Cursinhos populares promovem educação como direito e não mercadoria

o ingressar no curso de História da Universidade de São Paulo (USP), em 2009, a estudante Grazieli Chirosse Batista, hoje com 27 anos, sentia certa discriminação. Moradora da zona leste da capital paulista e tendo cursado parte do ensino fundamental em escola pública, Grazi notou que a USP trata melhor o aluno que vem de escola particular – por consequência, de melhor renda. Perceber essa diferença – e querer mudar essa situação – foi fundamental na vida da jovem. No ano seguinte, já dava os primeiros passos na que vem a ser hoje uma de suas lutas mais consistentes: a defesa do ensino público, gratuito e de qualidade e do acesso democrático à universidade. “Tive contato com as ideias de Paulo Freire e me apaixonei”, revela. “Vislumbrei na educação uma possibilidade real de transformação social.”

Com essa disposição, ela se aproximou de movimentos e se vinculou à Frente de Cursinhos Populares. Começou dando aulas de História e rapidamente passou à coordenação do cursinho Laudelina de Campos Melo, no bairro do Ipiranga, região sudeste paulistana. Junto com Bruno Pessa, jornalista, Victor Pastore, formado em História, e Tiago Lourenço, físico, ela é responsável por organizar as atividades do Laudelina, que vão muito além da sala de aula.

Uma característica marcante nos cursinhos populares é oferecer aos frequentadores muito mais do que o conteúdo necessário para enfrentar o vestibular. Outro ponto em comum: os professores trabalham como voluntários e participam de reuniões para melhorar a formação pedagógica. E, obviamente, os cursinhos não podem cobrar mensalidade. A coordenação se estrutura de forma horizontal, não existe uma estrutura hierárquica engessada. Tudo é discutido coletivamente.

 

Na divisa entre o bairro de Itaquera (São Paulo, zona leste) e o município de Ferraz de Vasconcelos, está o cursinho Viramundo. Coordenado por Amanda Ventura, estudante de Engenharia Civil da Uninove, e Álvaro Costa, aluno de Publicidade da FMU, o Viramundo é um oásis de conhecimento e cultura para jovens da região, com saraus, debates, filmes. E aulas. “Aqui faltam alternativas de lazer, não existem políticas públicas para a cultura”, afirma Amanda. Como o Laudelina, funciona em escola pública que cede o espaço nos finais de semana para as aulas. A parceria é firmada informalmente com a direção.

Na zona sul está o Carolina de Jesus, em atividade numa escola do Capão Redondo, tendo à frente os jovens Lucas Rodrigues Alves, formado em Economia pela Pontifícia Universidade Católica (PUC), e Gabrielly Leite, estudante de Psicologia do Mackenzie. Atualmente, existem na cidade de São Paulo cerca de 60 cursinhos com perfil semelhante, segundo estimativa do geógrafo Cloves Alexandre de Castro, estudioso do assunto – e ele próprio frequentador e fundador de uma iniciativa nesses moldes.

Em sua tese de doutorado, defendida no Instituto de Geociências da USP, Cloves explica que os cursinhos “são movimentos sociais, espaços e canais em torno de uma demanda pelo acesso ao ensino superior”. Na pesquisa, ele reflete sobre os últimos 25 anos dos cursinhos alternativos e populares do Brasil. Para eles, os populares são os ligados à Rede Emancipa (movimento social com ligação com o Psol), o MSU (Movimento dos Sem Universidade), Educafro e Uneafro (vinculados ao movimento negro), e os alternativos são os cursinhos de universidades e prefeituras. Esses últimos podem, em algum momento, se tornarem cursinhos de mercado.

Muitos dos populares, no entanto, trabalham de forma independente, sem ligação com nenhum movimento. Alguns, contrariando a concepção que norteia o tema, cobram mensalidades baixas e, mesmo assim, ainda oferecem bolsas. Outros pedem aos alunos auxílio para o custeio de apostilas ou outros materiais.

Alternativa de inclusão

Para Grazi, do Laudelina, os cursinhos populares, para ser assim denominados, não deveriam cobrar nada. “Qualquer coisa que você cobra já exclui alguém”, diz. Ela lembra que muitos alunos deixam o cursinho por não ter sequer o dinheiro da condução. Outros ainda vivem uma situação contraditória, delicada: passam no vestibular em outro município e não têm como bancar os custos de passagem e moradia, por exemplo. “Tentamos, de alguma forma, dar conta dessas questões, mas não é fácil.”

