‘Minha professora é diferente, e ela é maravilhosa’: a trajetória da educadora com Down alvo de preconceito de desembargadora
“Estou escrevendo para agradecer a carta que você me mandou e lhe dizer que suas palavras me fizeram refletir muito. Bem mais do que as centenas de ataques que recebi nas últimas semanas. Desculpe a demora na resposta, mas eu precisava desse tempo.”
A professora Débora Seabra de Moura, de 36 anos, se preparava para mais um dia de aulas nesta quarta-feira em Natal (RN) quando se deparou com essas palavras, encaminhadas a ela por um amigo da família.
A autora da mensagem era a desembargadora Marília Castro Neves, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. E o pedido de desculpas poderia ser um desfecho redentor para o caso de preconceito do qual a professora, considerada a primeira com síndrome de Down no Brasil, foi vítima.
Mas Débora foi pega de surpresa: a carta não foi enviada a ela, mas divulgada pela magistrada à imprensa horas antes que o conteúdo chegasse, por acaso, em suas mãos.
‘O que será que essa professora ensina a quem?’
As vidas da professora e da desembargadora se cruzaram há cerca de três anos, quando Marília Castro Neves postou em um grupo de magistrados no Facebook um comentário em que dizia ter ouvido no rádio que o Brasil é “o primeiro país a ter uma professora portadora de síndrome de Down”.
Na mensagem, ela declarou: “(…) Aí me perguntei: o que será que essa professora ensina a quem? Esperem um momento que eu fui ali me matar e já volto, tá?”.
O teor da publicação só viria a público em março deste ano, depois que a juíza fez comentários ofensivos e com informações falsas contra a vereadora Marielle Franco (PSOL), então recém-assassinada a tiros na região central do Rio de Janeiro.
“Me senti machucada”, contou Débora à BBC Brasil. “Doeu o preconceito de dizerem que sou incapaz de dar aula.”
O caso foi parar no Conselho Nacional de Justiça (CNJ) após denúncia feita pela Federação Brasileira das Associações de Síndrome de Down. Se somou a outros quatro ajuizados contra a desembargadora por causa de suas polêmicas postagens nas redes sociais. Todos tramitam em segredo de Justiça – o órgão diz não poder dar esclarecimentos sobre o andamento dos processos.
Em tese, o prazo de defesa de Neves no CNJ terminaria nesta quarta-feira – mesmo dia em que ela postou no Facebook o pedido de desculpas à Débora e “à memória de Marielle”.
O texto foi publicado em seu perfil nas redes sociais, onde postagens mais recentes, inclusive essa, são fechadas e, portanto, visíveis somente a amigos. Acabou noticiado pela colunista Mônica Bergamo, do jornal Folha de S. Paulo, mas não foi e nem será enviado diretamente a Débora ou à família, segundo confirmou à BBC Brasil um assessor do gabinete da desembargadora. “A divulgação que existe é esta.”
Procurada pela reportagem, a magistrada não quis dar entrevista. A família de Débora também preferiu não fazer comentários sobre a carta.
‘Tenho o que ensinar’
Marília Castro Neves escreveu 386 palavras. Em meio a elas, diz que “tem sofrido muito” desde que foi “atropelada” pela divulgação de comentários que fez em grupos privados, alguns dos quais “há tanto tempo” que ela já “nem lembrava deles”.
Diante da “repercussão imensa”, ela diz que decidiu se recolher, chorou e pensou muito. E acrescenta: “E de tudo que li e ouvi ao meu próprio respeito, foi de você, de quem em um primeiro momento duvidei da capacidade de ensinar, que me veio a maior lição: a de que precisamos ser mais tolerantes e duvidar de pré-conceitos”.
“Perdão, Débora, por ter julgado, há três anos atrás, (…) que uma professora portadora de síndrome de Down seria incapaz de ensinar. Você me provou o contrário.”
Débora havia publicado no Facebook, ainda em março, uma carta-resposta ao questionamento da desembargadora.
Pegou lápis, uma folha de caderno e o “choque” que sentiu, como contou à BBC Brasil. E então escreveu o que chamou de “Recado para a juíza Marília”. No texto, detalha suas atividades em sala de aula e afirma “ensinar muitas coisas” às crianças.
