Hidroxicloroquina x Fosfoetanolamina e a propensão humana ao pulo do gato

“As lições ensinadas pelo episódio da ‘pílula do câncer’ parecem ter sido esquecidas”, comenta Carlos Rogério Tonussi, professor associado do Departamento de Farmacologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)

Por Carlos Rogério Tonussi

Até o presente momento, é irresponsável alguém tentar passar a falsa noção de segurança para o público em geral, de que existe um tratamento eficaz para a COVID-19, abrandando assim o isolamento social e estimulando a volta às atividades normais de trabalho. NÃO seja essa decisão baseada em tratamento medicamentoso, por que ele AINDA não foi descoberto.

Não foi há muito tempo que a opinião pública brasileira passou por semelhante furor medicamentoso. A fosfoetanolamina rachou o país entre defensores apaixonados e os céticos, quando ganhou o cenário nacional na segunda metade de 2015, como uma cura “milagrosa” para o câncer. Na época haviam estudos realizados em células e ratos de laboratório sugerindo eficácia contra alguns tipos de câncer, e muitos relatos individuais de pessoas que tomaram por conta própria a substância e se diziam curadas.

Episódios dramáticos se seguiram com debates em câmaras municipais, assembleias legislativas e até no Senado, onde os pesquisadores responsáveis pela síntese e estudos da fosfoetanolamina eram questionados e davam suas explicações. Alguns dos políticos de plantão na época rapidamente se posicionaram a favor da liberação de seu uso pelos doentes, sem que houvessem sido feitos os procedimentos legais a que todo novo medicamento deve ser submetido antes de ser liberado para uso médico.

Um desses políticos era o atual presidente de república, Jair Bolsonaro.

“Eu duvido que alguém aqui não tenha um parente, um amigo acometido desse mal. Nós podemos agora dar uma esperança a essas pessoas” Jair Bolsonaro, em 8 de março de 2016.

A pressão foi tamanha que o Ministério da Saúde de então, contratou os laboratórios de referência no país para conduzir estudos de acordo com os protocolos da ANVISA, para subsidiar as decisões e convencer a opinião pública. O resultado disso foi que a fosfoetanolamina foi provada INEFICAZ contra o câncer.

POR OUTRO lado, é preocupante ver pessoas da ciência, que na época condenaram o uso da fosfoetanolamina, justamente porque não haviam estudos sérios que comprovassem sua eficácia, estarem hoje apoiando o uso da hidroxicloroquina, mesmo ser termos os ditos estudos sérios que comprovem sua eficácia!

Cientistas, enquanto cientistas, devem ser consultados, mas quem tomam decisões são os gestores. Estes devem ter suficiente perspicácia para avaliar riscos e o custo/benefício dessas decisões. Em momentos de crise tão complexa como a atual, para o qual, diga-se de passagem, nenhum gestor no Brasil, talvez nem no mundo, esteja preparado, os cientistas devem procurar ser o mais precisos e imparciais que puderem, enquanto usarem suas credencias de cientista.

No Brasil temos uma tradição precária em farmacologia clínica, são poucos os centros de pesquisa que realizam pesquisa nessa área, que não é trivial para qualquer cientista por mais destacado que seja nas áreas básicas das ciências médicas. E aí, em uma situação dramática de crise em saúde, vemos o desespero levar ao imediatismo. Situação sempre propícia para o curandeirismo e falsos profetas de plantão. As lições ensinadas pelo episódio da “pílula do câncer” parecem ter sido esquecidas.

A cloroquina não é inócua como a fosfoetanolamina, pelo contrário, é um agente muito eficaz contra a malária e para algumas formas de doenças autoimune, como a artrite reumatoide e o lupus, mas para a COVID-19 ainda não se sabe. Simplesmente, os estudos que foram feitos até agora não permitem saber se os pacientes com COVID-19 e que tomaram este medicamento, melhoraram por causa dele.

Pode-se dizer até que muitos estão pintando um quadro exageradamente tenebroso em relação a hidroxicloroquina, listando todos os efeitos tóxicos possíveis e imagináveis para este fármaco, fazendo-a parecer muito mais perigosa do que é realmente. Boa parte dos efeitos tóxicos que ela pode apresentar referem-se ao uso crônico (semanas, meses), típico do seu uso na artrite reumatoide. No uso agudo (dias), o maior problema é o risco de arritmias cardíacas fatais. Por isso, pacientes com histórico de problemas no coração não são indicados para a cloroquina! Afinal, que é que está querendo entrar para a lista de efeitos adversos graves dela?

Deve-se levar em conta, porém, que a experiência que se tem com esse fármaco no uso de curta duração é, basicamente, no tratamento da malária. Pacientes com malária normalmente são jovens (< 50 anos) e, geralmente estão com o coração, fígado e rins em melhor forma do que os pacientes com covid-19. Pacientes com COVID-19, no entanto, são geralmente idosos (> 60 anos), com o coração, fígado e rins já em não tão boa forma assim. Com esse quadro em mente, um farmacologista clínico sabe que, quando está tratando pessoas idosas, não pode se basear plenamente naquilo que se conhece sobre a toxicidade da cloroquina em pessoas jovens.

Por isso, é totalmente justificável que um intensivista responsável pense duas vezes antes de administrar hidroxicloroquina em seus pacientes, visto que o risco de efeitos adversos fatais são bem reais. E, lembrando novamente, até o presente momento não existem demonstrações conclusivas de que a hidroxicloroquina seja realmente benéfica. Não podemos nos deixar levar por impressões, e é muito fácil em momentos de desespero que mesmo médicos sejam tomados pela falsa impressão de eficácia sobre algum procedimento. O que não significa que não devam seguir com a avaliação criteriosa de todas as possibilidades de tratamento possíveis.

As pessoas tem uma propensão natural a querer dar o “pulo do gato” em algum assunto. Pegarem um atalho esperto para atingirem mais rapidamente um objetivo. É essa propensão natural que as fazem presas fáceis de quem entende esse comportamento. Aquelas compras vantajosas por uma “pechincha”, jogos de loteria, religião e, por que não, um remédio barato e fácil de conseguir. Pode ser até um chá indicado por um conhecido. Foi por isso que a “pílula do câncer” causou comoção nacional há 4 anos e agora a hidroxicloroquina também. E sempre tem por trás um ilusionista que sabe manipular essa propensão natural do ser humano a querer dar o pulo do gato!

Sobre o autor: Carlos Rogério Tonussi é professor associado do Departamento de Farmacologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)

*O artigo expressa exclusivamente a opinião de seu autor

Jornal da Ciência

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