“As pessoas precisam estar prontas para Machado”, diz tradutora
Após adaptar “Memórias Póstumas de Brás Cubas” para o inglês, tradutora define autor brasileiro como incomparável. Para ela, Machado “brincou de maneira genial e absolutamente perversa com a sociedade em que vivia”
O selo Penguin Classics lançou nos Estados Unidos, no dia 2 de junho, a nova tradução para o inglês do clássico de Machado de Assis Memórias Póstumas de Brás Cubas. Intitulado The Posthumous Memoirs of Brás Cubas, o livro, na versão em papel, se esgotou no mesmo dia. A editora não divulga a tiragem. De toda forma, parece um feito surpreendente para um mercado no qual apenas 3% das publicações são traduzidas de outros idiomas.
Foi uma surpresa também para a tradutora americana Flora Thomson-DeVeaux, que dedicou nada menos que cinco anos de trabalho à empreitada. Em entrevista à DW Brasil, ela afirma que ainda não sabe dizer se este é mais um “momento Machado”, que toda geração vive quando redescobre a obra do autor no mundo anglófono, como já disse a crítica americana Susan Sontag, admiradora confessa do “bruxo do Cosme Velho”.
Publicado pela primeira vez em livro em 1881, Memórias Póstumas é narrado em primeira pessoa por um morto, que reconta sua história de vida, e perpassa temas ainda caros à sociedade brasileira, como raça e classe social. Machado, aliás, negro e neto de escravos alforriados, passou por um processo de branqueamento ao longo da história. Essa parte de sua identidade, segundo Thomson-DeVeaux, aparece de forma velada na obra que ela traduziu.
“Quando eu leio o capítulo em que Brás mata sem pensar uma borboleta preta, porque ele fica chateado com a borboleta preta, e depois pergunta ‘Por que ela não nasceu azul?’, não consigo não ler em uma chave que tem a ver com uma experiência vivida num país onde o valor de uma vida preta estava claramente colocado e era muito baixo”, diz Thomson-DeVeaux,
Do Rio de Janeiro, onde vive desde 2017, a tradutora e escritora falou com a DW Brasil sobre seu processo de trabalho no livro e como a obra machadiana permanece atual e incomparável e que não se pode “tentar botá-lo numa caixinha certa, com a fitinha certa, para as pessoas finalmente o abraçarem”. “Não, elas é que têm que estar prontas para ele”, diz.
DW Brasil: Como começou a sua relação com o Brasil e com a língua portuguesa?
Flora Thomson-DeVeaux: Começou no primeiro ano na Universidade de Princeton, eu não tenho relação familiar no Brasil, sou norte-americana. Eu entrei na faculdade falando espanhol, que aprendi no ensino médio. Em um evento de apresentação do departamento aos alunos, eles nos aconselharam a estudar português, além do espanhol. Então foi assim, começou como curiosidade puramente linguística. Eu apanhei muito no primeiro semestre estudando a língua, era muito mais difícil do que eu imaginava. Mas no segundo semestre eu comecei a criar uma relação com o Brasil além da língua.
Sobre a tradução de Memórias Póstumas, quanto tempo levou o processo de tradução e como você definiu seu método?
Antes de sentar e falar “estou traduzindo”, teve quase dois anos de pesquisa para o doutorado. Vim morar no Rio de Janeiro no começo de 2017, e foi nessa fase que comecei o processo de tradução, quando eu alternava com a pesquisa sobre as traduções anteriores. Cheguei a entrar em contato com o genro do primeiro tradutor [de Memórias Póstumas para o inglês], William Grossman, fui até a Califórnia para resgatar materiais do processo dele de tradução. Também consultei o acervo do tradutor machadiano Gregory Rabassa, na Universidade de Boston. Então eu fui meio que conjugando essa pesquisa continuada com a tradução. Defendi a tese no final de 2018, e nessa época o processo com a editora já estava em curso. No total foram cinco anos de trabalho, o que é um luxo, porque todo tradutor literário sonha com tanto tempo de pesquisa.
