A educação entre a Constituição de 1946 e o golpe de 1964
A educação nacional envolve embates de diferentes correntes, de posições e concepções antagônicas, com avanços e retrocessos nas relações com o Estado. Um exemplo é a gratuidade da educação primária, adotada na Carta outorgada por Pedro I e ausente na Constituição de 1891.
A Carta Imperial de 1824 previu a gratuidade da instrução primária para todos os cidadãos e dispôs sobre “colégios e universidades, onde serão ensinados os elementos das Ciências, Belas Artes e Artes”. A de 1891 mudou a forma do Estado, de unitário, monarquicamente concebido e defendido, para federal, centrado no modelo norte-americano, complementado também com a mudança na forma de governo, de monarquia para república, e no regime, de parlamentarista para presidencialista.
A Constituição americana não fala, uma vez sequer, em educação. Pela nossa primeira republicana, competia ao Congresso Nacional legislar sobre o ensino superior, criar instituições deste nível e estabelecimentos secundários nos Estados. O ensino ministrado nos estabelecimentos públicos era leigo.
Na Constituição seguinte, de 1934, foi prevista a organização de um Plano Nacional de Educação, por influência do Movimento dos Pioneiros da Educação Nova. É destacada a influência da Associação Brasileira de Educação (ABE), fundada em 1924. Cabia à União “organizar e manter, nos Territórios, sistemas educativos apropriados aos mesmos” (art. 150, c). Aos Estados e ao Distrito Federal competia “organizar e manter sistemas educativos nos Territórios respectivos, respeitadas as diretrizes estabelecidas pela União” (art. 151). Foram vinculados percentuais de impostos à educação, sendo, para a União e Municípios, de no mínimo 10% e, para os Estados e o Distrito Federal, 20%.
Revogada essa Carta e adotada a de 1937, base do Estado Novo, é atribuída à família a responsabilidade primeira pela educação integral da prole e ao Estado o dever de colaborar para a execução dessa responsabilidade. Essa Constituição destinava o ensino profissional às classes despossuídas. A Constituição de Getúlio Vargas não se refere a qualquer sistema de ensino, nem federal, nem estadual.
Foi substituída pela Constituição de 1946, elaborada por representantes eleitos. Foram debatidos pelos constituintes: a liberdade de ensino e o ensino oficial, o ensino leigo versus o ensino religioso, a questão das verbas para a educação e a responsabilidade do Estado na estruturação e manutenção do sistema de ensino. Estabeleceu como responsabilidade da União “legislar sobre diretrizes e bases da educação nacional”. Foi influênciada pela Carta Brasileira da Educação Democrática, organizada pela ABE e aprovada na Conferência Brasileira de Educação, realizada no Rio de Janeiro de 22 a 28 de junho de 1945. O documento considerava educação democrática a que, “fundada no espírito da liberdade e no respeito à pessoa humana, assegura a expansão e expressão da personalidade, proporcionando a todos igualdade de oportunidades, sem distinção de raças, classes ou crenças, na base da justiça social e da fraternidade humana, indispensáveis a uma sociedade formada pelo espírito de cooperação e do conhecimento”.
Passou a integrar a Constituição um capítulo sobre educação, o que irá se registrar na Constituição imposta da ditadura militar em 1967 e na Constituição de 1988, também elaborada por constituintes eleitos. A Carta de 1946 trouxe normas programáticas para a descentralização dos encargos educacionais da esfera da União para os Estados e Distrito Federal, reconhecendo explicitamente os sistemas estaduais de ensino. Surgiu o sistema federal de educação em caráter supletivo (para suprir deficiências locais).
Até a Constituição de 1946, a União concentrava o ensino secundário e superior, restando ao Estado-membro apenas o ensino primário e a formação de professor. A modificação mais profunda foi a possibilidade de os Estados organizarem, eles próprios, os seus sistemas, podendo ir do pré-escolar às instâncias superiores da pós-graduação. Os três níveis de ensino puderam se expandir dentro do sistema estadual com autonomia pedagógica.
Com essa Constituição começou o ciclo das leis de diretrizes e bases. A Lei nº 4.024, de 1961, assinada pelo presidente João Goulart, a primeira lei geral de educação, permitiu a descentralização da educação da esfera federal para a estadual, com a institucionalização dos sistemas de educação e recriação dos Conselhos de Educação com funções normativas. Ainda na vigência desta Lei de Diretrizes e Base, foram instituídos o salário-educação e a pós-graduação.
Entre a promulgação da Constituição e a assinatura da Lei nº 4.024, de 1961, foi publicada a nova carta dos educadores. O manifesto “Mais uma vez Convocados” (1959,) defende a escola pública e uma educação liberal e democrática, para o trabalho e o desenvolvimento econômico, para a transformação da sociedade.
Dentre seus 189 signatários estavam Fernando Azevedo (redator deste e da Carta Brasileira da Educação Democrática), Anísio Teixeira, Florestan Fernandes, Caio Prado Júnior, Sérgio Buarque de Holanda, Fernando Henrique Cardoso, Darci Ribeiro, Nelson Werneck Sodré. Afirma que “a educação pública por que nos batemos, ontem como hoje, é a educação fundada em princípios e sob inspiração de ideais democráticos. A idéia de educação pública – conquista irreversível das sociedades modernas; a de uma educação liberal e democrática, e a de educação para o trabalho e o desenvolvimento econômico e, portanto, para o progresso das ciências e da técnica que residem na base da civilização industrial, são três teses fundamentais defendidas por educadores progressistas do mundo inteiro. (…) A escola pública concorre para desenvolver a consciência nacional: ela é um dos mais poderosos fatores de assimilação como também de desenvolvimento das instituições democráticas. Entendemos, por isso, que a educação deve ser universal, isto é, tem de ser organizada e ampliada de maneira que seja possível ministrá-la a todos sem distinções de qualquer ordem; obrigatória e gratuita em todos os graus; integral, no sentido de que, destinando-se a contribuir para a formação da personalidade da criança, do adolescente e do jovem, deve assegurar a todos o maior desenvolvimento de suas capacidades físicas, morais, intelectuais e artísticas.”
A Constituição elaborada democraticamente foi revogada em 1967, pela ditadura militar. Favoreceu, com a lei de Goulart, o desenvolvimento dos sistemas estaduais nos níveis primário, médio e superior. Permitiu, no ensino médio, que os estabelecimentos fizessem a opção de continuar no sistema federal ou passar para o estadual. Começou a fase da educação estadualista. Até 1946, eram poucos os estabelecimentos estaduais desse nível.
Leia as íntegras da Carta Brasileira de Educação Democrática (1945) e do Manifesto dos Educadores:
Mais uma Vez Convocados (1959)
Leia a Lei de Diretrizes e Base da Educação, de 1961
Carlos Pompe