‘Conselho de Educação não funciona como órgão de Estado’
Para falar do Conselho Estadual de Educação (CEE) de São Paulo a Fepesp entrevistou a jornalista Fernanda Campagnucci, assessora do Programa Observatório da Educação, da Ação Educativa. A jornalista trata da repercussão do estudo que mostrou o perfil empresarial do CEE, da falta de transparência do órgão e das possibilidades de mudanças, que transformariam o Conselho em um verdadeiro órgão de estado.
“Se aumentar a transparência, aumenta a participação social. Existe demanda de participação, mas não está sendo acolhida pela administração pública”, prega Fernanda, que é editora do site do Observatório e mestranda em Sociologia da Educação pela Faculdade de Educação (USP). Ela sugere que os trabalhadores da educação têm de acompanhar o Conselho, divulgar as ações e cobrar mudanças.
1) Qual é ou deveria ser a importância de um Conselho estadual de educação?
Fernanda: Os conselhos de educação são órgãos previstos na Constituição Federal e devem ter esta função consultiva, por exemplo, que era a que já tinha na época em que foi criado, durante o Império. Eles nasceram como órgãos de assessoramento.
Mas, a partir da Constituição de 1988, ficou muito forte o caráter de que devem ter: de deliberação e de instância de participação e controle social das políticas. Em outras áreas, como a de saúde, este perfil já está mais concretizado, num estágio mais avançado de democratização.
A área de educação não é tão permeável a esta nova vertente democrática que trouxe a Constituição. Isso tem a ver com as particularidades da educação, com o sistema federativo e tudo mais. Mas, tanto os conselhos municipais quanto os estaduais, são pouco permeáveis a essa lógica democrática de atuação.
Então, fortalecer um conselho estadual ou municipal, com diferentes representações da sociedade civil, um órgão plural, sem deixar de ter essa dimensão técnica – criar normas, avaliar e fiscalizar as políticas, enfim – articulando essas duas dimensões, é fundamental para a melhoria da qualidade do ensino no Estado.
2) Você citou a área de saúde. Mas a educação seria menos importante? Existe barreira política para os conselhos funcionarem melhor nessa área?
Fernanda: É uma questão sem resposta. Talvez, porque a educação não tenha sistema nacional, articulando entes federados, como na saúde.
Daí surge uma das demandas de várias organizações que trabalham com o tema: que um Plano Nacional de Educação possa dar diretrizes de funcionamento dos conselhos e que o Conselho Nacional tenha um papel maior, de norteador dessas políticas.
Então, como ainda falta a devida articulação, o regime de colaboração.não ser plenamente efetivado, existe dificuldade de diálogo entre municípios e estados. E isto se reflete nos conselhos que, me muitos casos, são tratados como um colegiado privado de assessoramento do governador daquele momento. Mas ele deve ser um órgão de estado, e não um órgão de governo.
Em São Paulo, por exemplo, são 16 anos de PSDB… Então, se esperaria uma continuidade… Mas, ainda assim, nota-se que, dependendo do grupo que está no poder, a estrutura do CEE segue a lógica do governo, do mandato, e não segue a lógica do estado.
Então, é uma noção quase patrimonialista de entender esse órgão como algo privado de assessoramento…. E, além disso, que se reveste de um discurso técnico, de que são pessoas de notório saber, que não tem que passar por escrutínio público, que estão no cargo por mérito. Revestem-se dessa carga e o conselho acaba ficando pouco permeável às demandas de transparência.
3) À exceção do Observatório da educação, que acompanha os conselhos de Educação, este tipo de órgão é esquecido pela sociedade? Em outras palavras, não existe para ela?
Fernanda: Nesse órgão, o desinteresse aparece, por exemplo, por parte da imprensa. A gente acompanha as reuniões há muito tempo, pelo menos desde 2010, com mais tenacidade. E não vemos nas reuniões nenhum jornalista… Além dos assessores e dos próprios conselheiros e, eventualmente de algum convidado, a gente não nota a presença de mais ninguém.