Muitos tradutores comentam que é um desafio transpor uma cultura de uma língua para outra. Na teoria da tradução há textos de Goethe citando que é preciso manter ao máximo “o ritmo e até o ar entre as palavras”. Existe um segredo para traduzir a “pena da galhofa” de Machado para o inglês?
A parte cultural é a parte grande e histórica. É peculiar achar que, se um leitor brasileiro precisa de anotações sobre a questão temporal e histórica, um leitor de língua inglesa não vá precisar. Há uma ideia de que as notas são a derrota do tradutor, porque você não conseguiu encaixar algo. Mas não tem como você enfiar todo o contexto, vai virar outra coisa. O Machado estava escrevendo em um determinado momento histórico, em um lugar, para um determinado público. Acho que a gente só tem a ganhar com essa contextualização.
A minha concessão para manter a integridade do texto era colocar notas no fim do livro, e não de rodapé. Tendo sido aprendiz de tipógrafo, o Machado era muito consciente do livro como objeto físico, ele falava das margens, das edições e da encadernação. Memórias Póstumas não é um livro que se pensa com nota de rodapé, isso foi muito importante para mim.
Sobre manter o ar entre as palavras, que o Goethe escreveu, acho que entra aí uma questão temporal também. O Machado tem umas frases bem longas nas quais o ponto e vírgula é essa respiração. Você não tem a ênfase abrupta de um ponto final, é como se as frases flutuassem. Aí o segredo é manter. O bacana de olhar outras traduções é porque só ao estranhar a ausência de alguma coisa é que entendemos a importância dela. É muito difícil você captar tudo isso só a partir do texto na língua original ou apenas lendo uma tradução.
Qual o limite entre manter a estrutura e ser fiel ao autor ou ser mais claro na nova língua, para facilitar a compreensão do leitor estrangeiro?
Eu nunca tive a pretensão de fazer o Machado soar como autor do século 21. Enquanto eu traduzia, li autores de língua inglesa do século 19. Uma das coisas geniais de Memórias Póstumas é que há uma modernidade surpreendente, mas dentro da linguagem do século 19. Se você tira esse estilo, essa sintaxe, ele deixa de parecer tão surpreendente, tão moderno. O comprimento das frases na literatura foi caindo com o tempo, então manter essas frases longas é uma marca d’água de origem.
O escritor chileno Jorge Edwards relatou certa vez que o poeta Allen Ginsberg tinha Machado de Assis como um “Kafka dos beatniks”. Com qual autor da literatura mundial o brasileiro poderia ser comparado, na sua opinião?
Eu acho engraçado que as pessoas acabam mobilizando referências muito diferentes para comparar o Machado, e é porque nenhuma se encaixa. Não há comparações, o Machado da literatura universal é o Machado. Na primeira tradução, nos anos 1950, falou-se muito em Laurence Sterne, que era uma referência para o Machado. O romance A Vida e as Opiniões do Cavalheiro Tristam Shandy, que é do século anterior ao Memórias Póstumas, é uma obra-prima, é muito inventivo, mas se você conhece o contexto histórico e cultural, você percebe que o Machado pega emprestado algumas coisas dessa inventividade formal do Sterne e de outras referência anteriores para brincar de uma maneira genial e absolutamente perversa com a sociedade em que ele vivia.
Em um texto publicado em 2018 na revista Piauí, você conta a descoberta, por meio de Memórias Póstumas, do “calabouço”, um local onde o Estado castigava os escravos mediante pagamento dos proprietários. O que mais descobriu sobre o Brasil lendo Machado?
Essa foi a descoberta que mais me perturbou, tanto que acabei me sentindo até impelida a escrever aquele ensaio. As minhas notas no final do livro são as minhas descobertas, e acho que são mais de 150. O que achei particularmente importante, além da busca linguística dos dicionários do século 19, foi recorrer a eles e não encontrar a palavra que eu estava procurando, porque não existia em dicionário, mas havia ali um anacronismo muito sutil. Eu pensei muito sobre como traduzir referências aos negros no romance. Acabei seguindo esse mesmo caminho e usando negros com “n” minúscula porque a exigência por “n” maiúscula foi posterior, do começo do século 20. Algo parecido acontece hoje, com Black escrito com “b” maiúscula, pois ajuda a desnaturalizar essa designação, ajuda a não normalizar como categoria. Mas o Machado, enquanto autor não branco, está escrevendo dentro de um contexto, criando personagens de pessoas negras que concebem no mesmo nível que a prataria da casa. Seguindo esse caminho é que a gente sente o impacto do que ele estava fazendo.