“A principal é que sejam educadas, tenham respeito pelas outras, aceitem as diferenças de cada uma e ajudem a quem precisa mais.”
Quando terminou, “sentiu um alívio”.
“Pensei que tinha de responder logo. Tenho o que ensinar às crianças e a todo mundo.”
‘Insegurança desnecessária’
Débora cursou magistério e, logo depois de formada, foi chamada para ser auxiliar de desenvolvimento infantil na escola onde havia estudado – uma das mais tradicionais na rede privada em Natal (RN).
Treze anos atrás, quando pôs os pés em uma sala de aula pela primeira vez na nova função, o sentimento entre pais e professores era de “insegurança”, admite a diretora geral da instituição, Lucila Ramalho.
“É que foi de fato quebrar uma barreira. Nunca havíamos tido uma auxiliar com necessidades especiais”, diz. “Mas foi uma insegurança desnecessária e que foi se dissipando. A síndrome de Down não atrapalha a prática dela. E ela conquista muito a criança.”
Sandra Nicolussi, de 52 anos, a primeira professora a quem Débora auxiliou, ficou “receosa”, mas “se surpreendeu”. “Ela precisava de tempo para aprender, mas foi se apropriando da rotina e mostrou que dava conta.”
Débora atua hoje em uma turma do 4º nível, com cerca de 20 alunos na faixa dos cinco anos de idade. Faz dupla com outra auxiliar encarregada, assim como ela, de dar assistência às atividades definidas em plano de aula e coordenadas por uma pedagoga.
Nessa função, é uma das mãos que ajudam a abrir os livros e a conduzir as crianças ao parque e ao banheiro, assim como os olhos que leem e a boca que conta histórias, “de preferência sobre animais e contos de fadas”.
“Eu ajudo a educar e a incluir todo mundo”, descreve ela. “Ensino que eles não podem brigar, que precisam dividir brinquedos, materiais de aula e aceitar todas as crianças como elas são.”
Débora diz que “se apaixonou por crianças”. “Porque elas trazem alegria para a gente.”
Ela encontrou reciprocidade no caminho.
Cinco anos atrás, a professora Laísa Palhano Torres, de 47 anos, ouviu a filha, Rebeca, dizer surpresa: “Sabe, mamãe, tem uma professora diferente na minha sala. E ela é maravilhosa.”
A menina tinha seis anos. “E acabou vendo o belo, por meio de diferenças. Viu que não é preciso ter um susto diante de um cadeirante, de um autista, ou da professora com síndrome de Down. Que é parte da vida”, diz a mãe.
Na sala de aula, Débora vira a “tia Débora” – Ana Júlia, uma das alunas de sua turma neste ano, capricha na entonação para contar sobre ela à mãe, a servidora federal Juliana Vieira Costa de Aguiar, de 34 anos.
Livro de fábulas
Da experiência de contar histórias aos alunos, Débora passou também a escrevê-las. Em 2010, trabalhou às escondidas em seu quarto, criando histórias e personagens. E no Natal daquele ano, entregou um manuscrito, depois transformado em livro, como presente aos pais.
“São pequenas fábulas em que a preocupação central é sempre a compreensão, a empatia e a convivência cordial e afetuosa com os diferentes”, descreveu o escritor João Ubaldo Ribeiro no prefácio.
Nas histórias que concebeu, uma menina, Sandra – uma homenagem à primeira professora que auxiliou – vive em uma fazenda onde ajuda a resolver conflitos entre os animais e a disseminar a mensagem de “sim à inclusão” e “não ao preconceito”.
Por meio de seus ensinamentos, um cachorro e um papagaio aprendem a conviver com as diferenças e se tornam amigos, um coelhinho preto se dá conta de que não precisa ter pelos brancos para conquistar espaço e uma galinha surda, então isolada, aprende a se comunicar. E por aí vai. “É um pouco da história dela”, diz a mãe de Débora, a advogada e procuradora aposentada Margarida Seabra de Moura.