Porém, não seria um desinteresse ou desconhecimento da importância do órgão. Mas, sim, conseqüência da própria falta de transparência do conselho, que nunca divulgou as pautas com antecedência, as atas das reuniões e o dia e o horário em que elas acontecem. Foi só a partir do momento que a gente fez o blog De olho nos conselhos que algo mudou. Esta página não é institucional, não é oficial e nem as pessoas vão, necessariamente, buscar informação lá. O correto seria buscar informação no site da própria secretaria, do próprio conselho.
Mas não existe a indicação de quando acontecem as reuniões, do local, da data… Nós mesmos, que nos propusemos acompanhar, temos dificuldades: às vezes, as reuniões são canceladas, tem de ligar sempre antes para confirmar. Então, da maneira como está hoje, o conselho tem o acesso dificultado. Já melhorou… Nos últimos dois anos foi criado um site, começaram a divulgar as resoluções. Ainda não divulgam as pautas nem as atas, só divulgam as resoluções e deliberações. Está num processo, está melhor.
Mas é preciso que se faça mais. Acredito que, à medida que for dada mais publicidade às ações do conselho, a tendência é as pessoas participarem mais, terem mais interesse. E a divulgação das pautas chamará a atenção dos grupos interessados nos temas previstos. Por exemplo, uma deliberação sobre educação especial permite que as pessoas que atuam com isto possam comparecer.
Se aumentar a transparência, aumenta a participação social. Por isto, que a gente bate muito nesta tecla. Existe demanda de participação, mas não está sendo acolhida pela administração pública.
4) É possível mudar isto? Como?
Fernanda: O primeiro passo para reverter esse quadro é aumentar a transparência. Dar maior publicidade possível a todos os atos do conselho. E divulgar os documentos, mesmo os que estão na fase de discussão.
Por exemplo, o Plano Estadual de Educação (PEE). A proposta que foi enviada pelo executivo ao conselho nunca veio a público. Foi criado um grupo de trabalho para discussão e os conselheiros referem-se ao documento nas reuniões plenárias. A gente não sabe sobre o que estão falando porque não tivemos acesso a este documento.
Isso pode depender da boa vontade da secretaria e dos conselheiros, porque a legislação talvez só trate de documentos já ‘oficiais’. Mas, na nossa interpretação, documento que já foi submetido à avaliação dos conselheiros também deveria ser tornado público. Isso despertaria mais interesse das pessoas em participar e facilitaria por que os conselheiros, o tempo todo, evocam documentos, pareceres a que a gente não tem acesso.
5) O que faz com que o CEE conserve uma estrutura do regime militar, quase 24 anos depois da promulgação da Constituição “cidadã”?
Fernanda: Primeiro, falo do momento atual: está ocorrendo movimento de pressão de várias frentes: Ministério Público [MPE], Legislativo, sociedade civil, a Fepesp e outras várias organizações. Tudo gera um questionamento maior que está dificultando a negativa, a recusa à mudança do CEE.
Até então, justamente essa opacidade do conselho criava um clima propício para a falta de questionamento.
Ele sempre foi tratado como um conselho de notáveis…. E contribuiu para isso a falta de visibilidade que o órgão, apesar de importante, tem na mídia. Temos acompanhado a imprensa da América Latina com o Observatório. Em outros países, os conselheiros são consultados pela imprensa. Quando aparece uma nova legislação, por exemplo, são ouvidos. Esse órgão opaco faz com que a mídia não o veja como ator central. Mas as questões mais importantes da educação paulista são colocadas lá cotidianamente. Sem contar a regulação do sistema de ensino…., autorização e fechamento de escolas.
É muito grave o fato dele ser negligenciado…, como no caso do Plano Estadual de Educação. Desde 2001, o estado deveria ter um plano. A sociedade civil mobilizou-se a apresentou uma proposta. E o Executivo apresentou a proposta dele. Elas tramitaram na Assembleia Legislativa. Dez anos depois, o governo retira as propostas, envia outra para o conselho, sem dar publicidade… Está no conselho e, até agora, a gente não teve acesso a ela. Teoricamente, os conselheiros estão analisando.