Segundo Cloves, os cursinhos com perfil de populares ou alternativos se configuram como movimentos socioespaciais urbanos, um conceito que é resultado de um intenso debate na geografia brasileira sobre os movimentos sociais há 30 anos, com implicações naqueles que não lutam pelo espaço em si e sim pelos usos dos serviços e infraestrutura. “Nesse sentido”, diz o pesquisador, “os cursinhos são movimentos sociais, espaços e canais em torno de uma demanda pelo acesso ao ensino superior”.

Essa procura cresceu entre os anos 1990 e 2000, e a tendência é que amplie, crescendo também, paralelamente, o número de cursinhos com esse foco – ou seja, com propostas de ensino que buscam construir outra prática de educação, em que as camadas mais pobres da população possam estar incluídas.

Segundo Cloves, o primeiro dos cursinhos alternativos surgiu em 1948, na Escola Politécnica da USP, nascido do movimento estudantil – mas, de acordo com o pesquisador, não era um cursinho de “excluídos”. “Também não se tratava de um cursinho de mercado, até porque estava situado dentro do espaço público.” Mas ele destaca que foi dada ali, no cursinho da Poli, a largada para o surgimento dos alternativos e populares. O que marca esse movimento é justamente a crítica ao modelo de ingresso às universidades, atualmente baseado na meritocracia, e uma visão totalmente diferenciada sobre educação, distinta do que prega a maioria das escolas.

“O vestibular é um funil e só expõe a imensa brecha que existe entre a escola pública e a privada”, diz Lucas Alves, coordenador do Carolina de Jesus. Um cursinho dito popular tem de estimular o debate crítico, preparar o aluno para a universidade, não para o vestibular, segundo os jovens que estão à frente desse modelo. “Lutamos para que a educação seja um direito, não uma mercadoria. Queremos uma educação crítica e emancipadora, não massificadora”, defende Gabrielly Leite, também do Carolina.

Os cursinhos de mercado representam a continuidade de um processo, ao contrário do popular. “Não há vagas para todos. A concepção desse projeto educacional dos cursinhos busca superar as desigualdades na educação brasileira”, diz Cloves. Para os jovens de baixa renda, vindos de escolas públicas e, muitas vezes, os primeiros da família a poder ingressar numa universidade, os cursinhos populares representam uma chance concreta de passar num vestibular.

Alcançar o inatingível

Danielli Arcanjo, de 16 anos, moradora de Poá, na Grande São Paulo, é aluna do Viramundo, em Ferraz de Vasconcelos. Estuda para ser médica. “Sei que é difícil entrar numa universidade pública, mas não é impossível, né? Meus pais, que não têm faculdade, me apoiam muito e eu tenho pegado firme nos estudos”, diz a estudante, determinada.

Gabrielly, coordenadora do Carolina e ex-aluna do cursinho, é filha de uma família de retirantes nordestinos. O pai é garçom e a mãe, empregada doméstica. Seu diploma no Mackenzie será o primeiro universitário da família e de boa parte do grupo de amigos do bairro, o Campo Limpo, zona sul. “Das pessoas que fizeram ensino fundamental comigo a maioria está fora da universidade. Os que ingressaram – muito depois de mim – foram para faculdades privadas com bolsa, instituições consideradas de baixa qualidade”, conta.

Seu sonho sempre foi ir longe nos estudos. “Tenho claro que um diploma universitário é um dos caminhos para mudar a realidade da minha família.” Embora não tenha entrado na USP, Gabrielly está no Mackenzie, faculdade considerada de elite, com bolsa do ProUni. Para muitos jovens como ela, não fossem os cursinhos populares instituições como Mackenzie ou USP soarim como inatingíveis. “Diversos professores das escolas públicas nem falam do vestibular da Fuvest para seus alunos”, afirma Grazi. Na sala de aula do cursinho, os professores são estimulados a fomentar nos estudantes o desejo de ingressar em uma universidade pública.

Para marcar essa posição, a cada ano, ao final do primeiro semestre de aulas, vários cursinhos populares se organizam para um movimento que chamam de Ocupa USP. Este ano, o evento ocorreu no dia 24 de junho e reuniu mais de 400 alunos, de seis cursinhos populares. Eles têm por costume percorrer parte da universidade, num tour crítico informativo. O encontro conta com sarau, almoço coletivo e debates a respeito da democratização do acesso à universidade púbica – além, é claro, de protestos contra a escassez de negros na instituição e contra a elitização do ensino de forma geral. Muitos alunos chegam a esse “passeio” sem nunca ter ouvido falar na USP, sem saber que ela é pública, que pode ser visitada, que os livros em suas bibliotecas podem ser consultados.