Na fábula, um passarinho perdido é encontrado ferido. Ele voa então mais devagar e os outros questionam se não ficaria mais seguro se permanecesse na gaiola, sempre.
Sandra, a menina da fazenda, discorda. “Já pensaram se eu proibisse vocês de voarem para onde quisessem?”, pergunta. “Tentem conviver com ele, aceitando o seu jeito de voar mais devagar. Ele voa com uma asa só, mas consegue ir para onde vocês vão e chegar lá como vocês chegam.”
Trinta e seis anos atrás, pouco tempo após a professora e escritora nascer em Natal, ela estava em São Paulo com a família quando o cartunista mineiro e amigo dos pais dela, Henfil, vaticinou: “Débora, você é tão forte quanto eu e vai fazer coisas inimagináveis”.
Poucos meses antes, o pai dela, o psiquiatra José Robério Seabra de Moura, acompanhava o parto da filha quando viu o pediatra levar o bebê rapidamente para uma sala ao lado. Foi quando a família soube da síndrome de Down – uma alteração genética sobre a qual, no pouco que se falava, parecia conter prognósticos assustadores.
Todos ficaram, afirma, “em choque”, mas a “aceitação” veio. “E já que o coração é sempre o órgão eleito para essas coisas, de repente ela estava ocupando o lugar dela, dentro da gente”, diz Robério.
Dentro deles e no mundo.
Débora foi à escola – sempre em instituições regulares –, cresceu estampando páginas de jornal ou falando em programas de TV locais e nacionais sobre inclusão, mas não parou por aí.
Ela fez palestras em seminários e em outros eventos dentro e fora do Brasil – em Portugal, na Argentina e na 3ª Conferência do Dia Internacional da Síndrome de Down, na sede das Nações Unidas em Nova York, nos Estados Unidos, onde ressaltou que “a inclusão começa na família, começa em casa”, mas também passa pelos amigos e pelo trabalho. Também recebeu, em 2015, o Prêmio Darcy Ribeiro, concedido pela Câmara dos Deputados a pessoas de destaque na área da educação.
O irmão dela, o advogado Frederico Seabra, um ano e meio mais velho, a define como a “antifrágil”.
“Eu acho que Débora é o contrário de frágil. Ela sente o preconceito quando acontece, mas cresce. Consegue dar respostas fortes em cada situação e sair bem disso.”
Ele estava na sala de espera de uma clínica onde faria exames quando chegou uma mensagem da mãe pelo WhatsApp: “Você viu o que Débora fez?” Era uma foto da carta que a professora escreveu em resposta à desembargadora. A família então perguntou a ela se queria mesmo publicar. Ela quis. E assim fez.
“Ela sabe se defender. É advogada de si mesmo”, diz Frederico.
Quando Débora nasceu, a expectativa de vida de quem tinha síndrome de Down era de até 20 anos de idade, diz o geneticista e pediatra Zan Mustacchi, especialista na área há 40 anos. “Agora gira em torno de 60 a 70 anos”, explica.
Essa não foi a única mudança ocorrida com o tempo. “As pessoas com síndrome de Down eram marginalizadas com mais frequência no passado, mas era o medo que as pessoas tinham do desconhecido, havia menos divulgação na mídia sobre o assunto e menos oportunidades sociais e de acesso à saúde”, diz.
“Ainda existem estereótipos, mas isso está mudando.”
Segundo o Ministério da Saúde, cerca de 300 mil pessoas no Brasil têm a síndrome, também conhecida como Trissomia 21, em referência ao cromossomo 21, presente nesses indivíduos.
A síndrome é uma alteração genética que afeta 1 em cada 800 recém-nascidos e é resultado de uma falha na divisão celular do óvulo ou do espermatozoide antes da concepção da criança. Com isso, em vez de ter 46 cromossomos – como a maior parte da população –, ela nasce com 47.
O pai de Débora brinca que um dos cromossomos dela é o que a torna resistente e persistente para ir atrás do que quer e defender suas bandeiras.
“Eu não desisto dos meus sonhos”, ela diz. Dos planos também não. E os que tem em mente, revela, são “casar e continuar sendo professora até se aposentar”.
“Mas a aposentadoria ainda está longe.”