a pluralidade de estilos de vida ou de cosmovisões de mundo presente nas sociedades contemporâneas ou no interior das próprias famílias de origem suas alunas e alunos.
A abordagem das relações de gênero no contexto escolar, entretanto, está inscrita em um marco de combate a todas as formas de violência e de discriminação, como também em normas nacionais e internacionais ratificadas pelo Estado brasileiro. De acordo com a Constituição Federal de 1988, a proteção de direitos fundamentais tem como fundamento a proibição de discriminação em razão de sexo, de gênero ou de orientação sexual. Não por acaso, o texto constitucional de 1988 permitiu ao Brasil a ratificação e consequente incorporação no âmbito doméstico de uma série de tratados internacionais de direitos humanos, os quais servem de instrumentos para a denúncia de práticas discriminatórias e a promoção de não violência.
A tentativa de negar vigência a normas nacionais e internacionais através da retirada de quaisquer referências à palavra gênero é inconstitucional, antidemocrática e ilegal porque pretende a exclusão da proteção contras diferentes espécies de discriminação e de violência a que estão mais facilmente submetidos determinados grupos sociais. Em uma democracia à moda brasileira os parlamentos perderam uma ótima oportunidade para promoção de uma cultura de respeito às diferenças e de não-violência.
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