Enquanto isto, o governo cria programa baseado em decreto, Educação – compromisso de São Paulo, com a intenção de equiparar o sistema de ensino aos melhores do mundo até 2030. Ora, mas o PEE prevê metas decenais mais estruturadas para a educação… E vem um decreto que tem algumas ações ainda pouco transparentes, enquanto o plano ainda está em discussão no conselho. Essa situação evidencia o caráter privatista do conselho, porque não se dá publicidade a uma matéria tão importante.
6) Hubert Alquéres, presidente do CEE disse: “Então, para ser conselheiro, não adianta só pegar uma pessoa que representa um segmento da sociedade civil, pois ele não será necessariamente um bom conselheiro se não dominar legislação e saber como fazer pareceres e regulamentações.”
Você consegue entender em que se baseia esse raciocínio? Ou ele é só uma desculpa esfarrapada para impedir mudanças no órgão?
Fernanda: Ele se baseia num discurso tecnicista que quer restringir a participação de pessoas da sociedade civil, mas que não tem fundamento na atual composição do Conselho. Porque você não vê ali especialista em legislação, por exemplo. Tem alguns bons especialistas, como a professora Nina Ranieri, da Faculdade de Direito da USP. E existem outros conselheiros que, aparentemente, não teriam sequer relação com o campo do ensino.
No artigo da promotora Maria Izabel Castro sobre o Conselho, ela questionou: por que um dentista, por mais que tenha atuação no ensino superior, é mais qualificado para falar de legislação educacional do que um representante de professores da rede pública que, além de conhecer as leis, atua e tem conhecimento de causa do tema?
Além do discurso encobrir o interesse de que se mantenha a mesma estrutura, não tem respaldo na realidade porque não é um órgão técnico, um colegiado técnico.
Vê-se uma heterogeneidade: pessoas que, de fato, detêm o “notório saber” que diz a legislação e outras pessoas que não. A pesquisa do Observatório mostrou isso no perfil. Exemplos: representantes de uma fundação empresarial, dono de um colégio privado… Por que estas pessoas estariam mais gabaritadas do que um presidente de um sindicato? Do que um pai ou mãe de aluno?
Apesar dessa contradição do ‘tecnicismo’ do discurso, não podemos descartar essa dimensão técnica do conselho. Porém, se necessário, deve haver uma política de capacitação dos conselheiros, um assessoramento. Atualmente, inclusive, já existem assessores-técnicos, que são contratados para isso.
O tecnicismo vem junto com a ‘neutralidade política’… Diz este discurso: “Por sermos técnicos, somos neutros; e o fato de vocês quererem maior representatividade da sociedade civil, implica introduzir elemento político que aqui não existe”.
Isto também é uma falácia. Essa ‘técnica’ com a ‘neutralidade’ é sabido que é um discurso da atual gestão do governo, do PSDB, que sempre ressalta o caráter técnico das suas ações. Mas, quando o levantamento mostra que a escolha está pautada por interesses privados, começa-se a questionar essa suposta neutralidade, tecnicidade.
7) Em 24 de maio, o Observatório apresentou um levantamento detalhado sobre o perfil do CEE. Qual a intenção do projeto com este trabalho?
Fernanda: A intenção o Observatório era mapear, o que já havia sido feito em 2007, quando já apareceu a predominância privada. A intenção foi explicitar o caráter pouco democrático desse conselho, que se repete em outros estados. Em 2009, avaliamos 26 conselhos estaduais: 11 previam indicações sociais; 5 preveem também, mas de forma genérica; e 10 não permitiam essa participação. São Paulo estava, e ainda está, neste último grupo.
Queríamos mostrar que os órgãos, que a Constituição idealizou como espaço democrático de gestão da educação, não tem essa função. Então, aparece a incoerência com a lei. E também mapear os grupos presentes nos conselhos, contribuindo para o debate de como deveriam ser.
O destaque do levantamento é que 60% dos conselheiros está ligada ao ensino privado. Foram consideradas neste setor as pessoas que possuem estabelecimentos e prestam consultoria para o setor privado. Não estão consideradas aí pessoas que atuam na rede privada. Se fossem incluídos nesse grupo, a presença seria maior ainda. Mas eles foram reunidos no grupo dos pesquisadores, representantes de instituição acadêmica. Mesmo assim, 60% é um número alto, que não reflete a realidade do sistema de ensino.