Lucas, do Carolina de Jesus, resume bem a proposta dos cursinhos populares. “Não somos só um preparatório para o vestibular. Preparamos para a prova, para que o aluno passe, mas também queremos prepará-lo para a nova realidade que irão encontrar por lá. Nossos alunos, por culpa do despreparo de muitos professores, vítimas também dessa realidade educacional precária, chegam aqui com autoestima abalada. Mas conseguimos mudar isso. Inspirados em Paulo Freire, queremos que eles se reconheçam como transformadores sociais, que têm capacidade de mudar a realidade”, diz.

Orgulho de ser negra

Helena Souza Moraes, de 16 anos, aluna do Carol, como o cursinho é carinhosamente chamado, retrata bem a fala de Lucas. Negra, fazia alisamento no cabelo e conta que tinha o desejo de ser branca. No cursinho, foi aprendendo a se aceitar. Há poucos meses, Helena participou no Carol de um debate com Douglas Belchior, professor de História, militante do movimento negro e coordenador do Uneafro. E se emociona ao descrever como passou a ter orgulho de ser negra.

“Ele falou de coisas que eu vivo, do racismo, foi muito tocante e me ajudou a mudar mais ainda minha cabeça”, explica. No Carol, ela havia aprendido a assumir os cachos naturais de seu cabelo. “O cursinho, com todos os debates, com uma visão crítica, me fortalece muito, eu me sinto pertencendo a algum lugar, sinto que posso muito também. As aulas são dadas de um jeito muito diferente da escola. Os professores são comprometidos, a gente aprende bastante”, garante.

No Laudelina, as dinâmicas são parecidas, com círculos semanais, para discussão de um tema, e sempre com muito espaço para o debate e a construção de pensamento crítico. “Acho que estão no caminho certo, eles nos ensinam a ser cidadãos conscientes dos nossos direitos, nosso aprendizado não se resume às matérias do vestibular”, elogia Vitor Francisco de Matos, de 58 anos, candidato a uma vaga de História. “Sou nascido no Piauí e tenho muitas defasagens no ensino, mas aqui sinto que aprendo muito mais do que em vários anos de escola.”

Iago Quental, de 18 anos, também acredita que as atividades extra sala de aula do Laudelina são fundamentais para aperfeiçoar os estudantes uma visão mais realista a respeito do mundo. “Vemos aqui coisas que jamais vemos nas escolas. O cursinho abre muito nossa cabeça e isso é bom para tudo”, afirma o jovem, que deseja se formar em Arquitetura.

Outra característica dos cursinhos é que muitos dos seus professores já foram alunos, como Gabrielly. O professor de Química do Viramundo Matheus Dias, de 19 anos, diz que quis retribuir um pouco do que recebeu. O maior desafio das aulas, acredita, é dar todo o conteúdo em pouco tempo, e ainda lutando contra as dificuldades dos estudantes. “Mas eu me sinto gratificado por fazer minha parte. Acredito no potencial da educação.”

Amanda e Álvaro, do mesmo cursinho, foram alunos da escola onde funciona o Viramundo. “Por conhecer de perto a realidade de Ferraz, ficamos ansiosos por fazer algo para mudar a vida de muitos desses jovens aqui da região”, explica Álvaro. Para Amanda, o déficit de autoestima é um problema sério dos estudantes. “Eles precisam aprender a acreditar neles. Muitos não contam com apoio nem da família, nem da escola, precisam do cursinho para seguir em frente. A evasão é grande e, nas periferias, o espaço que não é ocupado com educação e cultura vira alvo da violência”, assegura.

Professora de Sociologia no Viramundo, Juliana Zaroni reforça a opinião dos coordenadores. Moradora do bairro paulistano da Saúde, na zona sul, próxima ao chamado centro expandido, Juliana tem um perfil diferente do encontrado no cursinho onde leciona. Essa diferença, no entanto, a estimula a andar percorrer duas horas de metrô, trem e ônibus para chegar ao cursinho aos sábados. “Vejo o movimento secundarista como um oásis no deserto”, diz. Jornalista, migrou para a Sociologia e para o universo das escolas públicas por acreditar no potencial transformador da educação. “Aqui, de fato, eu vejo sentido no que faço.”

O projeto político-pedagógico dos cursinhos passa pelo caráter emancipador da educação. Nesses espaços, os jovens das periferias têm encontrado apoio para sonhar, juntos, com um ensino que seja público e de qualidade, e que possibilite seu ingresso numa universidade gratuita. Segundo o Ministério da Educação, mais de 85% dos estudantes brasileiros do ensino médio estão na rede pública. Em 2016, apenas 34,6% dos estudantes que começaram estudar na USP – que ainda não tinha política de cotas para alunos escolas públicas – vieram desse segmento. Esses números dão uma dimensão da elitização do acesso à universidade e mostram como a luta dos cursinhos populares é necessária. E está longe de ser concluída.

Da Rede Brasil Atual

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