Para quem fez o ensino secundário no Brasil, era comum ter a imagem de um Machado de Assis branco, por causa dos retratos que apareciam nos livros. Houve nitidamente um “branqueamento” do escritor. Para você, essa relação do Machado com a sua cor influenciou a obra dele?
Eu realmente não consigo entrar na questão da experiência vivida de raça do Machado, porque acho que é algo irrecuperável. O que dá pra ver são algumas coisas. Tem um estudo do [historiador] Sidney Chalhoub, “Machado de Assis, historiador”, que mostra como o Machado no Ministério da Agricultura estava responsável pelo cumprimento da Lei do Ventre Livre e como ele lutou sistematicamente para que escravos que estivessem contestando isso tivessem uma decisão favorável à liberdade. Há um registro historiográfico forte sobre esse tema. Tem uma coletânea bastante contundente do Eduardo de Assis Duarte, que se chama “Machado de Assis: Afrodescendente”, que é de textos do Machado que abordam essa questão. Mas, quando eu leio o capítulo em que o Brás mata sem pensar uma borboleta preta, porque ele fica chateado com a borboleta preta, e depois pergunta “Por que ela não nasceu azul?”, obviamente é uma cena que pode ser lida em várias chaves, mas eu não consigo não ler em uma chave que tem a ver com uma experiência vivida num país onde o valor de uma vida preta estava claramente colocado e era muito baixo.
A edição em brochura de Memórias Póstumas que você traduziu se esgotou bem rápido. Você esperava essa vendagem?
Eu estou muito feliz que pessoas além da minha banca estão lendo uma parte da minha tese. Claro que esperança a gente sempre tem, mas eu sou botafoguense, e as minhas esperanças são moderadas. Foi uma bela surpresa.
Na introdução da edição que você traduziu consta que Machado ainda precisa encontrar seu lugar no mundo anglófono, embora toda geração tenha seu “momento Machado”. Susan Sontag escreveu um artigo em 1990 falando que, ainda mais notável que a ausência de Machado na literatura mundial, é o fato de ele ser muito pouco conhecido e lido na América Latina fora do Brasil. Por quê?
Eu acho que o atraso nunca ajuda, e aí tem o fato de que a editora do Machado em vida não facilitou que a obra dele fosse traduzida. Teve até um caso que dá uma dor no coração, de uma mulher que queria traduzir um livro dele para o alemão, ela escreveu para o Machado, o Machado escreve para a editora, e a editora falou: “Se ela quer traduzir, ela que nos pague.” E aí houve uma falta de visão da Garnier, para dizer o mínimo. Teve poucas traduções em vida do Machado, então, quando ele chega [a outro país, em outro idioma], chega deslocado no tempo. Isso certamente não ajuda, pois ele chega mais como curiosidade do que como contemporâneo. E aí a gente só pode especular como poderia ter sido.
Agora a gente sempre olha para a obra e pergunta: “O que o Machado tem que não encaixa na literatura universal? Será que é brasileiro demais? Brasileiro de menos?” Mas tem uma parte importante que é o público receptor, que tem que estar pronto para receber aquela obra, e isso tem tudo a ver com o contexto daquela sociedade. O mercado norte-americano é notoriamente fechado para qualquer coisa que não seja escrita na língua inglesa, tem essa cifra terrível, que apenas 3% do total de publicações do mercado norte-americano são de obras traduzidas. Então, a gente só pode esperar que este seja um momento em que as pessoas estejam mais prontas para o Machado de Assis, em vez de tentar botá-lo numa caixinha certa, com a fitinha certa, para as pessoas finalmente o abraçarem. Não, elas é que têm que estar prontas para ele.