Além disso, salta do levantamento o fato de ser um conselho com pouca renovação. Há conselheiros que estão lá há muitos anos e são reconduzidos indefinidamente porque a lei não prevê limite atualmente. Assim, 10 conselheiros estão no cargo há mais de 9 anos, o que equivale a três mandatos.
8) Conseguiu a repercussão desejada? Houve quem criticou o material?
Fernanda: O resultado do trabalho é que ele contribuiu para acelerar esse processo de mudança que poderá vir. Somado à atuação do MPE, dos deputados [Geraldo Cruz e Simão Pedro] que propuseram o projeto [leia abaixo]. Também ajuda no questionamento da atual composição do Conselho e chama a atenção para a importância do conselho como órgão de estado.
Sobre as críticas, elas vieram dos conselheiros. A principal foi de que o levantamento seria uma ação partidária e eleitoreira. Mas eles não rebateram, com argumentos, o levantamento. Foi só a palavra para deslegitimar o interlocutor, sem responder.
Temos de ficar atentos…. Depois da audiência pública, quando o João Palma [conselheiro e secretário-adjunto de Educação] admitiu fazer alterações, nas reuniões seguintes do Conselho, vimos que isso só ocorreria depois das eleições. Hoje, já falam que não há data definida para isto ocorrer. Se os conselheiros não querem que o assunto seja contaminado pelo debate eleitoral, nós não queremos que suma por causa das eleições.
9) Na luta por mudanças no Conselho, o que significa a chegada do PL 108/2012? O modelo que ele propõe é o melhor?
Fernanda: Isto provocou um debate público, com algo concreto, que é um modelo. Destaco também que os deputados fizeram audiências públicas fora do Legislativo também. O governador sinalizou inicialmente que pode fazer essa mudança por meio de decreto. Acreditamos que é necessária uma lei, que reestruturaria o Conselho.
Mas a discussão sobre a origem do projeto persiste: se poderia vir de algum deputado ou somente do executivo. Em 2007, a ideia já foi vetada pelo José Serra [PL 207]. Mas, se o governo alega que há problema de origem, o governador deveria levar proposta para a discussão na Assembleia. Fica evidente que, no momento, não existe interesse de fazer a mudança.
No projeto dos deputados, eu destaco que 18 dos 24 conselheiros seriam indicados pela sociedade, o que é muito positivo. Mas precisa de alguns ajustes, por exemplo, para saber como as entidades iriam eleger os indicados para o órgão.
10) Como os sindicatos e outras entidades de educação podem atuar para melhorar o CEE-SP?
Fernanda: Elas podem qualificar as propostas que estão em discussão. Os trabalhadores da educação têm de estar dentro dos conselhos e também debater essas mudanças no órgão. É importante acompanhar e divulgar as questões que passam pelo conselho. E fazer valer o princípio da gestão democrática da educação: todos fazendo parte das decisões que norteiam a política do estado. Ou seja: contribuir, produzir informação e acompanhar o Conselho.
11) Atualmente, o CEE não é um órgão de Estado?
Fernanda: Não é. É um órgão de governo, de pessoas indicadas por governadores, de acordo com critérios nada transparentes. Então, o fato de estar estruturado nestes termos – falta de transparência, critérios pouco objetivos, falta de regras para a composição – fragilizam muito o conselho como um órgão de estado.
Pra que seja, de fato, órgão de estado – com a função de controle social, é bom destacar – ele terá que passar por uma estruturação que preveja claramente Como, quem, porque aquelas pessoas estão ali.
É evidente que haverá diferentes interesses em jogo, mas é importante que sejam Interesses transparentes e que possa haver escrutínio público. Esses interesses têm de ser evidentes. E o colegiado precisa ser o mais plural possível para que possa haver a discussão. Enquanto houver interesses privados predominantemente, ele não será um órgão de estado. E um órgão de estado pressupõe uma continuidade. Daí que a renovação precisa ser feita com renovação parcial e periódica, além de ter autonomia em relação à Secretaria de Educação.
Entrevista concedida em 30/07 a André Merli, repórter da Fepesp
Fonte: FEPESP